Inexiste frase mais inconseqüente e de
menor aplicação à história da ciência
do que esta que serve de título deste post, proferida pelo
astrônomo Carl
Sagan (1934-1996), membro fundador de uma importante seita
de céticos. Por isso mesmo, ela veio a se constituir
em um dos pilares da crença cética.
(1)
C. Sagan foi bem meu herói de
juventude: quem não se lembra da série 'Cosmos'
no começo da década de 1980, com suas primeiras simulações
computacionais, mostrando um viajante em suas viagens pelo Universo,
de uma maneira acessível ao grande público? A série
era primorosa e, mesmo hoje em dia, a maneira com que ele explica
cada tópico em Astronomia deixa saudades. Mais tarde, descobri
que Sagan errava em alguns pontos com relação à
história da ciência, o que é de pouca importância
comparada a sua postura de defensor infatigável da ciência
(lê-se academia) utilizando, entretanto, argumentação
algo equivocada, que o levaria a tirar conclusões em contradição
com sua visão materialista de ver o mundo.
Sagan pretendia fazer algo muito importante: livrar a sociedade
das trevas da ignorância medieval, do irracionalismo cristão
que condenou tantos mártires considerados hereges à
fogueira. Nisso ele estava muito certo. Por isso, Sagan chega à
conclusões belíssimas com relação a
nossa verdadeira posição no Cosmos: no auge da gerra
fria fez uso de uma foto tirada por uma das Voyager mostrando tudo
aquilo que somos. Nada mais que um grão de areia perdido
na imensidão do Cosmos.
Pale Blue dot': foto da Terra de um ponto muito
distante no espaço. Para C. Sagan, o uso dessas imagens poderia
demonstrar ao público a verdadeira dimensão das disputas
e pontos de vista humanos.
Sobre tal foto escreveu ('Pálido Ponto Azul'):
Olhem de novo para aquele ponto.
É ali. É a nossa casa. Somos nós. Nesse ponto,
todos aqueles que amamos, todos os que conhecemos de quem ouvimos
falar, todos os seres humanos que já existiram, vivem ou
viveram as suas vidas.
Toda a nossa mistura de alegria e sofrimento, todas as inúmeras
religiões, ideologias e doutrinas econômicas, todos
os caçadores e saqueadores, heróis e covardes, criadores
e destruidores de civilizações, reis e camponeses,
jovens casais apaixonados, pais e mães, todas as crianças,
todos os inventores e exploradores, professores de moral, políticos
corruptos, “superastros”, “líderes supremos”,
todos os santos e pecadores da história de nossa espécie,
ali - num grão de poeira suspenso num raio de sol.
A Terra é um palco muito pequeno em uma imensa arena cósmica.
Pensem nos rios de sangue derramados por todos os generais e imperadores
para que, na glória do triunfo, pudessem ser os senhores
momentâneos de uma fração deste ponto. Pensem
nas crueldades infinitas cometidas pelos habitantes mal distinguíveis
de algum outro canto em seus freqüentes conflitos, em sua
ânsia de recíproca destruição, em seus
ódios ardentes.
Nossas atitudes, nossa pretensa importância, a ilusão
de que temos uma posição privilegiada no universo,
tudo é posto em dúvida por este ponto de luz pálida.
O nosso planeta é um pontinho solitário na grande
escuridão cósmica circundante. Em nossa obscuridade,
no meio de toda essa imensidão, não há nenhum
indício de que, de algum outro mundo, virá socorro
que nos salve de nós mesmos.
Carl Sagan - (de “Um pálido ponto azul”, 1994)
Entretanto, Sagan frequentemente afirmava que
a sociedade, que passou a depender da Ciência e da tecnologia,
sem saber o que era, de fato, Ciência, deveria arraigar-se
ao cientificismo que, segundo ele, era a única coisa que
poderia salvar a Terra e a sociedade, tanto de uma hecatombe nuclear
como num retorno à Idade Média e de suas fogueiras.
Desta forma, Sagan fazia da ciência um plataforma de pregação
de suas crenças céticas e se voltava contra qualquer
coisa que não se adequasse à visão corrente
resultante de interpretações das teorias científicas,
algo que é estranho à atividade científica
em si.
Não é papel da Ciência fazer pregações
sobre como a sociedade deva se comportar. A Ciência deve ser
sempre neutra em sua visão do mundo porque, da humildade
resultante de quão pouco sabemos, apesar de termos progredido
tanto em conhecimento, vem a conclusão que inexiste limites
para o que podemos aprender com o Cosmos. Encontra-se assim uma
contradição no pensamento de Sagan: enquanto afirmava
categoricamente que o Universo era infinito em muitas possibilidades,
ele negava veementemente a possibilidade de muitos outros fatos
que ele considerava crenças pseudocientíficas. Para
Sagan, o Cosmos era tudo o que existe e era ilimitado, mas não
tanto assim a ponto de validar determinadas crenças que entravam
em conflito com as suas próprias.
