A vaidade de certos homens, que julgam saber tudo e tudo querem
explicar a seu modo, dará nascimento a opiniões
dissidentes. Mas, todos os que tiverem em vista o grande princípio
de Jesus se confundirão num só sentimento: o do
amor do bem e se unirão por um laço fraterno, que
prenderá o mundo inteiro. Estes deixarão de lado
as miseráveis questões de palavras, para só
se ocuparem com o que é essencial. E a doutrina será
sempre a mesma, quanto ao fundo, para todos os que receberem comunicações
de Espíritos superiores." (1)
1 - Introdução
Todos aqueles que já tiveram a oportunidade de entrar em
contato com as páginas e conceitos espíritas dificilmente
deixaram de se perguntar quanto à natureza e a validade de
muitas das informações trazidas pelos mensageiros
espirituais. Nesse sentido, é relevante se perguntar quanto
aos critérios de aceitação dos ensinos espíritas,
sobre como deve ser nossa postura diante da propagação,
divulgação e grau de validade desses ensinos. Será
que um determinado conceito deve ser aceito absolutamente, sem exame
algum, com exclusão daqueles que por ventura possam discordar
dele? Será que, por outro lado, devemos sempre manter uma
postura reticenciosa, como que eternamente aguardando uma última
palavra ou, o que seria ainda mais restrito, considerar tais ensinos
como meras figuras passadas pelos Espíritos na impossibilidade
de nós, os encarnados, estarmos longe de mais do que seria
a verdade? Como se dá o consenso ao derredor de um determinado
ensino? Tais questionamentos podem parecer supérfluos a uma
mente excessivamente prática, mas estão provavelmente
na raiz de grandes males que afetaram a humanidade.
Sem dúvida, diversos estudos foram feitos desde os primórdios
do desenvolvimento da doutrina com Allan Kardec em torno da validade
e aceitação das teses do Espiritismo. No momento histórico
da codificação, diante da exuberância dos fenômenos
espíritas (a aparecerem espontaneamente em muitas instâncias
simultaneamente), Allan Kardec chegou a formulação
do critério da concordância universal dos ensinos
dos Espíritos. Em termos resumidos tratava-se da aceitação
de uma determinada tese (em sua maioria relacionada aos princípios
básicos) quando apoiada maciçamente pelos Espíritos
através de diferentes médiuns nos mais variados lugares.
Voltaremos a esse ponto na Parte 3 deste artigo. Essa idéia
lembra vagamente os critérios de aceitação
de conceitos e teorias dentro das universidades e institutos de
pesquisa científica. Não seria o caso de uma certa
idéia ser aceita quando apoiada igualmente por uma variedade
de departamentos científicos após, muitas vezes, difíceis
e laboriosas experimentações? O mesmo se daria com
os princípios espíritas, já que as fontes destes
são os Espíritos por meio dos médiuns. A comparação
não pode ser estendida indiscriminadamente, pois não
segue daí que toda idéia espírita deva sempre
ser sancionada pelo critério da concordância universal
da mesma forma que a aceitação de certos pontos de
uma teoria científica não precisa ser sancionada por
um grande número de laboratórios. Isto, porém,
é apenas um ponto de semelhança entre o Espiritismo
e as doutrinas da ciência comum. A aceitação
dos princípios espíritas está baseado também
no selo de racionalidade e coerência que ele empresta à
sua visão do universo, algo muito em comum com as teorias
das diversas ciências que estudam a matéria e suas
manifestações.
Pretendemos aqui enfatizar que tais desenvolvimentos colocam o Espiritismo
em uma posição ímpar no cenário das
religiões atuais. Para esse fim, é muito interessante
recorrermos à história com o intuito de conhecer melhor
como eram aceitos e avaliadas as verdades pelos povos antigos. Analisando
especificamente a história das religiões (para o mais
perto possível do que seria o objeto de estudo do Espiritismo),
constatamos o quão difícil e às vezes sanguinolenta
pode ser a disputa pela aceitação das idéias
religiosas. No caso específico da religião católica
- com a qual nos encontramos mais próximos culturalmente
- é nítida essa dificuldade. Observando a história
da Igreja, vemos como foi constante o interesse do Plano Maior na
libertação e engrandecimento da Igreja que, amiúde,
se via a braços com discussões muitas vezes estéreis
e sem interesse para as sociedades onde floresceram as organizações
católicas. A grande conseqüência prática
desses debates culminava, muitas vezes, com a morte deliberada de
tantos outros que chegaram perto demais da "heresia".
