A página Science Alert
(1) postou
um texto sobre um importante trabalho médico (realizado como
escopo do projeto AWARE) sob a direção do Dr. Sam Parnia
(2). Outro
texto sobre esse trabalho de Parnia pode ser lido no blog "The
Telegraph" (3)
e aqui.
O "The Telegraph" se abriu para opiniões de leitores.
Essas opiniões se apresentam mais como um amontoado de reações
inconformadas com o trabalho de Parnia et al. Elas vão desde
argumentos "ad hominen" (ou seja, que colocam em dúvida
a credibilidade científica de Parnia) até argumentos
"bíblicos". A partir da publicação
do artigo, os comentário claramente se dividem entre três
grupos:
- Os que aceitam o trabalho e que acreditam
na vida após a morte por diversas razões;
- Os que não aceitam o trabalho e o
negam de diversas formas que pretendem ser "científicas"
(materialistas, ateus e agnósticos);
- Os que não aceitam o trabalho porque
ele contraria a bíblia.
Raros comentários demonstram que seus opositores
leram e compreenderam o trabalho que passam a criticar. Vamos comentar
algumas dessas opiniões céticas. (Atenção:
os comentários em inglês originais estão em "Referências
e Notas").
Iniciamos por este:
Wim Borsboom:
Qualquer que seja o estado do morto depois
do que se chama "morte", ele não poderá
ser chamado de "vivo" porque, etimologicamente, a palavra
"life" deriva de uma versão proto-germânica
que pode ser traduzida em inglês como "corpo": A
palavra "life" (inglês arcaico 'lif') é derivada
da raiz proto-germânica 'libam', que tem os seguintes cognatos:
'lijf' (Holandês) para 'corpo' e 'Leib' (Alemão) para
'corpo'.
Temos aqui um especialista em semântica
de línguas antigas que desvia totalmente o assunto para uma
questão irrelevante. Para ele, não interessa qual o
resultado do trabalho porque, por definição, alguém
sem corpo não é vivo de qualquer jeito.
hjp70:
Quão científico é essa
pesquisa (?). Vejamos: 2060 casos dos quais 330 se recuperaram.
Isso dá 16%. Isso significa que 84% não puderam ser
entrevistados porque morreram. Desses, 300, somente 140 disseram
que eles experimentaram algo. 190 não afirmaram nada disso,
o que é 58% daqueles que retornaram. Os 140 são apenas
6,8% do grupo de estudo de 2060. Dificilmente isso será um
estudo científico de "vida após a morte"
como é chamado. Temos um longo caminho pela frente com isso,
mas, como sempre, é também algo que grupos religiosos
dizem que "não pode ser negado".
Aparentemente esse crítico
leu os números da estatística apresentada por Parnia
et al. Porém, seu argumento explora relações
quantitativas decrescentes (que estão presentes com qualquer
tipo de fenômeno raro) de forma a invalidar o estudo. Ao se
aplicar o raciocínio desse crítico a outros experimentos
científicos (que apresentam taxa muito inferior a frequência
de 1 caso em 1000 de relatos confirmados de experiência), jamais
seria possível ter avanço em muitas áreas do
conhecimento (5). Há duas tentativas
de descaracterização aqui: i) não reconhecer
que o trabalho conseguiu levantar as frequências relativas de
eventos; ii) desconsiderar os casos que não podem ser explicados
por nenhuma teoria da consciência reducionista do presente.
A última frase do crítico mostra que ele está
preocupado com o apoio que o trabalho daria a ideias religiosas.
arumat:
Eles não estavam mortos porque voltaram
a viver depois de alguns segundos. Tragam alguém que voltou
depois de algumas horas e então conversaremos.
Eis alguém que dita regras
à natureza. É como se pudéssemos exigir que os
fenômenos se apresentassem de determinada maneira para que pudéssemos
acreditar. Esse crítico está longe de considerar a teoria
aceita presente sobre o estado do cérebro de pacientes que
se encontram na situação descrita em Parnia et al. Ora,
fatos são fatos e a evidência traz relatos de experiências
de quase-morte com duração de vários minutos.
Esse é o núcleo do problema a ser explicado independente
de sua duração real.
