Fundamentos
I
- Como se deve entender a relação entre o Espiritismo
e a Ciência
Resumo
Discute-se aqui brevemente a interação
entre a Doutrina Espírita e as ciências. Essa relação
pode ser entendida de diversos aspectos, uma necessariamente que
considera o aspecto científico do Espiritismo. É importante
porém frisar que não pode haver compreensão
correta dessa interação, se não se tem compreensão
correta do sentido em que se fala de aspecto científico do
Espiritismo. Essa discussão apresenta implicações
importantes para os espíritas que acreditam na necessidade
de atualização da Doutrina Espírita.
Observação:
Neste artigo, 'Espiritismo' e 'Doutrina Espírita' são
usados como sinônimos, entendendo-se por eles o conjunto de
princípios definidos em 'O Livro dos Espíritos' por
Allan Kardec.
1. Introdução
Todo adepto com razoável
entendimento dos princípios da Doutrina Espírita sabe
que ela é um conjunto de princípios que se apresentam
como afirmações sobre o mundo. Não é
menos certo que muitos desses princípios, ainda que se apliquem
ao objetivo maior do Espiritismo que é o estudo do elemento
espiritual, contém afirmações singulares e
gerais sobre o mundo material. Isso necessariamente nos leva à
fronteira entre o Espiritismo e as ciências bem estabelecidas
que também afirmam coisas sobre o mundo. Para que haja evolução
na forma de aquisição de conhecimento – um dos
objetivos das ciências e também do Espiritismo, no
caso, conhecimento sobre o mundo espiritual – faz-se necessário
conhecer exatamente como se dá essa relação.
A ciência, tal como a conhecemos
hoje, é produto da evolução lenta com que nossa
sociedade passou nos últimos séculos. Não existe
um consenso geral (na forma de uma formula ou padrão estabelecido)
sobre qual seria a definição exata de ciência.
Podemos, porém, descrevê-la de acordo com alguns de
seus atributos bem conhecidos. De todos eles, um que parece conveniente
para caracterizar as chamadas ciências bem estabelecidas (física,
biologia, química e outros) é a noção
de paradigma [1]. Por paradigma entende-se
um conjunto de princípios que versam sobre determinado objeto,
e que se encontram naturalmente relacionados a um grupo ou conjunto
de fenômenos naturais. Fazem parte do corpo que forma o paradigma
também leis complementares a completar o conhecimento, permitindo
a aplicação das leis do corpo principal aos fenômenos
observados. Os paradigmas são os campos de trabalho tradicional
na pesquisa normal das grandes áreas do conhecimento científico.
Assim, Ciência não é a mera coleção
de fatos e hipóteses mas algo muito mais complexo, em constante
mutação através das gerações
possuindo seus próprios sistemas de proteção
a fim de evitar que seu corpo principal de doutrina seja corrompido.
Não se pode mudar a orientação de determinado
programa de pesquisa de uma noite para outra, ainda que se tivesse
uma boa razão para isso. As mudanças nos programas
de pesquisa que caracterizam o paradigma – conhecidas como
revoluções científicas – necessitam de
um tempo de maturação e, muitas vezes, uma mudança
no posicionamento dos cientistas, na maneira como eles vêem
o mundo. As revoluções científicas são
acontecimentos de curta duração seguidos muitas vezes
de estágios de desenvolvimento mais ou menos estáveis.
Semelhantes considerações,
como pode se compreender, não devem ser deixadas de lado
na análise do assunto que serve de título a este texto.
Da mesma forma, de uma análise imparcial da própria
Doutrina Espírita deve nascer um modelo de idéias
que consiga descrever corretamente o que se entenda por “aspecto
científico” do Espiritismo. De posse desses dois ingredientes
(compreensão correta do aspecto científico do Espiritismo
e do significado da Ciência) podemos então considerar
seriamente um debate sobre a relação entre esses dois
ramos do conhecimento humano. Apresentamos aqui brevemente alguns
subsídios para se iniciar esse debate.
2. Noções incorretas
de ciência espírita e ciência normal. Discutindo
um modelo mais apropriado de ciência.
Um número razoável
de espíritas e simpatizantes procuram abordar o aspecto científico
do Espiritismo de forma a moldá-lo segundo a visão
parcial do conhecimento considerado genuinamente científico.