Isso fica bem claro na sua visão sobre a Astrologia: dizia
que 'os jornais do mundo trazem todas as semanas horóscopos,
mas dificilmente notícias sobre o Universo' (isso era uma
verdade na década de 1980, mas hoje, com a internet, jornais
dedicam muitas reportagens à pesquisa científica).
Pretendia que as pessoas comuns, que não escolhem carreiras
científicas em suas vidas, tivessem pela Ciência o
mesmo interesse que tem por Astrologia. Acontece que essa é
uma expectativa ingênua: a Ciência nada tem
a dizer sobre o sentimento ou temores das pessoas, enquanto que
as colunas astrológicas aparentemente tem (mesmo que sejam
na forma de frases auto evidentes). A Ciência jamais será
tão popular quanto novelas ou histórias românticas,
porque o ser humano tem sentimentos, expectativas, temores e esperanças
para as quais a Ciência - principalmente aquela de C. Sagan
- jamais conseguirá dar respostas atraentes.
Em algum ponto de sua pregação cética nasceu
o slogan sobre as 'afirmações extraordinárias
e das evidências extraordinárias' (Ver
nota (1)). Embora pareça uma
frase lógica, tão lógica quanto: 'pessoas
felizes tem vidas felizes' ou 'planetas rochosos tem densidades
elevadas' (para usar um exemplo mais ao gosto de C. Sagan),
trata-se de uma falácia lógica (non sequitur)
que não tem base alguma na história da ciência.
Basta que analisemos alguns exemplos para vermos sua falsidade,
o que nos esclarece um pouco também sobre como se dá
o processo das descobertas científicas.
Primeiro há o problema com a definição de 'evidência
extraordinária'. O que é uma 'evidência extraordinária'?
Uma pessoa comum, tropeçando com uma pedra no chão,
dificilmente reconhecerá nela qualquer sinal de um fóssil
antigo, fato que um bom paleontólogo será capaz de
fazer. Ou seja, uma 'evidência extraordinária' só
é realmente em relação a um 'referencial de
conhecimento'. Não há evidências extraordinárias
de qualquer tipo para quem não acredita em nada ou não
sabe nada. No âmbito da Ciência, uma evidência
desse tipo só é verdadeiramente 'extraordinária'
desde um ponto de vista muito especial e privilegiado, o ponto de
vista de uma teoria particular. Na ausência desta, inexiste
evidência alguma - ainda que a Natureza nos bombardeie diariamente
com vários fenômenos.
Um exemplo interessante (embora distante de nossa realidade diária)
foi a 'descoberta' das partículas elementares chamadas neutrinos.
Elas foram 'postuladas', ou seja, imaginadas como existentes para
explicar certas anomalias em processos de desintegração
radioativa, em particular o decaimento beta. Entretanto, nenhuma
'evidência extraordinária' foi encontrada na condições
exigidas por muitos crentes céticos, pois os neutrinos não
interagem com absolutamente nada, assim não podem ser detectados
diretamente. A menos que tenhamos muitos bilhões de dólares
para construir um detector de neutrinos (que consegue isso por métodos
indiretos e de forma estatística), jamais teremos qualquer
evidência de sua existência.
Pelo menos em física de altas energias,
'evidências extraordinárias exigem orçamentos
extraordinários'. A foto mostra um detector de neutrinos
(interior do LSND ou detector de neutrinos por cintilação
líquida em Los Alamos, USA).
O mais certo é dizer que, no estágio atual de desenvolvimento
das Ciências da matéria, 'evidências extraordinárias
exigem orçamentos extraordinários', tal é
a quantidade de dinheiro necessária para que determinadas
'afirmações extraordinárias' tenham qualquer
chance de serem consideradas. Céticos dogmáticos não
se dão conta disso e pretendem generalizar a regra para todos
os fenômenos da Natureza. E, mais importante ainda, não
podemos deixar de reconhecer o papel fundamental das teorias que
devem ser aceitas e trabalhadas. Sem elas é impossível
desenhar ou projetar qualquer equipamento para tornar visíveis
determinadas evidências. Assim, a Ciência verdadeira
está longe de ser uma atividade imparcial, pelo menos no
que diz respeito à crença que se deve depositar na
validade de certas conjecturas a respeito do Cosmos.
Portanto, a frase de Sagan é retórica elegante mas
sem fundamento. As contradições com diversas descobertas
científicas são tão grandes que deixamos ao
leitor a tarefa de encontrar outros exemplos na história
da ciência.
Mesmo com essas constatações, não podemos deixar
de admirar o brilhantismo e o esclarecimento que Carl Sagan prestou
em seu papel de divulgador e como astrônomo. A maioria dos
que pretendem seguir seus passos hoje, o fazem exagerando ainda
mais no ceticismo e são quase todos desprovidos de sua elegante
retórica. Sem a reverência que Sagan tinha pelo imensidade
do Cosmos, pretendem ditar normas sobre o que é 'científico'
ou não na visão deles, e seu argumento é usado
para refutar o que céticos chamam de 'claims' de muitos fenômenos,
que devem ser 'provados rigorosamente', o que inclui: exigências
de farta repetibilidade (como se na Natureza não houvessem
fenômenos estocásticos e raros), 'objetividade' e outros
quesitos.