Chris Corbett:
A afirmação de que o cérebro
não pode funcionar quando o coração para de
bater é patentemente falsa e o único método
de estabelecer por quanto tempo a atividade cerebral continua depois
da parada cardíaca é colocando o paciente em uma máquina
de MRI ao invés de ressuscitá-lo. Isso não
vai acontecer por razões óbvias. Quem quer que conheça
um mínimo de ciência cognitiva sabe que memórias
são notoriamente não confiáveis. Memórias
de eventos ou estados de consciência que aparentemente se
referem a períodos quando o cérebro esteve inativo
não são evidência de nada. Então, ou
as memórias são falsas e apenas racionalizações
post-hoc ou elas são evidência de que o cérebro
estava, de fato, ativo por certo tempo. Tenho memórias distintas
de que voei como Peter Pan acima da árvore do meu jardim
quando criança e olhando desde cima a cena. Mas, eu voei
realmente? Como foi que adquiri essas memórias? Elas foram,
naturalmente, resultado de um sonho.
Essa é,
certamente, a melhor das críticas, pelo menos aparentemente.
Não há dúvidas que uma opção de
conclusão às evidências apresentadas em Parnia
et al. é que algum tipo de atividade cerebral deveria estar
envolvida para que as memórias fossem descritas tais quais
são. Entretanto apontamos:
1. Tecnicamente
é preciso considerar o grau de acurácia de detecção
de equipamentos de tomografia versus EEG (eletroencefalograma) ou
do tipo usado pela pesquisa. Como o crítico bem coloca, é
quase impossível fazer isso. De qualquer forma, não
é suficiente acreditar que uma tomografia daria resultados
mais precisos nesse caso porque tomógrafos retornam um tipo
de informação diferente de EEGs;
2. É necessário reconhecer o valor do tipo de descrição
feita pelo paciente (o que implica em aceitar o contexto em que ela
ocorre que é distinto da ocorrência dos sonhos). Pacientes
afirmam ter tido a experiência de outro ângulo da sala,
ou seja, de uma perspectiva que não é de alguém
deitado, de eventos que ocorreram de fato enquanto o cérebro
estava moribundo. Ou seja, o paciente "sonhou" algo
que aconteceu de fato. Esse tipo de detalhe é completamente
desconsiderado pela crítica.
Nesta referência (6),
um grande especialista em EEGs (Dr. John Greenfield, Universidade
de Toledo) contesta explicações puramente técnicas
que invalidam tais relatos, assim como a suposta maior precisão
de outro tipo de técnica ao uso de EEG.
Segundo o Dr. John Greenfield (6), não
há razões para se acreditar que um EEG em linha (que
caracterizaria morte cerebral) não correlacione muito bem com
total ausência de atividade no cérebro. Portanto, o mistério
continua com relação a pacientes que descrevem experiências
enquanto têm EEG em linha durante NDEs.
pippilongstocking:
Eclesiastes 9:5 "...os mortos nada sabem..."
Por fim, encontramos
grupos de religiosos que se escoram na autoridade de textos antigos
para decidir a verdade sobre o assunto. Embora a ciência tenha
demonstrado sistematicamente a precariedade do conhecimento da Bíblia
em relação a muitas coisas do mundo natural, há
pessoas que ainda creem que ela é autoridade incontestável
em muitas outras matérias.
Conclusão
O principal problema a negar as evidências como as apresentadas
pelo trabalho de Parnia et al. é a incapacidade que críticos
têm em manter visão integrada do fenômeno. Críticos
que focam apenas nos aspectos técnicos frequentemente desprezam
os componentes semânticos e informacionais dos relatos que acabam
sistematicamente desprezados. Ainda assim, o trabalho de Parnia et
a. está no limite da técnica atual, sendo possível
desqualificar muitas das críticas feita a ele por céticos
técnicos mal informados.