Essa visão parcial vê a ciência como uma atividade
extremamente rigorosa em seus métodos de análise,
e acredita que os sucessos obtidos com o desenvolvimento científico
– que permitiram compreender os fenômenos e desenvolver
novas aplicações tecnológicas – são
produto direto desse rigor metodológico. Nada poderia estar
mais longe da realidade. O sucesso da ciência atual, que se
materializa na forma de produtos tecnológicos e sofisticados
métodos numéricos de reprodução da realidade
em seus mínimos detalhes, não decorre apenas de um
rigor metodológico qualquer que seja ele, mas principalmente
das teorias que nascem em sua forma primitiva na cabeça dos
cientistas. Semelhante compreensão parcial da realidade é
comum para muitos espíritas que acreditam que os fenômenos
espíritas devam satisfazer necessariamente a critérios
de adequação empírica conforme os moldes das
ciências normais. Para esses, a “ciência espírita”
tem a haver unicamente com a parte fenomenológica (na forma
da mediunidade em seus múltiplos aspectos) com exclusão
de qualquer consideração de princípios. O Espiritismo
é visto como um amontoado de fenômenos a partir dos
quais se pode inferir um conjunto de afirmações mais
gerais e deduzir conseqüências. Seguindo esse caminho,
logicamente os inimigos do Espiritismo se comprazem em negar os
fenômenos ou inventar explicações alternativas
que parecem atingir os supostamente deduzidos princípios
espíritas. Coincidentemente, essa visão também
é popularmente atribuída à ciência. De
uma maneira simplificada podemos esquematizar o entendimento popular
de ciência – que dá origem ao chamado “método
científico” – de acordo com a Fig. 1.
Nessa figura, um observador bem intencionado
(quer dizer, isento de pré-julgamentos ou explicações
próprias consideradas tendenciosas) observa os fenômenos
da natureza. Essa observação deve ser igualmente isenta
e completa suficiente para não permitir perda de informação
a respeito dos fenômenos. Deve ser realizada de forma a cobrir
o maior número de “condições” possíveis,
o que leva à necessidade de se repetir testes experimentais
um grande número de vezes. A partir dos fenômenos ele
elabora hipóteses consideradas razoáveis que, por
um processo mal explicado, degenera (ou se sintetiza) em “leis
gerais”. Esse processo de criação de leis gerais
é denominado indução. A partir das leis induzidas
outros fenômenos semelhantes (ou os mesmos) podem ser explicados
por um processo denominado dedução. Um ponto importante
a ser considerado diz respeito às conseqüências
para o desenvolvimento de uma ciência se o modelo mostrado
na Fig. 1 for considerado ideal. Compreensivelmente pode-se com
ele destruir qualquer tipo de explicação negando-se
simplesmente os fenômenos. Desde que esses não existam,
não há sentido em se acreditar nos princípios
deles supostamente induzidos. Isso acontece com os que negam inúmeras
vezes com os fatos psíquicos, e com ele a idéia de
comunicação entre vivos e mortos e a sobrevivência
dos seres após a morte.
Artigo originalmente publicado no boletim
do GEAE, número 472 (2004).
Referências
[1] A. F. Chalmers, “O que é ciência
afinal ?”, (1993), Ed. Brasiliense.
Fonte: http://eradoespirito.blogspot.com/2011/01/fundamentos-i-como-se-deve-entender.html
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Fundamentos II
- Como se deve entender a relação entre o Espiritismo
e a Ciência
Como dissemos, o sucesso da ciência contemporânea
bem estabelecida advém de sua estrutura intrínseca
onde os fenômenos não têm papel central. O papel
principal no estabelecimento da ciência é atribuído
aos paradigmas ou teorias. Muitas vezes pode acontecer que uma determinada
teoria seja melhor que uma outra, ao mesmo tempo que ninguém
acredite nela. Teorias como realizações mentais ou
afirmações sobre o mundo são criadas livremente
por um grupo restrito de cientistas (às vezes apenas um indivíduo),
e portanto, fazem parte de sua bagagem cultural como crenças.
