Não é comum, nos embates
entre crentes e céticos, que conceitos ou princípios
epistemológicos sejam aplicados indiscriminadamente, muitas
vezes em apoio de argumentações mal feitas ou inválidas.
Um desses princípios - de que se tem abusado bastante - é
a famosa "Navalha de Occam" (ou Ockham, em inglês,
Occam's razor). A apresentação feita na Wikipedia
(1) é suficiente para introduzir
o "princípio da parsimônia", como também
chamada essa regra, que pode ser usada erroneamente em defesas pouco
válidas de opinião. Há várias maneiras
de se enunciar esse princípio:
Se em tudo o mais forem idênticas
as várias explicações de um fenômeno,
a mais simples é a melhor (1).
Entidades não devem ser multiplicadas sem necessidade (2).
Não se deve admitir mais causas para as coisas naturais do
que aquelas que são tanto verdadeiras como suficientes para
explicar as aparências. Portanto, aos mesmos efeitos naturais
devemos, tanto quanto possível, associar as mesmas causas.
(I. Newton, 3)
Colocado dessa forma, as chances de
sucesso maior desse princípio pode acontecer com fatos para
os quais nenhum paradigma bem estabelecido exista e estamos diante
de decisão quanto a melhor explicação inicial.
Se um tal paradigma existir, a aplicação da navalha
é muito limitada; ela jamais poderá ser invocada para
desqualificar o paradigma, que adquire status de verdade até
que seja sobrepujado por teoria mais completa.
O princípio pode ser usado diante de embates entre teorias
rivais que resultam nas mesmas "evidências experimentais",
sem nenhuma garantia que leve à teoria "correta".
De fato, há casos que mostram que isso não acontece.
Podemos dizer que esse princípio tem alguma chance orientadora,
desde que as causas subjacentes sejam realmente simples, o que dificilmente
ocorre nos fenômenos naturais ou desconhecidos do homem.
Uma das grandes críticas à aplicação da
navalha é o conceito de "simplicidade". Aquilo que
nos parece "simples" depende de nossa visão do mundo,
daquilo que acreditamos, de onde estamos etc. Portanto, sua aplicação
está condicionada a certo preconceito por parte do experimentador.
Com certeza, nas ocorrências ordinárias, do dia-a-dia,
a navalha não falhará porque as causas subjacentes para
os fenômenos são simples, banais ou amplamente conhecidas.
Assim, se chego em minha casa e encontro a porta arrombada, com móveis
revirados etc, dificilmente concluo que isso foi obra do acaso, de
uma "tempestade" e não que, de fato, minha residência
tenha sido furtada, que um ou mais indivíduos entraram nela
etc.
Mas, o mundo da ocorrências banais dos homens não guarda
semelhança com a dos fenômenos da natureza. A Fig. 1
contém um exemplo exagerado de má aplicação
do princípio de Ockham. É uma comparação
da tabela periódica moderna com a teoria dos quatro elementos,
que estaria certa, segundo Occam, por ser a explicação
mais simples. O erro aqui está em contrapor visões completamente
diferentes da natureza, demonstrando que a noção de
simplicidade depende dessa visão ou das circunstâncias
que cercam o fenômeno:
Ao ouvir o trotar de cascos, pense em cavalos e não em
zebras, a menos que esteja na África, quando então,
certamente, trata-se de zebras.
Fig. 1 Exemplo de aplicação incorreta
da navalha de Occam: contrapor a tabela periódica como uma
explicação para a origem das propriedades da matéria
e a teoria antiga dos quatro elementos. O mais simples nem sempre
é o "verdadeiro", mas, também, a noção
de simplicidade depende da época e da visão de mundo
que se tem.
Ernst Mach formulou uma versão
diferente da navalha de Occam pelo seu "princípio de economia":
Cientistas devem usar os meios
mais simples para se chegar aos resultados e excluir tudo que não
seja percebido pelos sentidos. (2)
A exclusão daquilo que não
é "percebido pelos sentidos" é um desastre
nas ciências naturais, já que a maior parte das causas
dos fenômenos é inacessível aos sentidos humanos
comuns. Notamos, porém, que a navalha de Occam nada diz sobre
a questão da "percepção pelos sentidos",
de forma que essa reformulação de Mach nada tem a ver
com o princípio original.
