Nosso objetivo aqui não
é discutir as crenças do ateísmo, mas fazer
alguns comentários em torno de um artigo que pretende levantar
críticas contra o Espiritismo, notadamente sobre a relação
desse com as disciplinas acadêmicas. O artigo intitulado
'Espiritismo, Ciência e Lógica' é longo, mas
uma síntese do pensamento do autor desse texto pode ser
compreendida lendo-se a comparação que ele faz através
de um quadro entre suas noções de 'Ciência'
e de 'Espiritismo'. Esse quadro está mais ou menos no meio
do artigo, e passamos a discuti-lo abaixo.
Um pouco antes desse quadro pode-se ler:
E o Espiritismo
nessas mudanças? O fosso entre as metodologias da “ciência
espírita” e as demais “ciências”
do mundo material foi progressivamente aumentando.
Por 'mudanças' aqui, o
autor entende as revoluções da física moderna
que levaram a uma noção diferente do mundo em comparação
aos critérios e interpretações da física
chamada 'clássica'. Ele afirma que existe um 'fosso' entre
as 'ciências do mundo material' e o 'Espiritismo'. Vejamos
os pontos principais de sua argumentação, analisando
o quadro comparativo que o autor coloca como argumentos a favor
da existência de tal 'fosso':
"Ciência"
1) Comum novas gerações
de cientistas refutarem trabalhos anteriores. Aversão
a critérios de “autoridade”.
Aqui a
palavra 'refutar' está sendo empregada de forma pouco precisa.
Alguém já ouviu falar em 'refutação'
dos trabalhos de Newton, Einstein, Maxwell? Será que 'Einstein
refutou Newton'? Será que 'Maxwell foi refutado pela teoria
dos campos'? Será que a Mecânica Quântica refutou
a mecânica clássica? Existem casos históricos
de teorias - que eram as preferidas dos acadêmicos - terem
sido suplantadas por outras. Um exemplo interessante foi a teoria
do flogisto (antes dos desenvolvimentos da termodinâmica
na Física), ou a teoria dos continentes fixos (na Geologia),
suplantada pela tectônica
de placas. Na Física, as teorias clássicas podem
ser derivadas das teorias não-clássicas (ex., relatividade
e mecânica quântica) a partir de determinados limites.
A tese de 'refutação' não se defende muito
bem.
Também, a observação em análise demonstra
conhecimento idealizado do mundo acadêmico: com relação
à aversão aos 'critérios de autoridade',
isso é um mito que corre entre cientistas. Todos sabem
que um artigo científico receberá tratamento muito
diferente se for publicado por um estudante (ou autor desconhecido)
ou um prêmio Nobel, ainda que tenha o mesmo conteúdo.
A autoridade se constrói no conceito: o 'nome' (número
de artigos, citações, impacto etc). Ele conta muito
e se correlaciona fortemente com quanto um pesquisador ou grupo
de pesquisadores irá receber do governo ou de seus financiadores
para a realização de pesquisa. Essa é a razão
porque cientistas procuram sempre ter seus currículos atualizados
com novas publicações e alunos.
2) Obras de grandes mestres
(Principia Mathematica, Origem das Espécies, etc.) ainda
lidas como referência, fontes de valor histórico
e como uma forma de adentrar no raciocínio do autor.
Os estudantes, porém, usam bibliografia recente, expandida
e corrigida.
É
verdade, e, frequentemente, se acham erros de interpretação
imperdoáveis em tais 'bibliografias recentes, expandidas
e corrigidas' para tristeza dos estudantes (Campanario, 2006;
Hubizs, 2003). Qualquer pesquisador sério sabe que não
há nada melhor do que uma consulta aos autores originais
para se encontrar os princípios que fundamentam as diversas
teorias de sua ciência.
3) A lógica é
usada como ferramenta apenas. O raciocínio precisa estar
corroborado em evidências.
