A fronteira entre o Espiritismo
e as experimentações psicológicas apresentam
oportunidades interessantes de exploração e interpretação.
Ela é tanto mais relevante para o lado espírita (que
é o de nosso interesse imediato), pois mostra como alguns
resultados recentes de experiências têm impacto na compreensão
de fenômenos que estão na interface "espírito-corpo".
Um exemplo interessante discutimos
brevemente aqui e diz respeito aos estudos algo recentes (um deles
já tem 35 anos, ref. 1) sobre a importância da chamada
"mente inconsciente" na tomada de decisões. Por
"mente inconsciente" entendemos um conjunto de processos
mentais que ocorrem sem que o indivíduo tenha "consciência"
- aqui a palavra em inglês "awareness"
é mais apropriada - dele. Essa consciência nos dá
aquela sensação de que temos, de fato, controle sobre
nossos atos. Assim como nos diversos órgãos do corpo
que funcionam de forma autônoma (sem a deliberação
da vontade por parte de quem o controla), o cérebro também
operara de forma autônoma em muito da vida mental, quer dizer,
ele funciona sem que o indivíduo tenha consciência
disso. Eficiência e otimização parecem ser a
principal causa para esse estado de coisas no campo mental.
Mente inconsciente
A noção de mente inconsciente
não é nova. Já no começo do século
18, a ideia de "unbewußtsein" apareceu
com o filósofo idealista alemão Friedrich Schelling
(1775-1854). A crença popularmente aceita de que o homem
poderia ser inspirado pelos deuses foi uma das razões para
se suspeitar de que algo inconsciente operaria na mente humana e
ajudou a consolidar o conceito sem, entretanto, qualquer aceitação
científica. Uma outra fonte importante para a ideia do inconsciente
veio da observação ordinária que pessoas, quando
sob ação perturbadora de medicamentos ou drogas (p.
ex., bebidas alcoólicas) agem de forma aparentemente inconsciente,
e chegam a não se lembrar dos atos praticados, cessado essa
ação externa. O grande popularizador do inconsciente
foi sem dúvidas Sigmund Freud (1856-1939) que usou largamente
desse princípio para o estudo de desvios do comportamento
que ele explicou como resultado de desejos sexuais inconscientes
reprimidos. Entretanto, a crença na existência do inconsciente
demorou para ser estabelecida tendo em vista que sua aceitação
leva a uma mudança radical na nossa concepção
da mente humana e porque não se faz nenhuma ideia sobre como
tal inconsciência operaria (2).
Até hoje, a maior parte das pessoas nem desconfia do inconsciente,
ou vive sem saber que ele existe e "controla" seus atos
de forma sistemática.
Experimentos como o de Libet et
al (1) foram um grande divisor de águas
na comprovação da existência de uma "mente
inconsciente" inicialmente descrita como um estado potencial
de "prontidão" a operar sem qualquer intervenção
consciente de seu dono. Antes dele, outras evidências de que
sinais aparentemente não percebidos pelas pessoas poderiam
determinar o curso de suas ações também forneceram
provas indiretas da existência do inconsciente (2).
O uso de técnicas de mapeamento cerebral (como é o
caso da tomografia de pósitrons) permitiram observar em tempo
real a operação do fenômeno. Essencialmente,
distingue-se as áreas do cérebro responsáveis
pela tomada de decisão e pela "consciência"
dessa tomada. Por meio de técnicas experimentais é
possível demonstrar que a decisão ocorre centenas
de milissegundos antes de que as áreas de "awareness"
sejam ativadas. Em suma: a decisão é tomada antes
da consciência da escolha que precede, entretanto, o ato decisório
como representado abaixo:
tomada de decisão ->
consciência a decisão -> ato decisório.
Obviamente, a ciência moderna
ainda debate a amplitude, origem e operação da mente
inconsciente, mas sem as dúvidas sobre sua existência.
Para os "behavioristas", por exemplo, as operações
do inconsciente integram informação anterior e de
ambiente e criam a decisão que sobe ao nível consciente
dando a "impressão" de liberdade de escolha. Na
atualidade esse debate tem impacto direta na noção
de livre-arbítrio: se as decisões são inconscientes
então provavelmente não temos controle de nossos atos.
