Ademir
L. Xavier Jr.
> Crenças Céticas XIX: casos modernos e seus paralelos
Cristo carregando a cruz (detalhe). H. Bosch (~1500).
Abrimos um parêntese na nossa
exposição aos espíritas sobre o problema da
aceitação da existência dos espíritos.
Lembramos nossos antigos posts sobre crenças céticas
[1][2], considerando os debates populares
em redes sociais sobre a 'Terra plana' e do 'geocentrismo'. Lembramos
tudo isso, e não podemos deixar de fazer um paralelo com
o problema da aceitação de alguns princípios
espiritualistas. Jamais imaginaríamos que o ceticismo ingênuo
poderia se revestir de aspectos tão dramáticos na
atualidade.
Se em pleno Séc. XXI temos gente que defende "Terra
Plana", que esperança há na Humanidade em aceitar
as realidades maiores do espírito?
Do ponto de vista espírita, penso que as manifestações
aparentemente grandes dos crentes modernos em Terra Plana e no geocentrismo
se explicam pelo retorno ainda tardio de milhões de Espíritos
que não tiveram a chance de entender melhor o assunto. Têm
eles dificuldades enormes de raciocínio a ponto de serem
incapazes de compreender abstrações mesmo que bem
simples. Mas, nas redes sociais, talvez pela primeira vez em suas
vidas imortais, encontraram a chance de manifestar publicamente
uma opinião, capitaneados por gente inescrupulosa que lhes
exploram as deficiências intelectivas.
Princípio unificador X conspiração
O que caracteriza a ciência modera sempre
foi a descoberta de um princípio ou fundamento unificador muitas
vezes inacessível aos sentidos ordinários. Tomemos o
caso da 'Terra esférica': esse princípio unifica
e coordena a explicação de um grande grupo de fenômenos
celestes (as variações de luz entre dia e da noite,
a posição do sol em vários lugares, etc). Entretanto,
não é possível ver com os próprios olhos
a esfericidade da Terra, a menos que se vá para o espaço
exterior, o que é possível, mas não a todas as
pessoas do mundo. Da mesma forma, a gravitação universal:
por meio do uso de uma única expressão de força
entre corpos massivos (dai sua universalidade), um vasto conjunto
de fenômenos celestes foi explicado. Entretanto, não
se sente nem se vê a força de gravitação
que o Sol exerce sobre a Terra e os outros planetas.
Assim, quase sempre no final da maturação de um paradigma
científico, leis ou princípios são declarados,
mas não são sensorialmente acessíveis. Sua força
como ciência vem da sua capacidade de explicar e unificar fenômenos,
a ponto de ser possível classificá-los em domínios
diversos, bem como prever outros ainda desconhecidos. Para fazer ciência,
eles são admitidos desde o início a fim de se prover
tal unificação e previsão fenomenológica.
Com os crentes céticos, entretanto, o único princípio
unificador que existe é a conspiração sobre
o mundo, que é a base de sua crença. Tomamos 'mundo'
aqui não como o planeta inteiro, mas como um aspecto da realidade.
Assim, um crente cético necessariamente é um crente
na conspiração e um cético em relação
a uma realidade, seja ela bem estabelecida cientificamente ou não.
É por isso que crentes na Terra Plana, por exemplo, rejeitam
qualquer evidência que, de outra forma, é prova do princípio
unificador da esfericidade da Terra. Ao invés disso, cada evidência
é explicada por causas independentes entre si ou se invocando
a conspiração, que é um gigantesco conluio entre
agentes mal- intencionados para justamente enganar o crente cético.
No caso em que o ceticismo é contrário ao que está
bem estabelecido, os céticos se comportam de forma ridícula
para os que participam da crença compartilhada escorada na
ciência. Porém, a reação negativa de uma
maioria ao conspiracionismo e à crença cética
pueril constituem, na cabeça desses crentes, a própria
prova da conspiração. Assim, o conspiracionismo
se torna uma 'profecia autorealizada', afinal a maioria não
tem condições de oferecer contra-evidências 'simples'
ou 'práticas' às crenças pueris céticas,
as pessoas apenas repetem o que aprenderam. Mas, para os crentes céticos,
tudo acontece como se, de fato, estivesse em curso uma conspiração.