Somos também brindados
com essa preciosa observação:
"Kardec depositava fichas
demais na lógica. Ela é importante sem dúvida
e tê-la é um requisito mínimo. Mas quem
a estuda não demora a descobrir que ela não tem
tanto poder assim como dizem."
Ao longo
do texto, seu autor confunde a validade de pressupostos de uma
argumentação lógica com a própria
argumentação lógica. Não só
Kardec, mas toda a comunidade de cientistas deposita fichas demais
na lógica porque não existe outro método
de raciocínio disponível.
4) O bom senso e a experiência
usual nem sempre são seguidos (Relatividade e Mecânica
Quântica que o digam. Idem para a “ação
à distância” de Newton). Opta-se por soluções
pragmáticas, ainda que esdrúxulas.
O autor
diz que a 'Ciência opta por soluções esdrúxulas'
e que isso é o resultado da Ciência se afastar do
'bom senso' e da 'experiência'. Para quem compreende bem
os fundamentos da Mecânica Quântica, ou da Relatividade
sabe que essas teorias da Física estão estruturadas
de forma lógica - sim a mesma lógica que o autor
disse que 'não tem tanto poder assim como dizem'. Sob determinadas
interpretações particulares, esses ciências
podem revelar aspectos do Universo e do mundo que não estão
de acordo com a experiência comum do dia-a-dia dos humanos.
5) Há grande discussão
em torno da filosofia da ciência quanto à questão
da melhor metodologia para o estabelecimento de novos conhecimentos
(refutabilidade, crise de paradigmas, etc.).
A Epistemologia é uma área
acadêmica da filosofia. Entretanto, não existe consenso
entre especialistas da área sobre o impacto dos estudos
da epistemologia nas ciências. Na verdade, há quem
defenda que estudos da Epistemologia não tem serventia
na Ciência (Holton, 1984). Embora seja altamente positivo
que estudantes das ciências se debrucem também sobre
esse ramo da filosofia, sabe-se que a Epistemologia não
é matéria obrigatória nos currículos
da Física, Biologia, Química etc. Prefere-se não
perder tempo com o assunto, embora sua aparente relevância
para o desenvolvimento da Ciência.
6) Teorias
inverificáveis, mas belas, são postas de lado.
Aqui,o que se entende por 'belas
teorias'? Pois 'beleza' não é algo intrínseco
do objeto admirado, depende também de quem admira. Uma
teoria que é bela para um cientista pode não ser
para outro. Exemplos dessa situação existem muitos
na história da ciência. A teoria do movimento da
Terra era insustentável para os defensores da Terra fixa
e vice-versa.
Que exemplo que se pode dar de
uma teoria inverificável? Como podemos saber que uma teoria
é inverificável hoje diante dos avanços da
tecnologia? Toda teoria é construída sobre algum
fundamento empírico, entretanto, muitas teorias poderosas
foram propostas bem antes de se registrar qualquer evento ou fenômeno
que a suportasse.
7) Apropriações
entre ramos da ciência (malthusianismo no darwinismo,
biologia na sociologia – darwinismo social, eugenia) hoje
são vistas com reservas.
Talvez o
mais apropriado aqui fosse dizer 'integração' e
não 'apropriações'. De qualquer forma, a
frase parece conferir status de ciência ao Darwnismo Social
e a Eugenia. Talvez o objetivo seja dizer que determinadas interpretações
ou extrapolações a partir de teorias científicas
não mais são aceitas facilmente: o darwinismo social
e a eugenia da biologia, o malthusianismo do darwinismo. A sociologia
é uma teoria independente da biologia.
8) Ciências que não
têm acesso direto ao seu objeto de estudo (astronomia,
história, etc.) lançam mão da análise
indireta dos efeitos que chegam até nós. (espectro
de luz, documentos históricos).
Entretanto,
porque ateus, céticos e materialistas exigem 'provas objetivas
e repetitivas' dos fenômenos psíquicos? Por que a
ênfase no 'rigor' e na 'objetividade'? A imensa maioria
dos fenômenos chamados 'paranormais' não é
acessível aos sentidos. Kardec foi a primeira pessoa a
reconhecer as manifestações do Espíritos
só podem ser acessadas indiretamente.
