Uma excelente dica de leitura é
a obra "Fogo-Selvagem, Alma Domada, a doença
e o Hospital do Pênfigo de Uberaba: História e psicografia"
de Nadia Luz, com as organizadoras Cléria Bittar e Nadia
Marcondes Luz e editado pelo CCDPE-ECM.
Esse é um livro denso e meticuloso, resultado do trabalho
de doutorado de Nadia Luz e repleto de detalhes e fatos interessantes
sobre a vida e obra de dona Aparecida Conceição Ferreira,
a "Dona Aparecida do Fogo Selvagem". Para quem não
conhece, trata-se da saga de uma verdadeira heroína e sua
luta para o acolhimento de milhares de doentes portadores do Pênfigo
Foliáceo, uma doença auto-imune, típica de
regiões tropicais. Seus esforços culminaram com a
construção e manutenção do Hospital do Pênfigo,
na cidade de Uberaba (1), com uma intensa
relação com o movimento
espírita local (2).
Um resumo da vida de Aparecida Ferreira está
bem colocado na página inicial do Hospital do Fogo Selvagem
(1):
Esta instituição
existe graças à dedicação e persistência
de uma mulher, Dona Aparecida (a Vó Cida), que com muita
luta e amor aos portadores do pênfigo foliáceo conseguiu
concretizar esta obra. Vó Cida começou a trabalhar
com os pacientes do “fogo selvagem” em 1957 como enfermeira
do setor de isolamento na Santa Casa de Uberaba. Devido às
dificuldades do tratamento e também à falta de informação
e preconceitos contra a doença na época, a Santa
Casa acabou por “liberar” esses pacientes, muitos
ainda sem condição de alta. Vó Cida então
não hesitou e levou os pacientes para sua própria
casa. Depois de enfrentar preconceitos, pedir esmola, ser até
presa, mas com a ajuda de várias pessoas do bem, entre
elas Chico Xavier, Vó Cida criou o Hospital do Fogo Selvagem,
que mais tarde passou a se chamar Lar da Caridade.
Embora seja verdadeiramente uma
obra de pesquisa em história, é difícil não
se comover com os fatos narrados por Nadia Luz. Neste post, discutimos
alguns aspectos de um eixo fundamental teórico que orientou
a abordagem de "Fogo Selvagem, Alma Domada".
As bases da mecânica de causa e efeito entre vidas
sucessivas
A história de Dona Aparecida
oferece excelente material para estudo e meditação
dos espíritas em torno do tema "ação e
reação" entre várias encarnações.
A tese principal da obra "Fogo Selvagem, Alma Domada"
explora essa dinâmica, que se oferece também como processo
terapêutico, favorecendo a aceitação e a superação
de inúmeros problemas e dramas em torno da moléstia
protagonista do "enredo" da vida de Dona Aparecida. Uma
doença que tem cura mas que, em seu auge, se apresenta com
características típicas de um fogo que continuamente
arde; doentes e mais doentes, depois de abandonarem seus
lares e peregrinarem por inúmeros consultórios;
a doença aliada à fome, à rejeição
familiar e o abandono e uma mulher determinada a tratar deles,
num ambiente francamente hostil e capitaneado por uma religião
cristalizada em dogmas. A que se deve essa fixação
no tratamento de tantos desvalidos, quando teria sido muito mais
fácil a ela simplesmente virar as costas e cuidar de sua
família? O que fez Dona Aparecida se expor a inúmeras
humilhações e dificuldades por causa de um grupo de
portadores de uma doença particular?
A resposta é construída ao longo da obra, que tem
como principal fundamento a ideia das "simetrias históricas"
desenvolvida por Hermínio Miranda. Essa tese se apresenta
como princípio orientador da busca de pistas e detalhes que
passariam despercebidos caso essa teoria não for admitida.
Essencialmente, um grupo social, praticante de delitos - não
só por atos, mas principalmente pensamentos e posturas
- ressurge no Século XX para reencetar e, ao mesmo tempo,
resgatar um enredo passado há séculos. No centro desse
ressurgimento uma mulher, dantes rainha e, portanto, líder
de um movimento sustentado no Estado e na Religião para perseguir
e punir, agora coordena vasto trabalho de reparação.
E justamente aquela religião dominante, em nome da qual inúmeros
crimes foram praticados, imporá empecilhos e obstáculos
na realização da tarefa.
