Ademir
Xavier
> Considerações sobre as ideias de verdade e controvérsias
em torno dos ensinos dos Espíritos
Versão
modificada de um original publicado no Boletim do GEAE,
Ano 08 - Número 367 - 1999.
A vaidade de certos homens,
que julgam saber tudo e tudo querem explicar a seu modo,
dará nascimento a opiniões dissidentes. Mas,
todos os que tiverem em vista o grande princípio
de Jesus se confundirão num só sentimento:
o do amor do bem e se unirão por um laço fraterno,
que prenderá o mundo inteiro. Estes deixarão
de lado as miseráveis questões de palavras,
para só se ocuparem com o que é essencial.
E a doutrina será sempre a mesma, quanto ao fundo,
para todos os que receberem comunicações de
Espíritos superiores.
O Livro dos Espíritos. [1],
Prolegômenos.
1 - Introdução
Todos aqueles que já tiveram a oportunidade
de entrar em contato com conceitos espíritas dificilmente
deixaram de se perguntar quanto à natureza e a validade de
muitas das informações trazidas pelos mensageiros
espirituais. Nesse sentido, é relevante se perguntar quanto
aos critérios de aceitação dos ensinos espíritas,
sobre como deve ser nossa postura diante da propagação,
divulgação e grau de validade desses ensinos. Será
que um determinado conceito deve ser aceito absolutamente, sem exame
algum, com exclusão daqueles que por ventura possam discordar
dele? Será que, por outro lado, devemos sempre manter uma
postura reticenciosa, como que eternamente aguardando uma última
palavra ou, o que seria ainda mais restrito, considerar tais ensinos
como meras figuras passadas pelos Espíritos na impossibilidade
de nós, os encarnados, estarmos longe de mais do que seria
a verdade? Como se dá o consenso com relação
a um determinado ensino? Tais questionamentos podem parecer supérfluos
a uma mente excessivamente prática, mas estão provavelmente
na raiz de grandes males que afetaram a humanidade.
Sem dúvida, diversos estudos
foram feitos desde os primórdios do desenvolvimento da doutrina
com Allan Kardec em torno da validade e aceitação
das teses do Espiritismo. No momento histórico da codificação,
diante da exuberância dos fenômenos espíritas
(a aparecerem espontaneamente em muitas instâncias simultaneamente),
Allan Kardec chegou a formulação do critério
da concordância universal dos ensinos dos Espíritos.
Em termos resumidos tratava-se da aceitação de uma
determinada tese (em sua maioria relacionada aos princípios
básicos) quando apoiada maciçamente pelos Espíritos
através de diferentes médiuns nos mais variados lugares.
Voltaremos a esse ponto na Parte 3 deste artigo. Essa idéia
lembra vagamente os critérios de aceitação
de conceitos e teorias dentro das universidades e institutos de
pesquisa científica. Não seria o caso de uma certa
idéia ser aceita quando apoiada igualmente por uma variedade
de departamentos científicos após, muitas vezes, difíceis
e laboriosas experimentações? O mesmo se daria com
os princípios espíritas, já que as fontes destes
são os Espíritos por meio dos médiuns. A comparação
não pode ser estendida indiscriminadamente pois não
segue daí que toda ideia espírita deva sempre ser
sancionada pelo critério da concordância universal
da mesma forma que a aceitação de uma certos pontos
de uma teoria científica não precisa ser sancionada
por um grande número de laboratórios. Isto, porém,
é apenas um ponto de semelhança entre o Espiritismo
e as doutrinas da ciência comum. A aceitação
dos princípios espíritas está baseado também
no selo de racionalidade e coerência que ele empresta à
sua visão do universo, algo muito em comum com as teorias
das diversas ciências que estudam a matéria e suas
manifestações.