Ficou famosa, por exemplo, a chamada controvérsia
ariana no começo do Cristianismo. Do historiador
católico Eamon Duffy [2] colhemos
o seguinte relato:
"A consternação
de Constantino em face das divisões dos cristãos
norte-africanos haveria de redobrar quando, tendo deposto Licínio,
o imperador pagão rival no Oriente, ele se mudou para sua
nova capital cristã a 'Nova Roma', Constantinopla. Pois
as divisões da África nada eram em comparação
com a profunda fissura na imaginação cristã
que se abrira, no Leste, por iniciativa de Ário, um presbítero
de Alexandria famoso por sua austeridade pessoal e pela popularidade
entre as freiras da cidade. Ário fora afastado pelo bispo
local por pregar que o 'Logos', a Palavra de Deus que em Jesus
se fizera carne, não era o próprio Deus, mas uma
criatura infinitamente superior aos anjos, embora como eles criada
do nada antes do começo do mundo. Ele via em tal ensinamento
um meio de conciliar a doutrina cristã da Encarnação
com a fé igualmente fundamental na unidade divina. Na verdade,
essa idéia privava o cristianismo de sua afirmação
central segundo a qual a vida e morte de Jesus tinham o poder
de redimir, pois eram ações do próprio Deus.
Contudo, as verdadeiras implicações do arianismo
não foram compreendidas de pronto, e Ário conseguiu
amplo apoio. Mestre de propaganda angariou a simpatia popular
compondo canções teológicas para serem cantadas
por marinheiros e estivadores nas docas de Alexandria. Escapando
aos salões eruditos, o debate teológico irrompeu
nas tavernas e nos bares do Mediterrâneo oriental.''
Como foi resolvido o problema de Ário? Na verdade não
houve uma solução definitiva. Na época a solução
se materializou no concílio de Nicéia (em 325), convocado
pelo imperador. Ainda segundo Duffy:
"Nicéia foi o começo,
não o fim da controvérsia ariana. A derrota dos
adeptos de Ário havia sido imposta por um imperador decidido
a resolver rapidamente as coisas. Eles foram silenciados, não
persuadidos, e, terminado o concílio, reagruparam-se para
contra atacar."
É fato conhecido de todos
que Constantino considerava a emergente fé cristã
uma poderosa força de aglutinação do império
romano que estava prestes a desmoronar. Por isso ele via com angústia
o debate teológico infindável e, por razões
práticas, resolveu impor uma solução. A tradição
católica (isto é, a convergência da opinião
do clero e do laicato crente em torno da interpretação
de certos pontos evangélicos a se materializarem como dogmas)
foi, portanto, uma lenta e encarniçada construção
que se desenvolve até hoje, onde muitas vezes o interesse
político e econômico ditou uma clara delimitação
entre o que seria a verdade e a heresia. Não foram poucos
os movimentos de renovação católicos e de "reforma"
(mesmo antes dos protestantes no Século XVI) e, na Idade
Média, foram considerados grandes os papas que se dedicaram
vivamente a eles [2]. Os que se admiram
de semelhantes movimentos na atualidade apenas desconhecem a milenar
história da Igreja. Como eram, entretanto, tomadas as decisões
em matéria de fé? Onde deveria estar a verdade quando
dois partidos rivais se insuflavam defendendo cada um sua própria
opinião? Esta era decidida oficialmente e com esperanças
para sempre seja a portas fechadas, seja pela aclamação
popular, pelo voto dos bispos (concilium) ou pela
vontade do papa. Na prática a Igreja se viu obrigada a revisar
constantemente seus pontos de vista sobre conceitos marginais ou
centrais à fé católica. É importante
ter em mente que a construção de toda Doutrina Católica
(e o aparecimento dos movimentos de reforma) se guiou em muito pela
necessária manutenção da "pureza
doutrinária" da crença em Cristo. Não
foi senão em função da sustentação
de tal pureza que se ergueram os tribunais crematórios [2]
(a Inquisição) por Gregório IX em 1231. Nesse
sentido, a Igreja de Roma adquiriu sua fama ao longo do tempo por
ter se propagandeado livre da heresia (principalmente diante do
cisma com a Igreja grega2) e guardiã "da fé
dos Apóstolos".