No segundo caso, porém, a situação é muito
mais complicada porque não é fácil distinguir
cada grupo. A comparação aqui cai bem, pois a ideia
da sobrevivência da alma - assim como sua existência
e continuidade tal como apresentada por A. Kardec - é um princípio
unificador que pode explicar uma variedade imensa de fenômenos
e paradoxos de natureza religiosa ou filosófica. Porém,
ele não está disseminado como crença compartilhada
(a menos pelos espíritas obviamente), porque popularmente não
tem o selo de 'cientificamente provado' e não é propagado
por meio da educação formal.
Entretanto, o paralelo se aplica porque:
- O princípio unificador explica inúmeros
fenômenos, e está, por isso, harmonicamente relacionado
a eles que formam sua base empírica;
- A fenomenologia, mesmo que publicamente
acessível, somente pode ser compreendida de posse do princípio
unificador;
- O princípio unificador envolve certo
grau de abstração, pois ele não pode ser acessado
diretamente pelos sentidos ordinários. Em particular, para
compreender esse estado de coisa, é necessário estudar
toda a teoria do princípio unificador, inteirar-se de detalhes
de sua ação etc. Isso requer muito esforço,
boa-vontade e tempo;
- A conspiração aqui é
criada contra os fatos, contra os que os apoiam ou geram ou contra
o princípio unificador. Para os céticos endurecidos,
todos os médiuns mentem - uma prova da conspiração
dos que geram. Para outros, qualquer fato ou fenômeno têm
uma explicação pronta (quase sempre na base do 'engano',
'erro', 'experimento mal feito' etc), como uma conspiração
de falhas. Para outros céticos mais sofisticados, ideias
do senso comum, crenças compartilhadas ou próprias,
má vontade no estudo etc, obstam o pleno entendimento do
princípio unificador.
Dessa forma, o tipo de 'prova'
que crentes céticos nos fatos psíquicos exigem não
pode ser obtido se não se percorrer exaustivamente toda a
explicação que eles justamente querem refutar a qualquer
custo. Isso implica em conhecer o assunto melhor do que o mais fervoroso
adepto, coisa que crentes céticos nunca o fazem, seja porque
têm má-vontade ou porque são simplesmente incompetentes.
Podem ser grandes os prejuízos à educação
que ceticismo cético traz com questões já resolvidas
cientificamente - como a esfericidade da Terra ou sua posição
no sistema solar. Poderíamos citar ainda outras controvérsias
algo mais sofisticadas, como o Darwinismo ou a teoria do 'Big Bang'
[3].
Nosso paralelo, porém, facilita muito entender e defender
a ideia de que o ceticismo cético, se aplicado a questões
que não se consideram cientificamente resolvidas,
tem um efeito ainda mais deletério. Com essas questões,
o ceticismo cético é indistinguível, muitas
vezes, de uma postura supostamente científica ou rigorosa.
É por isso que não se veem avanços em muitas
áreas do conhecimento consideradas 'limítrofes' ao
bem estabelecido, porque o 'conhecimento compartilhado' se confunde
com esse ceticismo e impede sua livre investigação.
Referências
[1] Primeiro post sobre 'crenças céticas':
Crenças Céticas I: Introdução (2010)
[2] Último post sobre 'crenças céticas':
Crenças céticas XXVII: a Navalha de Ockham (2017)
[3] Tanto quando sei, crentes céticos não
se revoltaram ainda contra a noção moderna dos átomos
e a física quântica - todos exemplos de princípios
unificadores inacessíveis aos sentidos ordinários
(tal como os espíritos). Provavelmente é uma questão
de tempo para que isso aconteça.
Fonte: https://eradoespirito.blogspot.com/2019/06/crencas-ceticas-xix-casos-modernos-e.html
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