É pela adequação dessas teorias aos fenômenos
que elas se tornam aceitas a um grupo maior. O problema é
que a definição de experimentos ou a previsão
de determinadas ocorrências fenomenológicas depende
da teoria. Poderíamos dar inúmeros exemplos dessa
situação. Em física – que é uma
das ciências costumeiramente consideradas com grande prestígio
– é bastante nítido a ocorrência de “previsões
experimentais” como resultado direto de teorias sofisticadas
onde nada remotamente parecido com o fenômeno em questão
tenha entrado como ingrediente. Algumas outras vezes, são
feitas previsões de objetos ou circunstâncias nunca
observados anteriormente. Essa inversão de papéis,
no que tange à importância para o desenvolvimento da
Ciência entre teoria e experimento, é a principal causa
de confusão tanto no que se refere à compreensão
correta da Ciência em si como do aspecto científico
do Espiritismo. Conseqüentemente deve-se fazer um esforço
para compreender essa inversão a fim de que seja útil
na discussão da relação entre o Espiritismo
e a Ciência.
A Ciência só tem início
com a teoria. Essas podem ter qualquer origem – sejam motivadas
por algum acontecimento experimental ou por algum sonho de pesquisador
(como no famoso caso do sonho de Kekulé ao conceber o formato
dos anéis de carbono no benzeno). A origem do conhecimento
científico não é importante para a Ciência.
Isto que dizer que uma determinada teoria não tem valor maior
ou menor conforme sua origem, embora muitos cientistas sejam levados
a crer ou não nelas de acordo com a força de autoridade
de seus proponentes. A partir da proposição da teoria,
segue a tentativa de explicação dos fenômenos
com ou sem a ajuda de leis complementares que não fazem parte
do núcleo principal da teoria. Como um exemplo rápido
podemos considerar o processo de previsão de tempo na meteorologia.
As leis que governam os fenômenos meteorológicos são
leis físicas, assentadas em princípios térmicos
e termodinâmicos. Para prever a situação de
tempo com todos os detalhes, pode-se construir modelos numéricos
sofisticados onde essas leis estejam embutidas juntamente com “condições
de fronteira” específicas tais como a separação
entre continentes e mares, o estado inicial de temperatura de uma
determinada região, a posição do sol (sua altura
em relação ao solo) etc. Essas são as leis
complementares.
Dissemos que a maior parte das
pessoas considera a noção popular a própria
essência do “método científico”.
Isso é particularmente forte nas denominadas “ciências
parapsicológicas”, ou o conjunto de disciplinas que
tem como objetivo explicar de maneira supostamente científica
os fenômenos mediúnicos no Espiritismo. Essas disciplinas
apresentam escassa discussão teórica, dando enorme
ênfase a descrição puramente fenomenológica
dos fatos psíquicos. Quando são fornecidas explicações,
essas procuram ligar-se fortemente aos fenômenos. Dessa forma,
é comum a tentativa de explicação simplificada
para cada fenômeno. Assim a telepatia é invocada como
“hipótese” para explicar as comunicações
dos Espíritos, negando-se a existência desses últimos.
Ora a “telepatia” é definida simplesmente como
a capacidade de transferência de informação
entre duas “mentes” (no caso, pessoas). Essa capacidade
pode ser constatada de forma experimental. É um fato e não
um princípio sobre o qual se possa estabelecer uma explicação.
Nas “ciências psi” busca-se dar explicações
aos fatos utilizando-se os próprios fatos. Nesse processo
explicações são muitas vezes tornadas verossímeis
pela sua designação por nomes empolados, difíceis
de se pronunciar e com nenhum apelo intuitivo. É muito conhecida
a frase, dada a guiza de explicação, de que os fenômenos
psíquicos se fundamentam nas capacidades desconhecidas do
cérebro. Diz-se que os seres humanos normais utilizam apenas
“10% da capacidade cerebral”. Ora, qual a base para
semelhantes afirmações? Como se mede essa capacidade
cerebral? Nas “ciências parapsicológias”
ocorrem falhas graves de compreensão dos verdadeiros atributos
de uma disciplina para ser denominada ciência.