Pretendemos aqui enfatizar que tais desenvolvimentos colocam o Espiritismo
em uma posição ímpar no cenário das
religiões atuais. Para esse fim, é muito interessante
recorrermos à história com o intuito de conhecer melhor
como eram aceitos e avaliadas as verdades pelos povos antigos. Analisando
especificamente a história das religiões (para o mais
perto possível do que seria o objeto de estudo do Espiritismo),
constatamos o quão difícil e as vezes sanguinolenta
pode ser a disputa pela aceitação das idéias
religiosas. No caso específico da religião católica
- com a qual nos encontramos mais próximos culturalmente
- é nítida essa dificuldade. Observando a história
da Igreja, vemos como foi constante o interesse do Plano Maior na
libertação e engrandecimento da Igreja que, amiúde,
se via a braços com discussões muitas vezes estéreis
e sem interesse para as sociedades onde floresceram as organizações
católicas. A grande conseqüência prática
desses debates culminava, muitas vezes, com a morte deliberada de
tantos outros que chegaram perto demais da "heresia".
Ficou famosa, por exemplo, a chamada controvérsia ariana
no começo do Cristianismo. Do historiador católico
Eamon Duffy [2] colhemos o seguinte relato:
"A consternação de Constantino
em face das divisões dos cristãos norte-africanos
haveria de redobrar quando, tendo deposto Licínio, o imperador
pagão rival no Oriente, ele se mudou para sua nova capital
cristã a 'Nova Roma', Constantinopla. Pois as divisões
da África nada eram em comparação com a profunda
fissura na imaginação cristã que se abrira,
no Leste, por iniciativa de Ário, um presbítero
de Alexandria famoso por sua austeridade pessoal e pela popularidade
entre as freiras da cidade. Ário fora afastado pelo bispo
local por pregar que o 'Logos', a Palavra de Deus que em Jesus
se fizera carne, não era o próprio Deus, mas uma
criatura infinitamente superior aos anjos, embora como eles criada
do nada antes do começo do mundo. Ele via em tal ensinamento
um meio de conciliar a doutrina cristã da Encarnação
com a fé igualmente fundamental na unidade divina. Na verdade,
essa idéia privava o cristianismo de sua afirmação
central segundo a qual a vida e morte de Jesus tinham o poder
de redimir, pois eram ações do próprio Deus.
Contudo, as verdadeiras implicações do arianismo
não foram compreendidas de pronto, e Ário conseguiu
amplo apoio. Mestre de propaganda, angariou a simpatia popular
compondo canções teológicas para serem cantadas
por marinheiros e estivadores nas docas de Alexandria. Escapando
aos salões eruditos, o debate teológico irrompeu
nas tavernas e nos bares do Mediterrâneo oriental."
Como foi resolvido o problema de Ário?
Na verdade não houve uma solução definitiva.
Na época a solução se materializou no concílio
de Nicéia (em 325), convocado pelo imperador. Ainda segundo
Duffy:
"Nicéia foi
o começo, não o fim da controvérsia ariana.
A derrota dos adeptos de Ário havia sido imposta por um
imperador decidido a resolver rapidamente as coisas. Eles foram
silenciados, não persuadidos, e, terminado o concílio,
reagruparam-se para contra atacar."
É fato conhecido de todos que Constantino considerava a emergente
fé cristã uma poderosa força de aglutinação
do império romano que estava prestes a desmoronar. Por isso
ele via com angústia o debate teológico infindável
e, por razões práticas, resolveu impor uma solução.
A tradição católica (isto é, a convergência
da opinião do clero e do laicato crente em torno da interpretação
de certos pontos evangélicos a se materializarem como dogmas)
foi, portanto, uma lenta e encarniçada construção
que se desenvolve até hoje, onde muitas vezes o interesse
político e econômico ditou uma clara delimitação
entre o que seria a verdade e a heresia. Não foram poucos
os movimentos de renovação católicos e de "reforma"
(mesmo antes dos protestantes no Século XVI) e, na Idade
Média, foram considerados grandes os papas que se dedicaram
vivamente a eles [2]. Os que se admiram de semelhantes movimentos
na atualidade apenas desconhecem a milenar história da Igreja.
Como eram, entretanto, tomadas as decisões em matéria
de fé? Onde deveria estar a verdade quando dois partidos
rivais se insuflavam defendendo cada um sua própria opinião?
Esta era decidida oficialmente e com esperanças para sempre
seja a portas fechadas, seja pela aclamação popular,
pelo voto dos bispos (concilium) ou pela vontade do papa. Na prática
a Igreja se viu obrigada a revisar constantemente seus pontos de
vista sobre conceitos marginais ou centrais à fé católica.