Da aplicação da
navalha de Occam aos fenômenos espíritas: a hipótese
de super-psi.
A navalha de Occam tem sido uma rota
de desqualificação, por parte de céticos da fenomenologia
chamada "paranormal" ou dos fenômenos espíritas.
Aplicada de forma exagerada, torna-se uma ferramenta de negação
sistemática dos fenômenos, que se reduzem a "alucinações",
falhas de interpretações ou percepção,
exageros psicológicos etc, tudo em nome da simplicidade do
mundo.
Como pretensão teórica, busca-se refutar as "entidades
desnecessárias", cumprindo aparentemente a regra de Ockham
de simplicidade. Trata-se de flagrante desvio do princípio
porque reduz uma ocorrência extraordinária a um fenômeno
banal. Mas, "afirmações extraordinárias
não exigem evidências extraordinárias ?"
(4). À parte da questionabilidade
desse aforismo - que é uma maneira diferente de se afirmar
a navalha de Occam - o núcleo de negação está
na própria refutação das evidências que
já passaram do ponto e se tornam irrefutáveis. Aqui,
o papel da navalha é dar um ar de "sofisticação"
a uma reafirmação de uma crença que, em suma,
trata esses fenômenos como produtos de uma gigantesca fraude
consciente ou não. Não há dúvidas da aplicação
incorreta desse princípio aqui, de forma que não há
razão para se preocupar com ela.
Mas, há uma famosa controvérsia, entre "Super-Psi"
versus "sobrevivência" que forneça um exemplo
talvez de aplicação da navalha. Algumas referências
sobre esse embate são (5, 6, 7, 8). Em termos mais simples,
trata-se de comparar a explicação espírita (sobrevivência
após a morte, existência dos desencarnados como fonte
de informação mediúnica etc) com algumas teses
que refutam a sobrevivência pela admissão de faculdades
quase oniscientes à mente humana (a chamada "tese super-psi").
"Super-psi" é uma causa teoricamente admitida como
disseminada em alguns humanos, e que seria responsável por
todos os fenômenos chamados "paranormais", sem a necessidade
de postular a sobrevivência. De fato, "super-psi"
é a única alternativa para os que aceitam a realidade
dos fenômenos extraordinários do Espiritismo, sem, entretanto,
aceitar sua real causa, o espírito.
Fig. 2 Respostas: "Simples, mas erradas;
complexas, mas corretas".
Para os leitores que ainda não
se inteiraram completamente do debate, oferecemos um resumo. As referências
(6) e (8)
são favoráveis a "hipótese super-psi"
(HSP) e contrárias à "hipótese da sobrevivência"
(HSV), como a chamam. Avançando na apresentação
desse refinado ceticismo, adiantamos alguns pontos (ver
6) sobre HSP:
- As evidências fornecidas pelos chamados
"fenômenos anômalos" são aceitas
tais quais são ou, ao menos, acredita-se que uma base de
fenômenos verídicos pode ser levantada em torno da
qual se dá a disputa pela melhor explicação.
O contenda de HSP X HSV não se dá mais em um ambiente
cético em relação aos fenômenos, mas
em relação a explicação representada
por HSV;
- Muitos desqualificam a ideia da sobrevivência
por considerá-la ininteligível e, portanto, estar
além de uma solução científica;
- Como não existe um mecanismo detalhado
que explique como se dá a manifestação mediúnica,
assume-se que não existiriam limites para a manifestação
de "super-psi". Dessa forma, essa faculdade pode produzir
qualquer tipo de fenômeno, em qualquer momento, lugar ou
intensidade. Essa é a hipótese mais importante e
mais forte feita pelos proponentes de HSP;
- A operação de HSP não exige
esforço por parte de seu agente, ela sequer exige intenção:
é a hipótese da varinha mágica de
Braude (6). Essa assunção é importante porque
os fenômenos psíquicos são reconhecidamente
incontroláveis;
- Como consequência disso, não existem
"indicadores fenomenológicos" que permitiriam
distinguir HSP de outra causa meramente fortuita, isto é,
que HSP pode ocorrer de forma generalizada, sem que saibamos disso.