Na visão behaviorista extrema (que é radical mesmo
para os padrões materialistas aceitos) somos meros autômatos
pre-programados pelo ambiente, sem capacidade de decisão,
mas com a ilusão de arbítrio próprio. O debate
se alarga para áreas como a do direito, onde se pergunta
até que ponto um criminoso não seria passível
de culpa, caso essa visão radical de controle do inconsciente
fosse adotada.
O leitor deve entretanto atentar para o fato de que experimentos
que demonstram a operação do estado de prontidão
pré-consciente nada provam contra o livre-arbítrio,
mas apenas a existência desse estado inconsciente. É
quando se passa a interpretar e tentar criar teorias para explicar
a mente e sua complexidade que alguns cientistas chegam ao estremo
de negar o livre arbítrio.
O conceito
do inconsciente no Espiritismo (segundo A. Kardec)
Os Espíritos também indiretamente
indicaram a existência do estado inconsciente nos encarnados
ao referir-se à vida do espírito como diversa, mais
rica e diferente da vida da vigília. Há muitos trechos
no "Livro dos Espíritos" (LE,
4) em que se pode ler sobre essa noção
peculiar do inconsciente. A existência da vida do Espírito
como independente da vida material está bem estabelecida,
por exemplo, no Capítulo 8 do LE "Da emancipação
da alma: o sono e os sonhos" e no Capítulo 7 "Da
volta do Espírito à vida corporal: esquecimento do
passado". Por exemplo, na questão #410a, Kardec
questiona sobre para que serviriam as ideias adquiridas durante
o sono (5)
que são completamente esquecidas no estado de vigília.
A resposta reafirma a existência de uma vida paralela à
material que permanece inconsciente propositalmente, sem prejuízo
ao aproveitamento dessas ideias:
Algumas vezes essas idéias mais dizem
respeito ao mundo dos Espíritos do que ao mundo corpóreo.
Com mais frequência, porém, se o corpo as esquece,
o Espírito as retêm, e voltam no momento necessário,
como uma inspiração súbita. (grifos
nossos)
Certamente é no capítulo
que trata das vidas pregressas que o inconsciente - como repositório
de lembranças de vidas anteriores - surge de forma clara:
Não temos, é certo,
durante a vida corpórea, lembrança exata do que
fomos, nem do bem ou do mal que fizemos, em anteriores existências;
mas temos de tudo isso a intuição, sendo as
nossas tendências instintivas uma reminiscência do
passado. E a nossa consciência, que é o desejo
que experimentamos de não reincidir nas faltas já
cometidas, nos concita a resistir àqueles pendores (LE,
Cap. 6, final da resposta à questão #393, grifo
nosso).
A lembrança fortuita de vidas
pregressas e as capacidades instintivas que se manifestam na vida
material são fatores que afetam a tomada de decisão
do Espírito e que devem ser levados em consideração
ao se explicar o funcionamento do estado inconsciente, principalmente
sobre quais seriam as causas relevantes que levariam a uma decisão.
Para o Espiritismo com Kardec, o estado inconsciente é a
própria manifestação da vida do Espírito
que pode pensar de maneira diversa no estado de vigília,
quando tem "consciência" das coisas a seu redor
a lhe afetarem a maneira de pensar. Isso está claramente
indicado, por exemplo, em parte da resposta à questão
#266 e # 267 sobre a escolha das provas da vida material:
266. Não parece natural que
se escolham as provas menos dolorosas?
Pode parecer-vos a vós; ao Espírito, não.
Logo que este se desliga da matéria, cessa toda ilusão
e outra passa a ser a sua maneira de pensar. (grifo
nosso)
267. Pode o Espírito proceder
à escolha de suas provas enquanto encarnado?