É importante ter em mente que a construção
de toda Doutrina Católica (e o aparecimento dos movimentos
de reforma) se guiou em muito pela necessária manutenção
da "pureza doutrinária" da crença em Cristo.
Não foi senão em função da sustentação
de tal pureza que se ergueram os tribunais eclesiásticos
[2] (Inquisição) por Gregório IX em 1231. Nesse
sentido, a Igreja de Roma adquiriu sua fama ao longo do tempo por
ter se propagandeado livre da heresia (principalmente diante do
cisma com a Igreja grega) e guardiã "da fé dos
Apóstolos".
2 - Exemplo da Astronomia.
Compreende-se que na nossa vida comum estamos
diante de situações que exigem uma posição
prática diante dos fatos. Quando alguém diz: "fulano
é casado mas tem uma amante mais velha", em geral, a
primeira atitude não é a de formulação
de teorias que justifiquem ou não a aceitação
dessa "verdade". Porque a verificação dela
é coisa tão ordinária quanto o próprio
fato, sua aceitação é muito simples. Não
se dá o mesmo, porém, com certas noções
e concepções do mundo que nos cerca. Muito menos com
aquelas que dizem respeito à Doutrina Espírita. Mais
uma vez recorremos a exemplos simples da ciência. A afirmação
"a Terra gira com movimento circular em torno do Sol"
parece, se aplicarmos o critério de aceitação
vulgar, uma afirmação livre de ambiguidades.
Sistema Ptolomaico, com a Terra no centro do
Universo. (~200)
Nossas mentes formam instantaneamente
uma ideia perfeitamente clara de seu significado. Por mais incrível
que pareça, no entanto, sua validade não pode ser
inferida da mesma forma como no exemplo de frase anterior. Ela não
era nem um pouco válida aos povos antigos, porque não
era bem isso que eles constatavam quando viam o Sol se levantar
e se por todos os dias, em aparente movimento circular ao redor
da Terra. Ela foi a própria expressão da verdade para
Nicolau Copérnico (1540) na sua nova formulação
do sistema do Mundo. Para ele, a Terra sim girava circularmente
em torno do Sol.
Sistema Copernicano (1540) com o Sol no centro
do sistema solar
Ela deixou de ter validade para astrônomos posteriores, em
particular Johannes Kepler (1630) que descobriu que o movimento,
de fato, não era circular mas sim elíptico "com
o Sol ocupando um dos focos da elipse".
Imagem do Universo revelada por J. Kepler (1630).
Os planetas descrevem elipses com o sol ocupando um dos focos
Essa última conclusão de Kepler deixou de ser válida
com Isaac Newton (1670) e sua teoria da gravitação
universal. Para Newton (assim como para toda mecânica clássica
que ele fundou), o movimento só seria elíptico se
no Universo somente o Sol e a Terra existissem. Desde que há
outros corpos (não podemos nos esquecer da Lua) o movimento
passa a ser "perturbado". Muito aproximadamente a Terra
giraria descrevendo uma "roseta" ao redor do Sol por causa
do "movimento de precessão dos ápsides"
da órbita descrita por ela. Em termos exatos se, porém,
no Universo, existisse mais um corpo além da Terra e do Sol,
o movimento daquela jamais seria descrito de uma maneira simples.
Perturbação exercida por um
terceiro corpo deforma a trajetória elíptica (1670)
Mais uma vez, porém, essa
afirmação deixou de ser válida para Albert
Einstein (1905), que descobriu efeitos "relativísticos"
não desprezíveis.
Precessão da órbita elíptica
de acordo com a Relatitividade Geral (1905)
Para Einstein, ainda que não
existisse nenhum outro corpo no Universo mas somente a Terra e o
Sol, ainda assim o movimento seria o de uma roseta com uma precessão
dos apsides extremamente lenta para a Terra. A existência
de outros corpos não alteraria muito a descrição
de Newton, embora o movimento se tornasse ainda mais complexo. Tal
exemplo nos mostra o quão difícil é a descrição
da "verdade" relacionada ao objeto de pesquisa da ciência
ordinária, a matéria. A lição que se
tira não é a de que certa concepção
anterior tenha deixado de ser válida (decretada como "herética"
na visão por dogmas) . Ao contrário, as construções
científicas presentes fundamentam-se explicitamente naquelas
do passado. Para nós a memória dos antigos astrônomos
deve ser tão venerável quanto a dos mais recentes.