É necessário admitir isso, pois, se não fosse
assim, seria possível ostensivamente separá-la de
ocorrências com causas comuns;
- HSV deve ser vista com reservas, porque ela implicitamente
requer uma identificação forte entre a personalidade
que viveu e aquela que se comunica. Seria importante "provar"
isso antes de se desprezar uma forma mais fraca de sobrevivência,
como aquela que diz que a personalidade sobrevive "dissipando-se
em um grande todo" ou existindo em uma realidade completamente
separada da existência ordinária: é como acreditam
alguns cristão com a ideia de céu e inferno. Portanto,
não é contra qualquer ideia de sobrevivência
que se colocam os adeptos da HSP, mas contra aquela que implica
em um fenomenologia especial como produto da sobrevivência
e da manifestação da personalidade desencarnada
(em suma, é contra o Espiritualismo e o Espiritismo que
HSP é proposta);
- A operação da faculdade de super-psi
é admitida tanto quando o fenômeno manifesta informação
que pode ser transmitida entre pessoas (chamado "informação
sobre o quê") como com manifestação de
habilidades, tendências, gostos típicas do personalidade
desencarnada - a chamada "informação sobre
como". Aqui, Braude (6) tece várias considerações
sobre isso e busca rejeitar o princípio de que "aquilo
que não pode ser comunicado de forma normal, não
pode comunicado de forma paranormal". Sua principal explicação
para não limitar HSP em "comunicar habilidades"
usa o próprio fenômeno paranormal e diz que nossas
capacidades (e obstáculos) normais de aprendizado são
"suspensas" no estado alterado, como, por exemplo, durante
uma hipnose (ver p. 139 em 6). Assim, de novo, HSP seria capaz
de fazer qualquer coisa;
- Com base em algumas falsas "identificações"
de desencarnados em sessões conduzidas por pesquisadores,
Braude se pergunta como HSV pode ajudar a entender como o comportamento
exibido por algumas personalidades durante o transe se mostra
tão diverso daquela historicamente conhecida. Para os proponentes
de HSP, isso levanta dúvidas quanto à validade da
sobrevivência, já que uma identificação
completa não é possível em alguns casos.
Dessa forma, HSP não estaria descartada como explicação;
Como podemos resolver a questão?
No entendimento dos proponentes de HSP, a sobrevivência é
admitida de uma forma muito específica. O que sobrevive necessariamente
deve se manifestar como essa ou aquela personalidade pregressa,
considerando os registros históricos disponíveis tais
quais são. Assim, Braude em (6)
rejeita alguns fenômenos notórios de manifestação
de desencarnado com base na falta de evidências históricas.
Ora, a maioria das ocorrências e personalidades históricas
jamais deixaram quaisquer evidências (considere as personalidades
históricas de Jesus, Buda, Moisés etc), o que não
é prova da inexistência dessas mesmas personalidades.
A incontrolabilidade e independência dos fenômenos psíquicos
se deve à inteligência da fonte. Isso segue de forma
natural de HSV, mas é uma hipótese a ser admitida
forçosamente e sem justificativas no cerne de HSP como diz
a assunção 4 para se adequar a incontrolabilidade
dos fenômenos.
A suspensão dos bloqueios normais de
aprendizado das "habilidades como", que é feita
na assunção 7 acima, certamente colide com a hipótese
de que HSP não precisaria de condições "especiais"
(transe etc) para se manifestar. Não há explicação
sobre isso.
Ademais, uma leitura atenda das explicações fornecidas
em apoio a HSP mostra que seus proponentes misturam fenômenos
que têm origem diferente: uma coisa é a manifestação
mediúnica e outra as lembranças de vidas passadas.