Já discutimos muito
brevemente que uma verdadeira ciência se constrói utilizando
modelos, teorias ou paradigmas. A Fig. 2 ilustra essa “concepção
de ciência” mais próxima da realidade. Há
num centro irradiador de explicações (a teoria), e
integrado naturalmente aos fenômenos naturais a respeito dos
quais a teoria ou paradigma versa. Leis complementares reforçam
a estrutura do paradigma e integram os princípios, que fazem
parte dele, aos fenômenos. Juntamente com essas leis, o paradigma
fornece explicações para os fenômenos, inclusive
alguns desconhecidos. É possível assim que no corpo
teórico que constitui o paradigma, já exista o gérmen
para explicação de muitos fenômenos nunca observados.
Esse modelo encontra respaldo na história do desenvolvimento
de muitas ciências bem sucedidas.
Também o modelo da Fig. 2 não
faz nenhuma referência à necessidade externa de “instrumentos
especiais de medida” e nem a métodos supostamente rigorosos
de medida experimental, pois a existência desses aparelhos
(a explicação de seu funcionamento) só se justifica
pelo paradigma que para eles fornece explicação. É
o caso, por exemplo, da utilização de equipamentos
ópticos para estudar o movimento dos planetas e outros corpos
celestes. A explicação do funcionamento dos equipamentos
é fornecida pela óptica, uma área da física,
não necessariamente ligada à astronomia ou astrofísica.
É possível englobar os princípios da óptica
e da mecânica dos corpos em um corpo de teoria comum (no caso
a “física”), mas prefere-se mantê-los separados
por referirem a domínios fenomenológicos diferentes.
Ressaltamos porém que o grau de complexidade desses aparelhos
não tem correlação alguma com o rigor com que
eles realizam suas medidas. Muito ao contrário, nesse modelo,
estimula-se a realização de testes experimentais simples,
de observação direta, onde haja pouca influência
de fatores de erro a comprometer a realização das
medidas. No modelo da Fig. 2 a teoria tem papel fundamental e não
o fenômeno. Desde de que se creia e desenvolva a teoria, explicações
para os fenômenos irão aparecer. Visto de outra forma,
os fenômenos são justificados (explicados) pelo modelo
a ponto de só poderem ser percebidos por aqueles que disponham
de conhecimento do paradigma. Muitas vezes é possível
notar que um mesmo paradigma fornece explicações para
inúmeros fenômenos – muitos deles tratados inicialmente
como sem correlação alguma com a teoria. Há
inúmeros exemplos como esses nas chamadas “ciências
normais”, as ciências que se desenvolveram historicamente
segundo o modelo “paradigmático” de ciência.
Percebe-se que a negação dos fenômenos não
traz conseqüência alguma para a ciência vista nesse
sentido pois o paradigma tem papel fundamental. Nesse caso, negar
um fato soa profundamente suspeito de falha de compreensão
da teoria ou paradigma. Não há também nenhuma
preocupação com o grau de comprometimento do cientista
com sua crença: pelo contrário admite-se abertamente
que ciência é uma atividade onde a criatividade e crença
particular do cientista tem uma importância muito grande e
benéfica para a ciência. Há, porém, limites
para a livre criação, o corpo teórico deve
ser interrelacionado e coerente, isto é, seus princípios
não devem conflitar entre si. Além disso, a excelência
de um determinado paradigma é medido em termos de sua capacidade
de explicar os fenômenos a ele ligado e também prever
outros. Assim, não basta apenas criar muitas explicações,
essas originam-se de princípios mais primitivos e harmônicos,
mais ou menos imutáveis (Essa imutabilidade não deve
ser entendida com a rigidez dos dogmas. Há um conjunto de
regras muitas vezes não explícitas que protegem o
conjunto de princípios de modificações mal
justificadas).
Entendemos que a parte científica
do Espiritismo deve ser entendida conforme a Fig. 2. Nele os fenômenos
são parte secundária e não fundamental da doutrina.
A Doutrina Espírita contém o núcleo principal
teórico da ciência espírita. Da utilização
de leis complementares chega-se a explicação dos fatos.
No caso dos fenômenos mediúnicos, a existência
do perispírito como agente intermediário entre o Espírito
e o corpo material é fundamental para compreender a imensa
maioria dos fenômenos mediúnicos também denominados
psíquicos. Entretanto, a Doutrina Espírita vista como
paradigma com conseqüências mais profundas, abarca um
conjunto muito mais extenso de fenômenos: fenômenos
sociais (principalmente comportamentais), biológicos, históricos,
patológicos etc. Assim, embora não seja seu objetivo
principal, o Espiritismo contribui a muitas áreas do conhecimento,
em particular àquela que busca compreender a origem, essência
e futuro do homem entendido como uma criatura sem limite no tempo.