Mesmo hoje em dia, se quisermos construir um relógio do Sol
por exemplo, podemos perfeitamente usar os conceitos antigos que
consideravam o Sol como girando em torno do Terra. Existe erro nisso?
Diante de nossa presumível ignorância com relação
às questões ainda abertas nas ciências, estamos
certamente tão perto da verdade quanto eles. A verificação
desse fato não pode ser motivo porém para escândalos,
nem para um descrédito para com as ciências. O que
se faz necessário é, pois, uma nova concepção
de aceitação da verdade, bem como critérios
de compreensão das explicações científicas.
A chave que permite essa nova compreensão pode ser conseguida
estudando-se um pouco a história das ciências assim
como os mecanismos pelos quais as concepções científicas
surgiram e têm operado [3].
As teorias científicas representam
as construções de raciocínio onde essas concepções
científicas se estabelecem. Não é senão
pelo fato de tais conceitos estarem harmonicamente integrados às
teorias que sua aceitação torna-se válida.
Além disso, as teorias devem fornecer uma visão consistente
do universo onde tal fenômeno ocorre. Isso implica não
só em explicar aquele fenômeno particular, mas também
possíveis efeitos a ele correlacionados. Uma excelente teoria
deve além disso fornecer as bases para a previsão
de fenômenos desconhecidos. Portanto, não é
a autoridade de um ou de outro cientista que fundamenta a ortodoxia
nas ciências (com sentido muito diferente daquele usado pelas
religiões clássicas). Nunca a verdade científica
haverá de ser decidida em reuniões a portas fechadas,
pela deliberação de conselhos ou organizações
ou baseando-se no palpite dos cientistas mais notáveis. É
verdade que a opinião de um grande cientista a favor de uma
certa teoria particular pode pesar muito na orientação
das pesquisas futuras, mas tal opinião nunca constituirá
a teoria.
3 - Analisando o critério
da concordância universal.
Se na descrição de um simples
fenômeno material somos obrigados a fazer grandes concessões
de tolerância para com aqueles que sustentam opiniões
diferentes, imaginemos por um momento a situação com
os fenômenos e princípios espíritas. Isso é
particularmente forte se considerarmos que o objeto de estudo do
Espiritismo não está sujeito à apreensão
direta pelos sentidos humanos ordinários nem por quaisquer
"aparelhos de medida". Isso não significa, porém,
que esses fenômenos estão condenados eternamente a
serem inexplicáveis, muito menos que seremos sempre impotentes
em explicá-los. O que se passa com o Espiritismo (que resulta
em sua independência das ciências comuns) é que
ele trata de fenômenos pelos quais as ciências não
se interessam. As ciências estudam a matéria e o Espiritismo
o espírito. Para assegurar o progresso principalmente moral
do ser humano, aguardou-se o lento mas inexorável avanço
da intelectualidade humana e o conhecimento espírita foi
e tem sido revelado, em função direta dessas mesmas
necessidades morais. Diante das dificuldades humanas de se conhecer
a verdade (como exemplificadas anteriormente), não é
difícil concluirmos que existem claramente limites à
revelação espírita.
A fonte primordial da informação
espírita são os Espíritos. Mas como se deu
a aceitação dessas informações por eles
propostas? Vamos aqui analisar brevemente o famoso critério
da concordância universal (CCU) que muitas pessoas acreditam
é a base para a aceitação dos princípios
espíritas. Argumentaremos depois que não é
o CCU que valida esses princípios. A referência principal
sobre esse assunto é a Introdução ao O Evangelho
segundo o Espiritismo [4], Parte II, "Autoridade da Doutrina
Espírita". Todas as citações de Kardec
feitas a seguir foram extraídas dessa referência. Kardec
aponta duas grandes razões para a existência de um
critério de aceitação das informações
espíritas:
(a) "Garantia para
a unidade futura do Espiritismo", com anulação
das teorias contraditórias (Parágrafo 14).