Em (6)
as duas são supostamente explicáveis via HSP, porém,
as circunstâncias com que se manifestam (memória de
vida passada em crianças X xenoglossia com transe etc) sugerem
fortemente que se tratam de fatos com causas diferentes. Isso acontece
porque supõem-se que HSP não tem limites de ação,
logo, ela pode dar origem a qualquer comportamento "paranormal".
Com relação a problemas de identificação,
toda a dificuldade está relacionada com a ideia que se faz
sobre como os desencarnados se manifestam: supõe-se sempre
que - obrigatoriamente - devam se comportar exatamente como eram
antes de sua morte. Como Kardec argumentou, não existem garantias
que determinado nome que assine uma mensagem seja exatamente daquela
personalidade a qual ele se refira. Aqui, certamente, os detalhes
e mecanismos específicos que regem o fenômeno mediúnico
têm papel fundamental e a explicação correta
está nas mãos daqueles que fizerem melhor ideia sobre
esses mecanismos.
Seria possível invocar a navalha de Occam e resolver
a questão? Certamente, nesse nível superficial de
abordagem, HSP seria a explicação "mais simples",
pelo menos no número de causas (ela só postula a existência
de "super-psi"), mas à custa de quê? De se
imaginar a mente humana produzindo fenômenos aleatoriamente,
em substituição a causas naturais, como uma faculdade
praticamente onisciente? De se desprezar as circunstâncias
e peculiaridades das manifestações, já que
não conhecemos os detalhes do fenômeno e, portanto,
tudo vale? Não é cômodo admitir HSP como fenomenologicamente
indistinguível de uma causa natural para um fenômeno
físico banal como diz a assunção 3? Será
mesmo que não existem os tais "indicadores fenomenológicos"
de que fale a hipótese 5? Seria mesmo concebível que
habilidades e capacidades possam ser "comunicadas" como
admite 7? Diante de todas essas hipóteses "ad hoc",
é impossível querer aplicar a navalha.
Somos da opinião que é preciso sondar com muito cuidado
os fatos e os dados antes de se aceitar teorias baratas como HSP.
No nível de esforço presentemente gasto na investigação
dos fatos psíquicos, HSP se apresenta como uma alternativa
que "salva as aparências" para aqueles que rejeitam
a sobrevivência completamente, mas tem o mérito de
aceitar os fenômenos. Ela existe graças a essa falta
de esforço e por causa da raridade de alguns fatos psíquicos
que não receberam a devida atenção ou adequado
tratamento, mas que podem hoje ser "explicados" com base
nas escarças descrições remanescentes. Nas
palavras de A. Conan Doyle:
É um erro capital teorizar antes
de se ter dados. Inconscientemente, começamos a torcer
os fatos para se acomodar a teorias e não as teorias aos
fatos.
Referências
(1) https://pt.wikipedia.org/wiki/Navalha_de_Occam
(2) https://en.wikipedia.org/wiki/Occam%27s_razor
(3) Newton, Isaac (2011) [1726]. "Philosophiæ Naturalis
Principia Mathematica" (3a edição). Londres:
Henry Pemberton. ISBN 978-1-60386-435-0.
(4) Sobre isso ver nosso post: Crenças Céticas XIV.
(5) H. Hart. "Survival versus Super psi". http://www.survivalafterdeath.info/articles/hart/superpsi.htm
(6) S. Braude (1992). Survival or Super-psi? Journal of Scientific
Exploration, 6(2), pp. 127-144. http://www.sgha.net/library/jse_06_2_braude.pdf
(7) J. Beischel e A. J. Rock. Addressing the survival versus psi
debate through process-focused mediumship research. http://windbridge.org/papers/JP73BeischelRock2009.pdf
(8) M. Sudduth (2009). Super-Psi and the survivalist interpretation
of mediumship. Journal of Scientific Exploration, 23(2), pp. 167-193.
http://michaelsudduth.com/wp-content/uploads/2016/01/SurvivalMediumship.pdf