O desejo que então alimenta pode influir na escolha que
venha a fazer, dependendo isso da intenção que o
anime. Dá-se, porém, que, como Espírito
livre, muitas vezes vê as coisas de modo diferente. O Espírito
por si só é quem faz a escolha; entretanto,
ainda uma vez o dizemos, possível lhe é fazê-la
mesmo na vida material, porque há sempre momentos em
que o Espírito se torna independente da matéria
que lhe serve de habitação. (grifos
nossos)
Essa última questão é
particularmente importante porque demonstra de forma clara que as
decisões do Espírito encarnado se dão de forma
inconsciente, como Espírito, ou seja, ele sequer precisa
ter consciência (awareness) sobre tais escolhas. A. Kardec
tece um interessante comentário logo após a questão
# 266 do qual extraímos o trecho:
A doutrina da liberdade que temos
de escolher as nossas existências e as provas que devamos
sofrer deixa de parecer singular, desde que se atenda a que os
Espíritos, uma vez desprendidos da matéria, apreciam
as coisas de modo diverso do nosso. Divisam a meta, que bem
diferente é para eles dos gozos fugitivos do mundo. (grifo
nosso)
Se viver é fazer escolhas, a
primeira decisão que ocorre ao Espírito é sobre
o tipo de existência que ele pretende passar em uma nova encarnação
na Terra. Para o Espiritismo, entretanto, o livre-arbítrio,
que é fundamental para se garantir a responsabilidade do
Espírito sobre seus atos, não é uma "graça"
concedida sem custo ao Espírito, mas algo que ele deve conquistar:
O livre-arbítrio se desenvolve
à medida que o Espírito adquire a consciência
de si mesmo. Já não haveria liberdade, se a
escolha fosse determinada por uma causa independente da vontade
do Espírito. A causa não está nele, está
fora dele, nas influências a que cede em virtude da
sua livre vontade. É o que se contém na grande
figura emblemática da queda do homem e do pecado original:
uns cederam à tentação, outros resistiram.
(Resposta à questão #122,
grifos nossos)
A necessidade de se escolher as provas
e desenvolver seu livre arbítrio justificam assim o estado
inconsciente, a perda de memória das vidas anteriores e de
sua vida como espírito. O ser integral, quando encarnado,
se manifesta em sua psicologia e maneirismos, sua atitude em relação
à vida, seus instintos e tendências, sem prejuízo
do aproveitamento de suas experiências. Como justificativa
para esse estado de coisas, a questão # 370 reafirma o espírito
como causa, porém, que a matéria o restringe:
370a. Dever-se-á deduzir
daí que a diversidade das aptidões entre os homens
deriva unicamente do estado do Espírito?
O termo unicamente não exprime com toda a exatidão
o que ocorre. O princípio dessa diversidade reside nas
qualidades do Espírito, que pode ser mais ou menos adiantado.
Cumpre, porém, se leve em conta a influência da matéria,
que mais ou menos lhe cerceia o exercício de suas faculdades.
Para o Espiritismo, os espíritos
são uma fator importante
a influenciar a decisão do encarnado durante a vigília.
Tal influência,
entretanto, se dá de forma inconsciente. Imagem:"O
Sonho da rainha
Katherine", (Johann Heinrich Füssli, 1741-1825).
Inconsciente e obsessão
O inconsciente é um conceito
importante para se entender "operacionalmente" como podem
os Espíritos influenciar os encarnados. Quando essa influenciação
é negativa - de forma a aumentar o sofrimento do encarnado
- fala-se em "obsessão" (LE, questão # 473).
A questão #460 parece ser fundamental para se entender a
ligação entre o inconsciente e a operação
dessa influenciação:
460. De par com os pensamentos
que nos são próprios, outros haverá que nos
sejam sugeridos?
Vossa alma é um Espírito que pensa. Não ignorais
que muitos pensamentos vos acodem a um tempo sobre o mesmo assunto
e, não raro, contrários uns dos outros. Pois bem,
no conjunto deles estão sempre de mistura os vossos
com os nossos. Daí a incerteza em que vos vedes. É
que tendes em vós duas idéias a se combaterem. (grifo
nosso)
Ora, não guardamos, de forma
geral, nenhuma lembrança ou consciência dessa influência,
nem sequer sabemos de onde provêm tais pensamentos. O estado
inconsciente representa o momento exato onde opera essa influenciação,
que acontece exatamente dessa maneira de forma a reter apenas aquilo
que é necessário para fazer avançar nossa capacidade
de discernimento entre o certo e o errado (do contrário,
não haveria mérito...).
De forma resumida, ao se listar que fatores
poderiam afetar o inconsciente no momento da tomada de uma decisão,
podemos citar:
-
As tendências
inatas da alma encarnada, fruto de experiências obtidas
em vidas anteriores (inconsciente);
-
Sua experiência
presente, resultado de sua encarnação última
(consciente ou inconsciente);
-
Suas memórias
de vidas anteriores, que reforçam certas tendências
em optar por determinadas decisões (inconsciente);
-
Suas memórias
da vida atual, acessível diretamente com algum esforço
(o chamado "estado presciente", influenciação
consciente ou inconsciente);
-
As limitações
de seu corpo ou contraparte material que restringem mais ou
menos severamente a maneira como as percepções
do mundo externo se dão;
-
As influenciações
dos Espíritos que reforçam as tendências
inatas e sugerem ideais (inconsciente);
O comportamento humano é produto de
uma atuação maior ou menor de um desses fatores ou
combinações deles. Mas é particularmente nos
fenômenos obsessivos mais ou menos severos que o último
fator mais se destaca. Por meio do estado inconsciente, pensa e
age o encarnado como se estivesse sozinho, mas, de fato, ele não
está. Acreditamos, porém, que, mesmo nos casos de
subjugação sistemática, o Espírito pelo
menos retém consciência de seu livre arbítrio.