(b) "Garantia contra as alterações que poderia
sujeitar o Espiritismo às seitas que se propusessem apoderar-se
dele em proveito próprio ou acomodá-lo à
vontade." (Parágrafo 16).
Tal critério protege assim os fundamentos do Espiritismo
contra enxertias, sejam da parte dos próprios Espíritos
(menos esclarecidos) ou dos encarnados. Prevê-se que tais
enxertias ocorressem por falha na compreensão e, principalmente,
aplicação lógica dos princípios espíritas,
fato que a história acabou por demonstrar. A primeira coisa
que notamos é que o CCU foi uma descoberta inteligente de
Kardec diante do dificílimo problema da autenticidade das
mensagens dos Espíritos. Assim sendo, ele não é
resultado do ensino dos Espíritos e, portanto, não
pode ser tomado como um princípio da doutrina. Analisando
a referência citada acima, podemos dizer que o critério
tem 3 principais fundamentos.
-
O Espiritismo
não é uma construção humana, ou
seja, não é resultado de uma simples teorização
em torno de observações e análise de fatos;
-
Os
Espíritos têm ampla liberdade de comunicação,
o que anula a possibilidade de privilégios na concessão
da informação espírita (o que, do contrário,
tiraria o caráter "natural" da revelação
espírita);
-
Os
Espíritos têm diversos graus de evolução.
Se a fonte de informação espírita são
os Espíritos, a validade das mesmas depende do grau de
lucidez que eles possuem em relação aquilo que
pretendem informar. Disso vem que nem todos os Espíritos
estão igualmente aptos a servir de fonte de informação
e daí imediatamente, a necessidade de uma seleção
das mesmas.
Por razões didáticas, podemos dizer que os três
fundamentos acima possibilitam enunciar o que chamariamos de "CCU
fraco":
Uma garantia existe para o ensino dos Espíritos:
a concordância que exista entre as revelações
que eles façam espontaneamente.
Existem entretanto condições operacionais (em relação
ao caráter das mensagens) para que o CCU seja válido.
Essas, por sua vez, se dividem em dois tipos: condições
gerais e condições específicas. São
condições gerais:
-
"Tudo o que seja
fora do âmbito exclusivamente moral"
(Final do Parágrafo 6);
-
Comunicações
que tratem dos fundamentos doutrinários: "Vê-se
bem que não se trata aqui das comunicações
referentes a interesses secundários"
(Parágrafo 9).
Ao mesmo tempo, são condições
específicas (ver Parágrafo 8):
Ocorre aqui porém que se tanto na situação
(I) como em (II) houver a incidência de obsessão (incluenciação
negativa por parte da fonte original da informação),
a aceitação do CCU fraco não é possível.
Disso resulta o que chamaríamos de CCU forte:
"Uma
só garantia séria existe para o ensino dos Espíritos:
a concordância que haja entre as revelações
que eles façam espontaneamente, servindo-se de grande número
de médiuns estranhos uns aos outros e em vários
lugares". (Parágrafo 9).
Ao CCU fraco é assim acrescentada a exigência de repetibilidade
geográfica e mediúnica de uma certa informação.
Poderíamos ainda adicionar uma necessidade de confirmação
temporal da informação, isto é, de que uma
dada tese referente a um princípio se confirme ao longo do
tempo. Isso ocorreu diversas vezes durante a codificação.
Do ponto de vista histórico, Kardec parece também
ter sido o único a aplicar o CCU forte:
"Na posição
em que nos encontramos, a receber comunicações de
perto de mil centros espíritas sérios, disseminados
pelos mais diversos pontos da Terra, achamo-nos em condição
de observar sobre que princípio se estabelece a concordância".(Parágrafo
13).
A razão de ser do CCU fraco é
que ele parece ser válido desde que os médiuns não
estejam sob efeito de Espíritos mistificadores (obsessão
etc). A exigência do CCU forte foi cumprida plenamente no
momento da codificação por conta da enorme abundância
de fenômenos espontâneos ocorridos na época.