Se aceitarmos a nova visão histórica da Inquisição
Espanhola, conforme descrita, por exemplo, em diversos pesquisas
modernas (3), não passaram de 3000 o número de pessoas
executadas na fogueira, enquanto que 150 mil é o número
dos que sofreram algum tipo de processo inquisitorial. Cerca de
7000 foram o número de doentes com Pênfigo tratados
diretamente pela equipe de Dona Aparecida entre 1957 e 2003, ainda
que esse número esteja contaminado com as reincidências
da doença (ou seja, o número real de casos únicos
é menor que 7 mil). Há ainda muito a se investigar
a respeito do mecanismo da lei de ação e reação,
entretanto, em termos numéricos, os números são
da mesma ordem.
Conjecturamos, porém, que
por não ser doença fatal, a sintomatologia da doença
recaia sobre aquelas personalidades que exerceram o ódio
e a perseguição sistemática contra grupos minoritários
(no caso, judeus conversos ou não na Península Ibérica
sob suspeita de heresia, ver 5) e que não necessariamente
estejam envolvidas diretamente com os processos inquisitoriais.
Sabemos que, por motivos apenas tangencialmente religiosos, populações
inteiras se envolveram na perseguição desses grupos
(5) e é natural esperar que
esses, reunidos após alguns séculos, venham exercitar
sob novas bases o resgate desses débitos morais por mecanismos
complexos onde apenas vislumbramos algumas partes. Assim,
as passagens evangélicas:
Ouvistes que foi dito aos antigos:
Não cometerás adultério.
Eu, porém, vos digo, que qualquer que atentar numa mulher
para a cobiçar, já em seu coração
cometeu adultério com ela. Mateus 5:27,28Ouvistes que foi
dito aos antigos: Não cometerás adultério.
Eu, porém, vos digo, que qualquer que atentar numa mulher
para a cobiçar, já em seu coração
cometeu adultério com ela.
Mateus 5:27,28
longe de estabelecerem os critério
de um pecado específico (no caso a chamada "concupiscência
carnal" na visão de algumas religiões), estabelecem
um princípio: o começo de um erro moral qualquer
que seja ele está no pensamento (ver também questão
745 de "O Livro dos Espíritos" de A. Kardec). Compreende-se
que assim deva ser porque palavras de arrependimento quase em nada
têm a ver com o que realmente o espírito pense ou sinta,
e o que o espírito pensa e sente é o que ele carrega
para além do túmulo. Dada uma época, é
praticamente impossível alterar o pensamento geral de uma
sociedade em relação ao que ela entende como um crime,
que é produto não só da herança cultural
e de interesses imediatos, mas também do nível evolutivo
daquela população naquele momento. Portanto, as perseguições
realizadas na Espanha nos Séculos XV e XVI, e que foram apontadas
como no centro dos resgates em "Fogo Selvagem, Alma Domada"
não estão exclusivamente sob responsabilidade da Igreja,
mas de todos aqueles que apoiaram abertamente seus processos e que
se serviram deles para satisfazer seus interesses.
Coincidências ou simetrias históricas?
O relacionamento entre os personagens
diversos que fizeram parte da saga da D. Aparecida encontram eco
em diversas "pistas" na própria história
de Uberaba. Uma que chama a atenção foi a enorme concentração
de igrejas e grupos religiosos católicos que se instalaram
em Uberaba já no século XIX. Atesta isso a obra "Terra
Madrasta" (6), de 1926, que é citada em "Fogo
Selvagem, Alma Domada":
Poderia Uberaba, centro da beatice,
centro de inúmeras irmandades, terra de procissões
e de conventos, vítima desgraçada da perniciosa
influência clerical constituir uma exceção
à regra ou um desmentido ao conceito geral e proclamado
sobre o clero (...) Eis a terra por excelência dos padres,
frades e freiras! (...) Como é sabido, os frades dominicanos
tomaram conta do prédio onde devia funcionar o hospital
de misericórdia local e por longo tempo 'ficaram senhores
do referido prédio que nunca funcionou, nunca prestou infelizmente
o serviço que seu fundador esperava' (Gazeta
de Uberaba, 1891).