2 - Exemplo das ciências
Compreende-se que na nossa vida
comum estamos diante de situações que exigem uma posição
prática diante dos fatos.
Quando alguém diz: "fulano é casado mas
tem uma amante mais velha", em geral, a primeira atitude
não é a de formulação de teorias que
justifiquem ou não a aceitação dessa "verdade".
Porque a verificação dela é coisa tão
ordinária quanto o próprio fato, sua aceitação
é muito simples. Não se dá o mesmo, porém,
com certas noções e concepções do mundo
que nos cerca. Muito menos com aquelas que dizem respeito à
Doutrina Espírita. Mais uma vez recorremos a exemplos simples
da ciência. A afirmação "a Terra
gira com movimento circular em torno do Sol" parece,
se aplicarmos o critério de aceitação vulgar,
uma afirmação livre de ambigüidades.

Nossas mentes formam instantaneamente
uma idéia perfeitamente clara de seu significado. Por mais
incrível que pareça, no entanto, sua validade não
pode ser inferida da mesma forma como no exemplo de frase anterior.
Ela não era nem um pouco válida aos povos antigos,
porque não era bem isso que eles constatavam quando viam
o Sol se levantar e se por todos os dias, em aparente movimento
circular ao redor da Terra. Ela foi a própria expressão
da verdade para Nicolau Copérnico (1540) na sua nova formulação
do sistema do Mundo. Para ele, a Terra sim girava circularmente
em torno do Sol.
Ela deixou de ter validade para
astrônomos posteriores, em particular Johannes Kepler (1630)
que descobriu que o movimento, de fato, não era circular,
mas sim elíptico "com o Sol ocupando um dos
focos da elipse".

Essa última conclusão
de Kepler deixou de ser válida com Isaac Newton (1670) e
sua teoria da gravitação universal.

Para Newton (assim como para toda
mecânica clássica que ele fundou), o movimento só
seria elíptico se no Universo somente o Sol e a Terra existissem.
Desde que há outros corpos (não podemos nos esquecer
da Lua) o movimento passa a ser "perturbado".
Muito aproximadamente a Terra giraria descrevendo uma "roseta"
ao redor do Sol por causa do "movimento de precessão
dos ápsides" (3)
da órbita descrita por ela. Em termos exatos se, porém,
no Universo, existisse mais um corpo além da Terra e do Sol,
o movimento daquela jamais seria descrito de uma maneira simples.
Mais uma vez, porém, essa afirmação deixou
de ser válida para Albert Einstein (1905), que descobriu
efeitos "relativísticos" não
desprezíveis.

Para Einstein, ainda que não
existisse nenhum outro corpo no Universo, mas somente a Terra e
o Sol, ainda assim o movimento seria o de uma roseta com uma precessão
dos ápsides extremamente lenta para a Terra. A existência
de outros corpos não alteraria muito a descrição
de Newton, embora o movimento se tornasse ainda mais complexo. Tal
exemplo nos mostra o quão difícil é a descrição
da "verdade" relacionada ao objeto de
pesquisa da ciência ordinária, a matéria. A
lição que se tira não é a de que certa
concepção anterior tenha deixado de ser válida
(decretada como "herética" na
visão por dogmas). Ao contrário, as construções
científicas presentes fundamentam-se explicitamente naquelas
do passado. Para nós a memória dos antigos astrônomos
deve ser tão venerável quanto a dos mais recentes.
Mesmo hoje em dia, se quisermos construir um relógio do Sol
por exemplo, podemos perfeitamente usar os conceitos antigos que
consideravam o Sol como girando em torno do Terra. Existe erro nisso?
Diante de nossa presumível ignorância com relação
às questões ainda abertas nas ciências, estamos
certamente tão perto da verdade quanto eles. A verificação
desse fato não pode ser motivo, porém para escândalos,
nem para um descrédito para com as ciências. O que
se faz necessário é, pois, uma nova concepção
de aceitação da verdade, bem como critérios
de compreensão das explicações científicas.
A chave que permite essa nova compreensão pode ser conseguida
estudando-se um pouco a história das ciências assim
como os mecanismos pelos quais as concepções científicas
surgiram e têm operado [3].