O Espírito é assim o objeto de estudo da ciência
espírita e o paradigma espírita é formado por
um conjunto harmônico e mais ou menos fixos. Princípios
como a existência de Deus, do espírito como elemento
fundamental (além da matéria), da evolução
do espírito e da comunicabilidade entre os Espíritos
e os homens (reinterpretados como Espíritos encarnados) são
alguns dos princípios fundamentais. Esses princípios
juntamente com outros (tal como a busca da felicidade por parte
das criaturas) explicam e prevêem os fenômenos. Consideremos
o caso das doenças denominadas “psiquiátricas”.
Faz parte desse enorme grupo de patologias mentais, (que afetam
o comportamento do indivíduo) um grupo não menos importantes
de doenças provocadas por influências espirituais –
as obsessões em seus mais diferentes graus. Compreender o
surgimento dessas doenças, que fornece idealmente a base
para um tratamento eficaz, é tarefa simples para o Espiritismo
(desde que corretamente aplicado), mas muito difícil para
as correntes que negam a existência do Espírito, e
que buscam uma explicação puramente material. Já
citamos aqui a telepatia. Dentro do paradigma espírita, a
comunicação entre Espíritos é um fato
bem estabelecido. Em particular, a comunicação entre
Espíritos encarnados é uma forma particular dessa
capacidade de comunicação. Temos assim uma explicação
muito natural (dizemos “intuitiva”) da telepatia. Essa
explicação funda-se num princípio muito mais
geral que explica simples e igualmente bem a enorme variedade de
comunicações ou fatos psíquicos.
3. Como se deve entender a relação
entre o Espiritismo e a Ciência.
Depois dessa discussão
inicial, fica claro que não se pode falar em uma receita
infalível, tal como o sonho de um método rigoroso,
para se fazer ciência. Ela é o resultado de uma atividade
altamente complexa e integrada no tempo através de grupos
de indivíduos formando uma cultura. O Espiritismo, diante
das considerações feitas, classifica-se plenamente
como uma doutrina científica. Não segue daí
que deva adotar o modelo popular de ciência por algumas das
falhas que discutimos anteriormente. Essa discussão é
importante para os que consideram a Doutrina Espírita, desenvolvida
nos livros básicos de Allan Kardec, como conhecimento ultrapassado.
Não existe nada mais longe da realidade. Como dissemos, o
corpo principal da teoria é protegido com certa rigidez.
Modificações no paradigma só acontecem –
são conclusivamente admitidos como necessários –
se houverem razões muito fortes para isso. Tal não
é o caso do Espiritismo proposto pelos Espíritos que
auxiliaram Kardec. Da mesma forma que negar os fenômenos é
sinal de falha na compreensão do paradigma, com muito mais
razão, as tentativas de “reforma” do núcleo
principal do Espiritismo (invenção de novos princípios
em desacordo com aqueles) é sinal forte de falha na compreensão
desses princípios. Clamores recentes nesse sentidos são
assentados em considerações bastante pueris, e deixam
entrever uma dificuldade de compreensão do verdadeiro caráter
do Espiritismo entendido como ciência.
Artigo originalmente publicado no boletim do GEAE,
número 472 (2004).