Em particular, a ordem dos Dominicanos,
oriundos da França, exatamente de uma região onde,
em tempos muito remotos, uma perseguição que usou
o fogo como arma aconteceu, escolheu Uberaba como um dos primeiros
lugares para sua fixação:
Insatisfeitos com os capuchinhos,
integrantes da Ordem Franciscana, após reclamações
publicadas no periódico local, ganharam dos uberabenses,
no ano de 1881, a possibilidade de verem instalados em seu território
os primeiros integrantes do primeiro núcleo de representantes
da Ordem Dominicana no Brasil. Chegaram ao Brasil, oriundos da
região de Toulouse, na França, os frades Raimundo
Madre, Lázaro Melizan e Gabriel Mole, posteriormente chegando
também Raimundo Anfossi, como intuito já definido
de fundarem em Uberaba de imediato um colégio. Assim que
chegaram, deram início às construções
da igreja São Domingos e fundaram nas dependências
da Misericórdia, o Colégio Nossa Senhora das Dores,
com o plano de trazer logo em seguida o braço feminino
da ordem, de modo a formarem-se escolas para educação
de jovens nos parâmetros idealizados pela ordem fundada
por Domingos de Gusmão, um dos principais nomes guardados
pela história quando da cruzada contra os Cátaros
do Languedoc, próximo a Toulouse. (Cap. 1, p. 69)

Esse grupo religioso desempenhou papel fundamental nos obstáculos
porque passaria a iniciativa de D. Aparecida junto aos doentes do
pênfigo, de novo, não por "mero acaso" (o
leitor deve verificar por si ao ler a obra de Nadia Luz). Por outro
lado, podemos ler em Kamen (4), Cap.
3:
A evidência parece ter impressionado
a coroa que pediu informações sobre a situação
de Sevilha. O relatório, apoiado pela autoridade de Pedro
González de Mendoza, arcebispo de Sevilha e por Tomás
de Torquemada, prior de um monastério Dominicano em Segovia,
sugeria que, não somente em Sevilha, mas por toda Andaluzia
e Castela, os conversos estavam praticando ritos judaicos em segredo.
Tendo aceitado esse testemunho, Fernando e Isabela aprovaram a
introdução da maquinaria da Inquisição
em Castela e enviaram um pedido a Roma por uma bula institucional.
Assim nos parecem razoáveis
a apresentação dos fatos que haveriam de tornar Uberaba,
desde o Século XIX, terra de inúmeras intrigas envolvendo
grupos religiosos, políticos, leigos e a maçonaria,
ao mesmo tempo em que abrigava grande contingente de hansenianos
e, posteriormente, portadores de pênfigo foliáceo.
Em suma, um reencenamento do passado, em escala reduzida geograficamente
e comprimida no tempo...
Apreciação final
Se considerarmos
o quanto, nos séculos passados, eram frequentes, mesmo
nas classes mais elevadas e mais esclarecidas, os atos de barbárie
que tanto nos revoltam hoje; quantos homicídios eram
cometidos nessas épocas em que não se dava importância
à vida de seu semelhante, em que o poderoso esmagava
o fraco sem escrúpulo, compreenderemos quantos deve haver,
entre os homens de hoje, que têm de lavar seu passado;
não será mais de espantar o número tão
considerável de pessoas que morrem vítimas de
acidentes isolados ou de catástrofes gerais. O despotismo,
o fanatismo, a ignorância e os preconceitos da Idade Média
e dos séculos que a seguiram, legaram às gerações
futuras uma dívida imensa, que ainda não está
liquidada. Muitas desgraças parecem-nos imerecidas apenas
porque não vemos senão o momento atual. (A.
Kardec, O Céu e o Inferno, Segunda Parte, Capítulo
VIII - Expiações terrestres)
"Fogo Selvagem, Alma Domada"
oferece muitos dados para estudos futuros em torno da dinâmica
da lei de ação e reação. As muitas revelações
e explicações dadas naquele momento por fontes mediúnicas
fidedignas com relação a raison d'être
do drama protagonizado por D. Aparecida e seus doentes tornam isso
possível. Essas explicações foram, na obra,
subsequentemente complementada por dados interessantes do passado
da região de Uberaba/MG desde o Século XIX, e que
são detalhes inexplicáveis se a ideia de um resgate
sob o comando de uma lei maior não for admitido. Assim, por
exemplo, podemos entender porque muitos doentes abandonavam suas
casas em busca de tratamento, depois da rejeição de
familiares, a sintomatologia da doença, curável, porém
nitidamente caracterizada por uma dor como um fogo que arde em consonância
com fatos históricos da época identificada como simétrica.
Esses coincidências e singularidades corroboram e justificam
a importância do princípio da "causa e efeito",
validando de forma ampla todo o conjunto da Doutrina Espírita.
Temos assim condições adicionais de compreender e
prever as consequências de nossa postura e de nossos pensamentos,
que muitos ainda relativizam como sendo de menor importância
no concerto da vida maior. Na verdade, essas consequências
podem atravessar séculos junto a nós até que
surja o momento de serem convenientemente resgatadas. Deus é
justo.