As teorias científicas representam as construções
de raciocínio onde essas concepções científicas
se estabelecem. Não é senão pelo fato de tais
conceitos estarem harmonicamente integrados às teorias que
sua aceitação torna-se válida. Além
disso, as teorias devem fornecer uma visão consistente do
universo onde tal fenômeno ocorre. Isso implica não
só em explicar aquele fenômeno particular, mas também
possíveis efeitos a ele correlacionados. Uma excelente teoria
deve, além disso, fornecer as bases para a previsão
de fenômenos desconhecidos. Portanto, não é
a autoridade de um ou de outro cientista que fundamenta a ortodoxia
nas ciências (com sentido muito diferente daquele usado pelas
religiões clássicas). Nunca a verdade científica
haverá de ser decidida em reuniões a portas fechadas,
pela deliberação de conselhos ou organizações
ou baseando-se no palpite dos cientistas mais notáveis. É
verdade que a opinião de um grande cientista a favor de uma
certa teoria particular pode pesar muito na orientação
das pesquisas futuras, mas tal opinião nunca constituirá
a teoria.
3 - Analisando o critério da concordância
universal.
Se na descrição de
um simples fenômeno material somos obrigados a fazer grandes
concessões de tolerância para com aqueles que sustentam
opiniões diferentes, imaginemos por um momento a situação
com os fenômenos e princípios espíritas. Isso
é particularmente forte se considerarmos que o objeto de
estudo do Espiritismo não está sujeito à apreensão
direta pelos sentidos humanos ordinários nem por quaisquer
"aparelhos de medida". Isso não
significa, porém, que esses fenômenos estão
condenados eternamente a serem inexplicáveis, muito menos
que seremos sempre impotentes diante deles. O que se passa com o
Espiritismo (que resulta em sua independência das ciências
comuns) é que ele trata de fenômenos pelos quais as
ciências não se interessam. As ciências estudam
a matéria e o Espiritismo o espírito.
Para assegurar o progresso principalmente moral do ser humano, aguardou-se
o lento, mas inexorável avanço da intelectualidade
humana e o conhecimento espírita foi e tem sido revelado,
em função direta dessas mesmas necessidades morais.
Diante das dificuldades humanas de se conhecer a verdade (como exemplificadas
acima), não é difícil concluirmos que existem
claramente limites à revelação espírita.
A fonte primordial da informação espírita são
os Espíritos. Mas como se dá a aceitação
dessas informações por eles propostas?(4)
No que diz respeito aos princípios da doutrina, existe um
critério explícito. Vamos aqui analisar brevemente
o famoso critério da concordância universal
(CCU). A referência principal sobre esse assunto
é a Introdução ao O Evangelho segundo
o Espiritismo [4], Parte II, "Autoridade da Doutrina
Espírita" *. Todas as citações
de Kardec feitas a seguir foram extraídas dessa referência.
Kardec aponta duas grandes razões para a existência
de um critério de aceitação das informações
espíritas:
(a) "Garantia para a unidade
futura do Espiritismo", com anulação das teorias
contraditórias (Parágrafo 14).
(b) "Garantia contra as alterações que poderia
sujeitar o Espiritismo às seitas que se propusessem apoderar-se
dele em proveito próprio ou acomodá-lo à vontade."
(Parágrafo 16). Tal critério protege assim os fundamentos
do Espiritismo contra enxertias, sejam da parte dos próprios
Espíritos (menos esclarecidos) ou dos encarnados.
A primeira coisa que notamos é que o CCU foi uma descoberta
inteligente de Kardec diante do dificílimo problema da autenticidade
das mensagens dos Espíritos. Assim sendo, ele não
é resultado do ensino dos Espíritos e, portanto, não
pode ser tomado como um princípio da doutrina.
Analisando a referência citada acima, podemos dizer que o
critério tem 3 principais fundamentos.
O Espiritismo não é uma construção humana,
ou seja, não é resultado de uma simples teorização
em torno de observações e análise de fatos.
Os Espíritos têm ampla liberdade de comunicação,
o que anula a possibilidade de privilégios na concessão
da informação espírita (o que, do contrário,
tiraria o caráter "natural" da
revelação espírita).
Os Espíritos têm diversos graus de evolução.
Se a fonte de informação espírita são
os Espíritos, a validade das mesmas depende do grau de lucidez
que eles possuem em relação aquilo que pretendem informar.
Disso vem que nem todos os Espíritos estão igualmente
aptos a servir de fonte de informação e daí
imediatamente, a necessidade de uma seleção das mesmas.