Deficiências nas teorias presentes sobre o comportamento da
consciência em seus estados alterados fazem com que vários
aspectos das experiências sejam simplesmente ignorados. Se as
memórias de pacientes de experiência de quase morte correspondem
a sonhos, elas também se caracterizam como um tipo muito peculiar
ou inexplicável de sonho. Imagine que alguém dormindo
pudesse descrever situações confirmadas por outros em
vigília. A alta correlação observada entre os
relatos e as situações apontam para ganho de conhecimento
de forma anômala. Se alguém sonha com a realidade enquanto
dorme é porque esteve em contato com essa realidade de alguma
forma desconhecida.
Portanto, trabalhos futuros em torno de experiências de quase
morte devem privilegiar menos aspectos médicos e terapêuticos
e se concentrar na análise dos relatos, bem como no estabelecimento
de correlações entre esses relatos e as ocorrências
em torno dos pacientes.
Referências e notas
1 - Bec Crew (2014), "Largest study on resuscitated
patients hints at consciousness after death": http://sciencealert.com.au/news/20140810-26301.html
2 - S. Parnia et al. (2014). "AWARE —
AWAreness during REsuscitation — A prospective study."
http://www.resuscitationjournal.com/article/S0300-9572(14)00739-4/pdf
3 - S. Knapton (2014). "First hint of
'life after death' in biggest ever scientific study" http://www.telegraph.co.uk/science/science-news/11144442/First-hint-of-life-after-death-in-biggest-ever-scientific-study.html
4 - Textos originais em inglês conforme
foram postados.
Wim Borsboom: Whatever the state of a
deceased is, after what is usually called "death", it
should really not be called "life", because etymologically
the word "life" derives from a Proto-Germanic word that
is translated in English as "body": The word "life"
(Old English 'life', 'lif') is derived from a Proto-Germanic root
'*libam' which has as current cognates: 'lijf' (Dutch) 'body' and
'Leib' (German) 'body'.
hjp70 How scientific is this research.Lets see 2060 cases of which
330 recovered.That is 6%. hat means 84% could not be asked because
they died.Of the 330 only 140 said they experienced something 190
didn't which is 58% of those that recovered.The 140 is only 6.8%
of the study group of 2060.Hardly a scientific study of "life
after death" as it is called.A long way to go with this but
as always with something that religious groups espouse to "it
cannot be disproved".
arumat : They weren't dead if they came back to life after a relatively
few seconds. Let them bring someone back after a few hours and we'll
talk.
Snakey_Pete: No detectable electrical activity is different to no
electrical activity. These people were able to describe their experience
of hearing the machine 'beep' and their emotional state at the time.
They had memory of it. The auditory cortex and limbic system must
be active for these memories to have been formed for the individual
to recount on waking.
Chris Corbett: The claim that ""We know the brain can't
function when the heart has stopped beating" is patently false
and the only certain method of establishing how long brain activity
continues after cardiac arrest is to stick them in a MRI machine
instead of resussitating them. This is not going to happen for obvious
reasons. It is well known to anyone with even a passing knowledge
of Cognitive Science that memories are notoriously unreliable. Memories
of events or states of awareness that apparently refer to periods
when the the brain was inactive are not evidence of anything. If
the brain is inactive, it cannot be capable of laying down memories.
So either the memories are false and mere post-hoc ationalisations
or they are evidence that the brain was in fact active to some extent
at that time. I have distinct memories of flying like Peter Pan
above the tree in my garden as a child and looking down at the scene
below me. Did I really fly? How did I come by these memories? They
were, of course, the result of a dream.
pippilongstocking. "Ecclesiastes 9:5 "...the dead know
not anything..."
5 - É interessante considerar
que uma chance de falha da ordem de 1/1000 em um sistema físico
é considerada um tipo de falha classe "C" ou moderada.
Sobre isso ver a norma militar MIL-STD-1629A (1980). Quando se considera
uma grande população, o número de pessoas que
têm "experiências verídicas" de NDE não
é desprezível, o que invalida completamente o argumento
cético.
6 - "EEG Expert can't explain NDE data... And. Dr. Penny Sartori
finds more than Hallucinations in NDE accounts." ou "Especialista
em EEG não consegue explicar dados de experiências de
quase-morte. E, o o Dr. Penny Sartori vê mais que alucinações
em relatos de NDEs". (http://www.skeptiko.com/eeg-expert-on-near-death-experience/)