Esse é, entretanto, assunto para outro post considerando
inúmeros detalhes relevantes que exigem minuciosa atenção
e consultas a outras referências.
À guisa de
conclusão
O inconsciente parece guardar a
chave para a essência do espírito encarnado cuja existência
integral ocorre em outro "plano". Cremos que as descobertas
recentes sobre a operação da mente inconsciente são
importantes validações das lições trazidas
pelos Espíritos já durante a compilação
das respostas do LE e muito antes de Sigmund Freud (6). Para a ciência
que investiga esses casos, o inconsciente é um estado de
pre-decisão, talvez mais um dentre os inúmeros estados
do cérebro entendido como um "hardware" que "roda"
um programa. Para o Espiritismo, entretanto, o inconsciente
não é meramente um repositório de lembranças
ou desejos reprimidos. Ele é a própria manifestação
oculta da vida do Espírito em sua jornada evolutiva. As manifestações
observáveis do estado inconsciente são importantes
evidências (8) dessa vida oculta
que, por meio de experimentos, é possível estudar
e que têm implicações ainda pouco esclarecidas
para a a sociedade.
Uma das perspectivas abertas
pelo Espiritismo é que o encarnado guarda memórias
ou consciência plena de suas decisões, mesmo para aquelas
que não "subiram" conscientemente durante a vigília.
A consciência de tomada de decisão seria uma espécie
de "segunda consciência" que reverberaria no campo
mental do encarnado, ou tipo de memória reflexa de seu pensamento
como Espírito. Essa reverberação é importante
para que dela uma memória seja guardada ("eu me lembro
de que tomei essa decisão") e auxilie outras tomadas
(inconscientes) em contextos semelhantes, até que o processo
seja completamente autônomo.
Em outras palavras, a consciência que temos de nossos atos
quando encarnados após uma escolha é um mecanismo
de "feedback" (realimentação) que
reforça o aprendizado durante a existência. Seu papel
principal é guardar informação para uso posterior.
Outra razão importante para esse funcionamento inconsciente
é o da eficiência: a "mente" parece responder
melhor a determinadas situações em que ela não
tem que "pensar muito" sobre qual seria a melhor solução.
Um trabalho interessante recente (3)
argumenta que há uma "moral inconsciente"; as decisões
"morais" das pessoas são melhores justamente quando
elas decidem inconscientemente, o que é outra prova da operação
das faculdades do espírito.
Uma vez que é o Espírito, em essência, o responsável
pelos seus atos e que as decisões são tomadas mesmo
sem consciência ("awareness") imediata - como um
feedback de uma operação inconsciente, ele também
é o único responsável por elas, sem prejuízo
da noção de livre-arbítrio. Na visão
espírita, é preciso elucidar a interação
espírito-matéria, sobre como se daria a relação
entre o espírito e o cérebro ou sistema nervoso sobre
o qual ele atua. Enquanto inúmeros pontos obscuros subsistirem,
será arriscado negar a responsabilidade do espírito
encarnado sobre seus atos e criar, por exemplo, embaraços
jurídicos pela negação do livre-arbítrio.
Para se convencer disso, é importante considerar uma visão
integral do ser humano e desvendar inúmeros outros mecanismos
pouco esclarecidos sobre o funcionamento da mente. Há indícios
recentes de que a percepção consciente, quando obstada
por doenças ou mal funcionamento do cérebro, não
impede a mente de seu funcionamento inconsciente (7).
Presentemente debate-se a possibilidade de o inconsciente ser capaz
de realizar tudo o que é possível no estado consciente,
o que é uma perspectiva promissora diante do ensino espírita
sobre a verdadeira vida do espírito.
Retornaremos em um futuro post com mais discussões sobre
nossas observações sobre esse importante assunto.