Por razões didáticas, podemos dizer que os três
fundamentos acima possibilitam enunciar o que chamariamos de "CCU
fraco":
Uma garantia existe para o ensino
dos Espíritos: a concordância que exista entre as
revelações que eles façam espontaneamente.
Existem, entretanto condições
operacionais (em relação ao caráter
das mensagens) para que o CCU seja válido. Essas por sua
vez se dividem em dois tipos: condições gerais
e condições específicas. São
condições gerais:
- "Tudo o que seja fora do âmbito exclusivamente moral"
(Final do Parágrafo 6)
- Comunicações que tratem dos fundamentos doutrinários:
"Vê-se bem que não se trata aqui das comunicações
referentes a interesses secundários" (Parágrafo
9).
Ao mesmo tempo, são condições específicas
(ver Parágrafo 8):
- que um só médium receba comunicações
de diversos Espíritos;
- que vários médiums diferentes (em um certo grupo
ou em vários lugares) recebam comunicações
de diversos Espíritos.
Ocorre aqui, porém que se tanto na situação
(I) como em (II) houver a incidência de obsessão, a
aceitação do CCU fraco não é possível.
Disso resulta o que chamaríamos de CCU forte:
"Uma só garantia séria
existe para o ensino dos Espíritos: a concordância
que haja entre as revelações que eles façam
espontaneamente, servindo-se de grande número de médiuns
estranhos uns aos outros e em vários lugares". (Parágrafo
9).
Ao CCU fraco é assim acrescentada
a exigência de repetibilidade geográfica e mediúnica
de uma certa informação. Poderíamos ainda adicionar
uma necessidade de confirmação temporal da informação,
isto é, de que uma dada tese referente a um princípio
se confirme ao longo do tempo. Isso ocorreu diversas vezes durante
a codificação. Do ponto de vista histórico,
Kardec parece também ter sido o único a aplicar o
CCU forte:
"Na posição
em que nos encontramos, a receber comunicações de
perto de mil centros espíritas sérios, disseminados
pelos mais diversos pontos da Terra, achamo-nos em condição
de observar sobre que princípio se estabelece a concordância".
(Parágrafo 13).
A razão de ser do CCU fraco
é que ele parece ser válido desde que os médiuns
não estejam sob efeito de Espíritos mistificadores
(obsessão etc). A exigência do CCU forte foi cumprida
plenamente no momento da codificação por conta da
enorme abundância de fenômenos espontâneos ocorridos
na época. As condições gerais enunciadas por
Kardec (condições A e B) são de crucial importância
para se entender a aplicação do CCU. De fato, não
tem muito sentido exigir um critério de concordância
(seja por vários médiuns ou através várias
instâncias temporais) com as comunicações pessoais
de Espíritos familiares por exemplo. Seria mesmo ridículo
exigir que os Espíritos se comunicassem por médiuns
diferentes após fornecerem muitas vezes provas indubitáveis
de que são eles mesmos que se apresentam a determinado médium.
As especificidade da mensagem dita assim o grau de recorrência
ao CCU. O grau de obviedade com que constatamos a concordância
dos Espíritos esclarecidos em relação às
questões morais é o que fundamenta a condição
geral (A). Suprimir tal condição é equivalente
a dizer que o CCU (na forma forte) sempre foi operacional com relação
às questões morais. Parece assim ser importante compreender
exatamente o que se entende por pontos fundamentais e pontos
secundários, coisa que procuraremos fazer a seguir.
4 - O que são pontos fundamentais
e o que são pontos secundários.
Exemplos.
Por Doutrina Espírita entendemos o conjunto de princípios
fundamentais que sistematizam o Espiritismo, as regras de aplicação
desses princípios às diversas situações
e fenômenos em que ele representa uma alternativa lógica
e racional de explicação. Também a essa doutrina
estão associados os diversos conjuntos de preceitos e regras
éticas que caracterizam o espírita na mais pura acepção
da palavra. Por promoverem o progresso da alma humana, tais regras
fortalecem as relações deste com a Divindade, de onde
deriva imediatamente o aspecto religioso do Espiritismo.
De modo resumido os princípios fundamentais do Espiritismo
são:
Existência de Deus. Deus aqui entendido como
um ser existente de toda eternidade, sem princípio nem fim,
todo poderoso e bom. Sem tentar descrever o impossível, tais
atributos são, digamos, os mínimos necessários
para a noção da Divindade.