Fonte: http://eradoespirito.blogspot.com/2011/01/fundamentos-ii-como-se-deve-entender.html
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Fundamentos III
- Como se deve entender a relação entre o Espiritismo
e a Ciência

A tarefa agora é começar
a entender como se estabelece a relação entre o Espiritismo
e as ciências. Certamente não será objetivo
do Espiritismo competir com esses ramos de atividade humana. Por
isso, não é tarefa do Espiritismo fornecer explicações
alternativas ou desenvolver o núcleo principal das ciências
com as quais o Espiritismo faz fronteira. Não se deve esquecer
que o Espiritismo como movimento é uma realização
humana. O cientista que é espírita – se trabalha
profissionalmente com alguma dessas áreas correlatas –
tem seus próprios meios e procedimentos, advindos do estudo
adquirido de sua atividade. Como faz parte do processo de desenvolvimento
da ciência normal, ele pode (e deve) utilizar-se dos meios
a sua volta (inclusive sua própria cultura) para fazer desenvolver
sua ciência que tem suas regras próprias. Como dissemos,
a ciência não faz caso da origem do conhecimento, o
importante é que esse se organize como um paradigma bem estruturado,
coerente e naturalmente integrado aos fenômenos. Fazemos abaixo
alguns breves comentários das regiões de fronteira
entre a Doutrina Espíritia e as ciências enfatizando
alguns pontos que nos parecem interessantes:
Espiritismo X Astronomia: é bem conhecida
as descrições da origem do sistema solar (nebulosa
primordial) existente no livro “Gênese” [2]
de Allan Kardec. O capítulo VI de “Gênese”
também fala de inúmeras galáxias (denominadas
“nebulosas” – entendidas como agrupamentos de
bilhões de estrelas como a “Via-Láctea”)
numa época em que não se havia certeza desse fato.
Há relatos de comunicações de Espíritos
anunciando a existência de satélites desconhecidos
em outros planetas. Além disso, o Espiritismo parece ter
se antecipado às discussões que deram origem à
exobiologia, proposta para estudar as formas de vida extraterrestres.
É interessante observar que, uma vez classificada como um
planeta qualquer, a Terra passou a ser vista como um dos muitos
planetas a ter vida inteligente no Universo (algo muito difícil
de se acreditar no século 19). O Espiritismo prevê
abertamente, pelo princípio da “pluralidade dos mundos
habitados”, a existência de vida inteligente fora da
Terra (ainda a ser verificada pelos métodos normais –
contato físico). Antes disso, porém, previu a existência
de inúmeros planetas orbitando as estrelas, um fato que se
tornou tema de pesquisa contemporâneo, graças ao desenvolvimento
de novos métodos de observação muito mais precisos.
Muitos planetas foram encontrados a partir de 1990 em torno de estrelas
próximas.
Espiritismo X Física: aqui deparamo-nos
com algumas afirmações feitas em “O Livro dos
Espíritos” que parecem ter antevisto a modificação
radical por que passaria a física a partir do século
20. Os Espíritos falaram em uma forma que “que não
sois capaz de apreciar” [4] a
respeito da estrutura dos átomos (uma alusão às
“nuvens de probabilidade” dos elétrons?) num
contexto bastante diferente para a física da época.
Considerações sobre a origem do Universo são
feitas no começo de “O Livro dos Espíritos”,
levando o Espiritismo para a fronteira com a cosmologia. É
preciso, porém, ter cautela em se tratar a questão
inversa: a da influência da física no Espiritismo.
Muitos falam abertamente nas diversas “energias” que
constituem o mundo espiritual, esquecendo-se que “energia”
é um conceito muito bem definido em física e que não
admite reinterpretações dessa forma [5].
Outros levantam a possibilidade de entender o próprio mundo
espiritual como um “contínuo quadridimensional”
do mundo físico. Para se utilizar conceitos e sugestões
advindos do Espiritismo na física, faz-se necessário
grande competência em física uma vez que os núcleos
das teorias (tanto do lado espírita como material) possui
certa resistência a mudanças, além de estar
fundamentado em teorias profundamente matemáticas. Por isso
mesmo, tentativas de modificação de conceitos por
sugestão de ambos os lados (de um lado para outro) são
muito duvidosas no que diz respeito a qualquer avanço significativo
no conhecimento. É importante também considerar as
questões de diferença de linguagem (significado de
termos e conceitos dentro de cada teoria particular) quando essa
linguagem tenta conectar um fenômeno supostamente descritível
tanto pela física como pelo Espiritismo. Minha impressão
particular é de que o grau de especificidade atingido pela
física (especialização na forma de pulverização
de campos de compentência) torna pouco viável qualquer
tentativa “fácil” de interação.
Espiritismo X Biologia (medicina): aqui a fronteira
torna-se um pouco mais nítida. Em “O Livro dos Espíritos”[6],
existem muitas questões a respeito da origem dos seres vivos.