As condições gerais enunciadas por Kardec (condições
1 e 2) são de crucial importância para se entender
a aplicação do CCU. De fato, não tem muito
sentido exigir um critério de concordância (seja por
vários médiuns ou através várias instâncias
temporais) com as comunicações pessoais de Espíritos
familiares por exemplo. Seria mesmo ridículo exigir que os
Espíritos se comunicassem por médiuns diferentes após
fornecerem muitas vezes provas indubitáveis de que são
eles mesmos que se apresentam a determinado médium. As especificidade
da mensagem dita assim o grau de recorrência ao CCU. O grau
de obviedade com que constatamos a concordância dos Espíritos
esclarecidos em relação às questões
morais é o que fundamenta a condição geral
(A). Suprimir tal condição é equivalente a
dizer que o CCU (na forma forte) sempre foi operacional com relação
às questões morais. Parece assim ser importante compreender
exatamente o que se entende por pontos fundamentais e pontos secundários,
coisa que fazemos brevemente a seguir.
4 - O que são pontos fundamentais
e o que são pontos secundários. Exemplos.
Por Doutrina Espírita entendemos o conjunto
de princípios fundamentais que sistematizam o Espiritismo,
as regras de aplicação desses princípios às
diversas situações e fenômenos em que ele representa
uma alternativa lógica e racional de explicação.
Também a essa doutrina estão associados os diversos
conjuntos de preceitos e regras éticas que caracterizam a
conduta espírita na mais pura acepção da palavra.
Por promoverem o progresso da alma humana, tais regras fortalecem
as relações deste com a Divindade, de onde deriva
imediatamente o aspecto religioso do Espiritismo.
De modo resumido os princípios
fundamentais do Espiritismo são:
-
Existência de Deus. Deus aqui entendido
como um ser existente de toda eternidade, sem princípio
nem fim, todo poderoso e bom. Sem tentar descrever o impossível,
tais atributos são, digamos, os mínimos necessários
para a noção da Divindade.
-
Existência do Espírito. O Espírito
aqui é o princípio inteligente independente da
matéria, a constituir um outro princípio. Por
ser independente da matéria, o Espírito não
sucumbe nem desaparece frente às transformações
desta, de onde se tem a noção da imortalidade
do ser.
-
Evolução do Espírito.
A medida que o tempo transcorre, o estado que caracteriza o
Espírito se transforma. Esse estado dá, por exemplo,
as características do Espírito. Da faculdade que
o Espírito tem de interagir com a matéria, ele
passa por transformações que modificam sua personalidade
e características. Essa evolução leva ao
aprimoramento moral do ser e de sua inteligência. No homem,
o período de tempo necessário para o aprimoramento
é muito maior que o tempo de vida médio de sua
vida material. Daí segue, como corolário desse
princípio, a idéia de reencarnação.
-
Comunicabilidade dos Espíritos. É
possível ao Espírito, desprovido da parte material,
entrar em comunicação com o mundo material por
meio de pessoas dotadas de uma faculdade especial chamada mediunidade.
-
Pluralidade dos mundos habitados. No Universo
são inúmeros os mundos onde a vida é abundante,
e os Espíritos, segundo semelhantes princípios,
evoluem e têm sua existência mais ou menos material
de acordo com o progresso atingido.
Os princípios fundamentais
estão todos eles contidos nas obras básicas editadas
por Kardec. Essas obras também trazem idéias secundárias
que auxiliam a explicação espírita do mundo
segundo os princípios fundamentais. Além disso, a
vasta literatura espírita contemporânea também
contém inúmeras obras que desenvolvem substancialmente
a aplicação dos princípios fundamentais e,
porque não dizer, propõem princípios secundários
novos. Esse fato é permitido pelo caráter progressista
da doutrina, e os que teimam em não aceitá-lo estão,
de fato, atrasando a marcha desse progresso. Vejamos um exemplo
concreto que nos auxilie nesse ponto. Suponhamos que um certo Espírito
proponha uma modificação na lei III de evolução
afirmando que a marcha de desenvolvimento do Espírito não
é incessante mas que, em determinado ponto de sua vida maior,
seja permitido por lei ao Espírito estacionar. Não
é difícil ver que semelhante idéia depõe
contra vários outros princípios e leva imediatamente
a uma contradição com a noção de livre-arbítrio
pois, se ao Espírito é possível estacionar,
ele não tem, por lei, nenhuma responsabilidade sobre seus
atos durante o período de falta de progresso. Essa idéia
deve ser rejeitada por estar em contradição com uma
série de noções que protegem os fundamentos
da doutrina.