Existência do Espírito. O Espírito
aqui é o princípio inteligente independente da matéria,
a constituir um outro princípio. Por ser independente da
matéria, o Espírito não sucumbe nem desaparece
frente às transformações desta, de onde se
tem a noção da imortalidade do ser.
Evolução do Espírito. A medida
que o tempo transcorre, o estado que caracteriza o Espírito
se transforma. Esse estado dá, por exemplo, as características
do Espírito.(5) Da faculdade
que o Espírito tem de interagir com a matéria, ele
passa por transformações que modificam sua personalidade
e características. Essa evolução leva ao aprimoramento
moral do ser e de sua inteligência. No homem, o período
de tempo necessário para o aprimoramento é muito maior
que o tempo de vida médio de sua vida material. Daí
segue, como corolário desse princípio, a idéia
de reencarnação.
Comunicabilidade dos Espíritos. É
possível ao Espírito, desprovido da parte material,
entrar em comunicação com o mundo material por meio
de pessoas dotadas de uma faculdade especial chamada mediunidade.
Pluralidade dos mundos habitados. No Universo são
inúmeros os mundos onde a vida é abundante, e os Espíritos,
segundo semelhantes princípios, evoluem e têm sua existência
mais ou menos material de acordo com o progresso atingido.
Os princípios fundamentais estão todos eles contidos
nas obras básicas editadas por Kardec. Essas obras também
trazem idéias secundárias que auxiliam a explicação
espírita do mundo segundo os princípios fundamentais.
Além disso, a vasta literatura espírita contemporânea
também contém inúmeras obras que desenvolvem
substancialmente a aplicação dos princípios
fundamentais e, porque não dizer, propõem princípios
secundários novos. Esse fato é permitido pelo caráter
progressista da doutrina, e os que teimam em não aceitá-lo
(6) estão, de fato, atrasando a marcha desse progresso.
Vejamos um exemplo concreto que nos auxilie nesse ponto. Suponhamos
que um certo Espírito proponha uma modificação
na lei III de evolução afirmando que a marcha de desenvolvimento
do Espírito não é incessante, mas que, em determinado
ponto de sua vida maior, seja permitido por lei
ao Espírito estacionar. Não é difícil
ver que semelhante idéia depõe contra vários
outros princípios e leva imediatamente a uma contradição
com a noção de livre-arbítrio, pois, se ao
Espírito é possível estacionar, ele não
tem, por lei, nenhuma responsabilidade sobre seus
atos durante o período de falta de progresso. Essa idéia
deve ser rejeitada por estar em contradição com uma
série de noções que protegem os fundamentos
da doutrina.
Tomemos agora um exemplo de uma controvérsia no movimento
espírita que ilustra bem as dificuldades de compreensão
dos princípios espíritas e do ensino dos Espíritos.
Trata-se da famosa proposição do elevado Espírito
Emmanuel sobre as "almas gêmeas"
no seu livro O Consolador [5].
Antes de tudo, conviria considerar uma afirmação desse
Espírito contida logo na introdução ("Definição")
de seus livro:
"Além do mais, ainda
nos encontramos num plano evolutivo, sem que possamos trazer ao
vosso círculo de aprendizado as últimas equações,
nesse ou naquele setor de investigação e de análise.
É por essa razão que somente poderemos cooperar
convosco sem a presunção da palavra derradeira".
Na questão 298 de "O
Livro dos Espíritos" [1], Kardec questiona
os Espíritos sobre a idéia das almas gêmeas,
entendidas como dois seres unidos desde sua origem e predestinados
a se encontrarem fatalmente algum dia. Tratava-se, sem sombra de
dúvida, de um ponto secundário, já que os princípios
fundamentais nada dizem sobre a criação dos Espíritos
(ver questão 78 de "O Livro dos Espíritos").
Além disso, a idéia da almas gêmeas não
contradiz nenhum outro ponto fundamental. Em "O Consolador",
Emmanuel por diversas questões (desde 323-328, "Terceira
Parte", "Amor") reafirma a idéia das almas
gêmeas, entendidas como seres que se buscam na Eternidade
e cuja existência propicia o progresso aos Espíritos,
já que estes, quando separados e caídos no crime anseiam
por se encontrar, constituindo isso um incentivo ao seu progresso.