É também na “Gênese” que existe
um famoso capítulo sobre a gênese orgânica. Naturalmente,
esse capítulo faz eco às concepções
da época, ainda às voltas com a “teoria da geração
espontânea”, então a teoria mais aceita. É
no Capítulo XI da II Parte de “O livro dos Espíritos”
[3] que vamos encontrar questões cujas perguntas reafirmam
a natureza espiritual de todos os seres vivos e sua submissão
à lei de progresso. Naturalmente, os mecanismos da evolução
das espécies não estão afirmados nesses livros,
mas o princípio de evolução espiritual ajusta-se
perfeitamente bem aos princípios da seleção
natural, representando um mecanismo de modificação
que atua na parte material levando o Espírito a se desenvolver.
É importante considerar que as discussões sobre a
gênese orgânica são complementares para a compreensão
da Doutrina e seu desenvolvimento. Por isso esses pontos, assim
como muitos outros, sofrem e sofrerão modificação,
sem que haja impacto ao corpo principal de doutrina.
Tal não é o caso,
porém, com as inúmeras patologias da alma [7]
que citamos acima. Nos quadros obsessivos, a ação
do Espírito obsessor pode levar ao colapso orgânico
do obsidiado. A origem da doença, em sua íntima essência,
encontra-se assim descrita através desse quadro de “simbiose
espiritual”. É difícil entender como outra teoria
– que desconheça a ação dos Espíritos
– possa ter um sucesso maior no desenvolvimento de uma terapia
apropriada. Aqui vê-se claramente a enorme importância
dos princípios espíritas no desenvolvimento de certos
ramos da medicina pois não se trata apenas de construção
ou progressão da ciênica mas do desenvolviemento de
terapias apropriadas a inúmeros transtornos mentais.
Espiritismo X História: as contribuições
que o Espiritismo pode dar à História são bastante
evidentes. Um aspecto bastante inovador surge aqui, que é
o de considerar os relatos históricos fornecidos pelos Espíritos,
quando por meio de médiums conhecidos. São notórios
os casos de médiums que colaboram com investigações
policiais na elucidação de crimes. No Brasil a psicografia
já ajudou a elucidar vários assassinatos. Com médiums
equilibrados, os Espíritos podem fazer revelações
úteis ao progresso moral da sociedade e, muitas vezes, essas
revelações trazem noticias de relevante valor histórioco
(como no caso dos inúmeros romances históricos de
Emmanuel por meio de Francisco C. Xavier).
Espiritismo X Psicologia:
o Espiritismo tem muito a contribuir com as disciplinas que tem
como objetivo de estudo o homem em sua essência. Esse é
o caso da Psicologia. Podemos falar em uma psicologia espírita
que nasce por “inspiração” dos postulados
da doutrina (principalmente de suas conseqüências morais)
na maneira de viver, de se comportar e de interagir dos seres humanos.
O conhecimento da lei de evolução e reencarnação
é crucial para se entender as tendências inatas dos
seres humanos que determinam o comportamento para além das
limitadas considerações genéticas. Esse certamente
é um campo com grande futuro, onde apenas vislumbramos um
começo.
Espiritismo X Sociologia: o comportamento social
e evolução das sociedades é função
de seu desenvolvimento cultural, de seu passado e da maneira de
ser de seus indivíduos. Como no caso da História e
da Psicologia, o Espiritismo tem muito a contribuir para o estudo
e desenvolvimento da história social do homem uma vez que
o compreende como Espírito em perene evolução.
Há uma interação natural, desde a mais remota
antigüidade entre o mundo material e o plano espiritual. Esse
fluxo é responsável pelo aparecimento e desenvolvimento
de muitas religiões e culturas consideradas “inspiradas”.
Dos princípios e informações fornecidos pelos
Espíritos é possível complementar a história
sociológica de várias sociedades.
Todos esses campos (assim como outros não listados acima
tais como as artes) aguardam um futuro quando o espírita
cientista seja capaz de utilizar judiciosamente o conhecimento espírita,
de acordo com as regras estabelecidas por sua ciência particular.
O objetivo não é fazer o Espiritismo brilhar para
a sociedade como um concorrente das ciências, mas como fonte
de inspiração e origem para proposição
de novos mecanismos de explicação dos fenômenos
e ocorrências característicos de cada uma delas.