Tomemos agora um exemplo de uma controvérsia
no movimento espírita que ilustra bem as dificuldades de
compreensão dos princípios espíritas e do ensino
dos Espíritos. Trata-se da famosa proposição
do elevado Espírito Emmanuel sobre as "almas gêmeas"
no seu livro O Consolador [5]. Antes de tudo, conviria considerar
uma afirmação desse Espírito contida logo na
introdução ("Definição") de
seus livro:
"Alem
do mais, ainda nos encontramos num plano evolutivo, sem que possamos
trazer ao vosso círculo de aprendizado as últimas
equações, nesse ou naquele setor de investigação
e de análise. É por essa razão que somente
poderemos cooperar convosco sem a presunção da palavra
derradeira".
Na questão 298 de "O Livro dos Espíritos"
[1], Kardec questiona os Espíritos sobre a idéia das
almas gêmeas, entendidas como dois seres unidos desde sua
origem e predestinados a se encontrarem fatalmente algum dia. Tratava-se,
sem sombra de dúvida, de um ponto secundário, já
que os princípios fundamentais nada dizem sobre a criação
dos Espíritos (ver questão 78 de "O Livro dos
Espíritos"). Além disso, a idéia da almas
gêmeas não contradiz nenhum outro ponto fundamental.
Em "O Consolador", Emmanuel por diversas questões
(desde 323-328, "Terceira Parte", "Amor") reafirma
a idéia das almas gêmeas, entendidas como seres que
se buscam na Eternidade e cuja existência propicia o progresso
aos Espíritos, já que estes, quando separados e caídos
no crime anseiam por se encontrar, constituindo isso um incentivo
ao seu progresso. Emmanuel, de fato, reconhece sua ignorância
não só em relação à criação
dos Espíritos como também sobre como se estabelece
o vínculo afetivo entre eles:
"Para
todos nós, o primeiro instante da criação
do ser está mergulhado num suave mistério, assim
como também a atração profunda e inexplicável
que arrasta uma alma para outra, no intuito dos trabalhos, das
experiências e das provas, no caminho infinito do Tempo."
Entretanto, inquirido a examinar melhor seus pontos de vista, Emmanuel
humildemente pede seja mantido o texto original, chamando a atenção
para a complexidade do assunto. Esse Espírito sinalizou que
ainda estamos longe de ter a pretensão à verdade de
um tema tão complexo. Por outro lado, se os Espíritos
que auxiliaram Kardec, em diversos pontos de "O Livro dos Espíritos",
afirmaram que a criação dos Espíritos está
mergulhada em um profundo mistério, como poderiam ter dado
uma resposta definitiva à questão das almas gêmeas?
Parece-nos que, nesse caso, bem como em muitos outros, eles haveriam
de estar igualmente longe de dar uma "resposta derradeira".
De qualquer forma, o CCU na forma forte não pode ser invocado
nesse caso por não se tratar de um ponto fundamental. Podemos
tomar a proposição de Emmanuel como uma opinião
pessoal sua, aliás em conformidade com o que vimos que esse
Espírito diz na introdução de "O Consolador".
Entretanto, certos setores do movimento espírita extremamente
ligados à letra e desatentos às sutilezas das idéias
de verdade e ensino dos Espíritos (a se aplicarem igualmente
para as explicações das coisas materiais), tomaram
esse caso como mais um exemplo a depor contra a "pureza doutrinária"
do Espiritismo que se imagina poder ser imposta a todo custo.