Emmanuel, de fato, reconhece sua ignorância não só
em relação à criação dos Espíritos
como também sobre como se estabelece o vínculo afetivo
entre eles:
"Para todos nós, o
primeiro instante da criação do ser está
mergulhado num suave mistério, assim como também
a atração profunda e inexplicável que arrasta
uma alma para outra, no intuito dos trabalhos, das experiências
e das provas, no caminho infinito do Tempo."
Entretanto, inquirido a examinar
melhor seus pontos de vista, Emmanuel humildemente pede seja mantido
o texto original, chamando a atenção para a complexidade
do assunto. Esse Espírito apenas queria dizer que ainda estamos
longe de ter a pretensão à verdade de um tema tão
complexo. Por outro lado, se os Espíritos que auxiliaram
Kardec, em diversos pontos de "O Livro dos Espíritos",
afirmaram que a criação dos Espíritos está
mergulhada em um profundo mistério, como poderiam ter dado
uma resposta definitiva à questão das almas gêmeas?
Parece-nos que, nesse caso, bem como em muitos outros, eles haveriam
de estar igualmente longe de dar uma "resposta derradeira".
De qualquer forma, o CCU na forma forte não pode ser invocado
nesse caso por não se tratar de um ponto fundamental. Podemos
tomar a proposição de Emmanuel como uma opinião
pessoal sua, aliás em conformidade com o que vimos que esse
Espírito diz na introdução de "O Consolador".
Entretanto, certos setores do movimento espírita extremamente
ligados à letra e desatentos às sutilezas das idéias
de verdade e ensino dos Espíritos (a se aplicarem igualmente
para as explicações das coisas materiais), tomaram
esse caso como mais um exemplo a depor contra a "pureza
doutrinária" do Espiritismo que se imagina
poder ser imposta a todo custo.
5 - Conclusões
Não foi senão por
uma longa e difícil marcha que a Humanidade, pela colaboração
de inúmeros luminares da cultura, inteligência e moralidade,
conseguiu compreender que a noção de verdade só
pode ser formulada dentro de bases estritamente relativas. Acompanhando
o progresso das religiões e das ciências (mais notadamente
dessas últimas) chegou-se a conclusão que as concepções
a respeito das coisas e dos fenômenos do Mundo tem uma grande
dependência com as épocas, recursos de pesquisa e tendências
culturais dos indivíduos. No estágio onde nos encontramos
jamais poderemos aspirar à verdade absoluta.
Dentro da Doutrina Espírita, tais conclusões são
igualmente válidas. Elas servem ainda mais para reforçar
definitivamente nossa extrema pequenez diante do universo em que
vivemos, a idéia de que nossas pretensões são
ínfimas. Alias essa já é a opinião emitida
por Espíritos elevados quando inquiridos sobre nosso tamanho
nesse universo. Forma-se imediatamente assim a importante conclusão
da inutilidade de quaisquer querelas que venham se formar ao redor
das concepções espíritas, sejam elas fundamentais
ou secundárias. Se nos é possível fechar a
correspondência com o passado, digamos que a única
"heresia" que se pode suspeitar hoje
em dia é a da sustentação de tais querelas
contra nossos companheiros muitas vezes dentro do próprio
movimento espírita. Ela é antiética e depõe
contra todos os princípios evangélicos que o Espiritismo
sustenta abertamente.
Por outro lado, o sentimento de impotência diante da verdade
com relação a muitas questões profundas, não
invalida em nenhum ponto os efeitos inquestionavelmente benéficos
em nossas vidas que a aceitação e prática dos
princípios espíritas - revelados na medida que podemos
compreender - podem gerar. De fato, estamos talvez muito distantes
de compreender por bases racionalmente sólidas princípios
como o do amor, caridade e misericórdia. A própria
evolução onde estagiamos hoje dá-nos muito
mais capacidade para sentir esses conceitos.
Há uma base sim muito sólida onde se estabelecem os
princípios e desenvolvimentos espíritas. Para conquistá-la,
o espírita deve abraçar com zelo o estudo da doutrina
e desvencilhar-se um pouco de velhas concepções. Isso
significa avaliar coerentemente o conteúdo dos novos ensinos,
compará-los aos antigos, notar as sutilezas por detrás
das novas noções aparentemente tão simples.
E nunca esquecer também que o mundo onde vivemos é
de fato muito maior que nossas vãs concepções
podem imaginar.