Considerações diferentes dizem respeito à atuação
do cientista espírita. Por esse termo referimo-nos àqueles
que pretendem desenvolver a ciência espírita a partir
de seus princípios ou com a modificação desses,
utilizando idéias advindas de outras ciências. É
uma conseqüência natural que se pretenda estabelecer
um ambiente acadêmico espírita – uma vez verificado
o caráter científico do Espiritismo. Mas cautela é
necessária para não exagerar demais nas comparações.
Se o Espiritismo é de fato uma ciência não segue
daí que no nosso momento histórico ele deva se preocupar
com o estabelecimento de um ambiente acadêmico como uma cópia
dos ambientes acadêmicos de outras ciências. Todos sabemos
dos efeitos que a excessiva profissionalização pode
trazer em detrimento do fluxo de idéias, gerando estagnação.
Imaginamos que no presente momento de desenvolvimento e expansão
da Doutrina Espírita não temos um ambiente completamente
apropriado a efetiva realização dos objetivos de um
ambiente puramente acadêmico. Outras considerações
sobre essa questão serão feitas em texto futuro.
3. Alguns comentários
finais.
Tentamos limitadamente neste texto discutir
algumas idéias sobre o conceito moderno (paradigma) de ciência
“normal” – bem amadurecida – e o que seria
compreensível como uma salutar relação dessa
ciência com o Espiritismo. A aplicação padrão
dos procedimentos de construção da ciência leva
a plena formação e progresso do conhecimento científico.
A tentativa forçada de se estabelecer relações
– não sugeridas pelo desenvolvimento científico
mas imaginadas como situações idealizadas –
não só conduz a perda de tempo como ao descrédito.
Da parte do Espiritismo, tentativas forçadas de querer transcrevê-lo
ou moldá-lo segundo normas ou procedimentos de outras ciências
pode conduzir a ilusão de falsificação da doutrina
uma vez que o conhecimento científico e sua interpretação
é função de um contexto altamente específico
e mutante mas desconexo em relação a ela. Por outro
lado, querer misturar conceitos de outras ciências com princípios
espíritas não é científico pois dentro
da noção de paradigma cada um deles deve ser entendido
dentro de seu contexto de pesquisa (ambientação acadêmica)
não se permitindo enxertias ou fusões ainda que muito
bem intencionadas.
Aprendamos a ver cada ciência – o Espiritismo entre
elas – como linguagens a respeito do mundo. No procedimento
de comunicação normal, plena compreensão só
é conseguida quando o emissor e o receptor dispõem
de bagagem linguística comum. Todo e qualquer procedimento
de tradução leva necessariamente a perda de significado
pela impossibilidade de se transcrever plenamente determinados conceitos
e idéias típicos de um determinado referencial linguístico.
O Espiritismo é uma linguagem a respeito do mundo espiritual,
criada e desenvolvida para transmitir conceitos sobre esse mundo.
As ciências materiais são linguagens distintas que
tratam de outro cenário, embora o “palco” apresente
áreas comuns ou adjacentes que no momento não dispomos
de linguagem apropriada para descrever.
Entretanto, a própria evolução
das ciências levará a criação de uma
linguagem comum em futuro incerto (talvez distante para o nosso
calendário). Esperamos que quando esse futuro acontecer,
o Espiritismo tenha cumprido em sua totalidade seu papel fundamental
que é o de promover a efetiva reforma moral em todos os Espíritos
que dele tiverem se aproximado buscando consolo e refazimento moral.
Artigo originalmente publicado no boletim
do GEAE, número 472 (2004).
Agradecimento
Agradeço ao Alexandre F. da Fonseca pela leitura e comentários
a esse texto.
Referências
[2] A. Kardec, “A Gênese”,
Uranografia Geral, o espaço e o tempo (Cap. VI). Ed. Federação
Espírita Brasileira, 34a edição (1991).
[3] A. Kardec, “O Livro dos Espíritos”, Trad.
Guillon Ribeiro, Ed. Federação Espírita Brasileira,
71a edição (1991).
[4] Referência [3] , questão 34.
[5] A. P. Chagas, Polissemias no Espiritismo, Revista Internacional
de Espiritismo, pp. 247-49, Setembro de 1996.
[6] Referência [3], Cap. III.
[7] I. Ferreira, “Novos rumos à medicina”, Vol.
I, Tratamento dos processos obsessivos no Sanatório Espírita
de Uberaba, Edições Federação Espírita
do Estado de São Paulo (1990).