5 - Conclusões
Não foi senão por uma longa e difícil marcha
que a Humanidade, pela colaboração de inúmeros
luminares da cultura, inteligência e moralidade, conseguiu
compreender que a noção de verdade só pode
ser formulada dentro de bases estritamente relativas. Acompanhando
o progresso das religiões e das ciências (mais notadamente
dessas últimas) chegou-se a conclusão que as concepções
a respeito das coisas e dos fenômenos do Mundo tem uma grande
dependência com as épocas, recursos de pesquisa e tendências
culturais dos indivíduos. No estágio em que nos encontramos,
jamais poderemos aspirar à verdade absoluta.
O CCU pode ser invocado como um
princípio metodológico que foi aplicado no início
da codificação para estabelecer os fundamentos. Entretanto,
não é ele quem valida esses princípios, como
muitos poderiam pensar. Seria o mesmo que acreditar que os princípios
que organizam as ciências materiais só valem porque
os cientistas neles acreditam, os que são apenas a origem
desse conhecimento. As doutrinas declaradas de muitas disciplinas
científicas tem como fundamento o próprio princípio,
muitas vezes inverificável, que deve ser assumido como válido
a fim de que suas conclusões sejam determinadas. O mesmo
pode ser dito sobre a validade dos princípios espíritas:
no fato de gerarem explicações plausíveis e
verificáveis da Natureza que nos cerca. É a capacidade
que os fundamentos espíritas tem em explicar determinadas
anomalias que observamos com aspectos da personalidade humana e
com determinados fenômenos que representam a maior fonte de
validação de sua "comprovação".
Assim, dentro do escopo sobre o
que trata a Doutrina Espírita, tais conclusões são
igualmente válidas. Elas servem ainda mais para reforçar
definitivamente nossa extrema pequenez diante do universo em que
vivemos, a idéia de que nossas pretensões são
ínfimas. Aliás essa já é a opinião
emitida por Espíritos elevados quando inquiridos sobre nosso
tamanho nesse universo. Imediatamente transparece a importante conclusão
da inutilidade de quaisquer querelas que venham se formar ao redor
das concepções espíritas, sejam elas fundamentais
ou secundárias. Se nos é possível fechar a
correspondência com o passado, digamos que a única
"heresia" que se pode suspeitar hoje em dia é a
da sustentação de tais querelas contra nossos companheiros
muitas vezes dentro do próprio movimento espírita.
Ela é antiética e depõe contra todos os princípios
evangélicos que o Espiritismo sustenta abertamente.
Por outro lado, o sentimento de impotência diante da verdade
com relação a muitas questões profundas, não
invalida em nenhum ponto os efeitos inquestionavelmente benéficos
em nossas vidas que a aceitação e prática dos
princípios espíritas - revelados na medida que podemos
compreender - podem gerar. De fato, estaremos talvez muito distantes
de compreender por bases racionalmente sólidas princípios
como o do amor, caridade e misericórdia. A própria
evolução onde estagiamos hoje dá-nos muito
mais capacidade para sentir esses conceitos.
Há uma base sim muito sólida onde se estabelecem os
princípios e desenvolvimentos espíritas. Para conquistá-la,
o espírita deve abraçar com zelo o estudo da doutrina
e desvencilhar-se um pouco de velhas concepções. Isso
significa avaliar coerentemente o conteúdo dos novos ensinos,
compará-los aos antigos, notar as sutilezas por detrás
das novas noções aparentemente tão simples.
E nunca esquecer também que o mundo onde vivemos é
de fato muito maior que nossas vãs concepções
podem imaginar.
6 - Referências
[1] Allan Kardec, "O Livro dos Espíritos",
71 edição, Federação Espírita Brasileira
(1991).
[2] Eamon Duffy, "Santos e Pecadores, a História dos Papas",
Cosac & Naif Edições Ltda, São Paulo (1998).
[3] Silvio Seno Chibeni, "A Excelência Metodológica
do Espiritismo II", Reformador, Dezembro de 1988, pp. 373-378 (FEB).
[4] Allan Kardec, "O Evangelho segundo o Espiritismo", 104
edição, Federação Espírita Brasileira
(1944)
[5] Emmanuel, "O Consolador", 4 edição, Federação
Espírita Brasileira
Fonte:
A Era do Espírito - http://eradoespirito.blogspot.com
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