9) Orações, Meditação
e estados alterados de consciência são passíveis
de estudo, mas isso não significa que seja verdade aquilo
que seus praticantes dizem.
Alguns estudos
acadêmicos estrangeiros apontam para algo diferente, anômalo
ou peculiar nos seres humanos: sua origem e natureza espiritual.
Obviamente, todo cientista é livre para pesquisar o que
bem entender, as limitações que se impõem
vem da falta de recursos financeiros, tempo (que é conseqüência
da falta de recursos) ou capacidade intelectual.
A frase faz transparecer que a Ciência
(no sentido de comunidade acadêmica) tem preconceito com
relação a certas fontes de conhecimento. Mesmo assim,
essa opinião contrasta com a de pesquisadores sérios
em Parapsicologia que, frequentemente, reportam o que seus 'sujets'
sentem (como informação importante), sem falar nos
pesquisadores de experiência de quase morte. Infelizmente
ainda não se desenvolveram métodos não humanos
de se acessar as realidades do pós-vida ou mesmo para praticar
uma simples telepatia.
10) Não faz afirmações
morais. Descobertas podem, inclusive, entrar em choque com a
moral vigente.
O objetivo das ciências
naturais não é mesmo fazer afirmações
morais. Mas isso não pode ser contado como uma virtude
como a observação parece sugerir. O mais correto
é dizer que as ciências naturais são neutras.
De outra forma, aplicações tecnológicas (derivadas
das descobertas científicas) podem tanto ser usadas para
o bem como para o mal (Exemplos: avanços da genética,
pesquisas nucleares etc).
"Espiritismo"
1) Medo de se distanciar da
ortodoxia kardequiana. Culto à autoridade contido no
espírito da Verdade ou Kardec. Há exceções,
óbvio.
O culto à ortodoxia é
o que mais se vê no ambiente acadêmico. Mais uma vez,
a frase deixa transparecer conhecimento superficial do mundo acadêmico
- que é o ambiente onde as ciências acadêmicas
são 'produzidas'. Confunde-se repetidamente 'ciência'
(teoria, hipótese, conhecimento) com o movimento humano
que a produz. Assim confunde-se igualmente 'Espiritismo' com 'Movimento
Espírita' tanto quanto 'ciência acadêmica'
com 'academia'.
O que na frase é chamado de 'culto' é o que ocorre
em qualquer ambiente humano, que, no caso da Ciência, tem
como objetivo proteger suas teorias contra revisões ou
alterações mal intencionadas. Um cientista defende
uma boa teoria com o mesmo zelo que um fazendeiro sua propriedade,
e não há o que se achar estranho nisso. Pelo contrário,
o oposto seria algo bastante inexplicável.
2) Livros de Kardec ainda utilizados
sem alterações, mesmo no que há de errado.
Notas de rodapé corrigem alguns erros.
Imaginemos uma situação
hipotética: uma nova edição do 'Principia'
de Newton sendo lançada repleta de 'revisões' e
'correções' a partir da relatividade restrita e
geral. Imaginemos que os livros editados por Mawxell, Newton,
Galileu, Boltzmann e outros grandes físicos fossem relançados
com revisões completas - não notas de rodapé.
Imagine lançar o livro fundamental de Charles Darwin em
uma edição totalmente revisada conforme as novas
descobertas da genética.
As obras dos pesquisadores pioneiros (em todas as áreas
do conhecimento) representam um manancial de conhecimentos originais,
onde se podem encontrar os princípios ou fundamentos das
ideias e teorias e, portanto, não são passíveis
de revisão.
Há muitas coisas que ainda devem ser 'descobertas' nas
obras de Kardec. Justamente por não se dar o devido valor
a certas passagens, é que não se consegue construir
uma teoria correta sobre muitos fenômenos considerados 'anômalos'.
3) A lógica é
utilizada como meio de prova ou refutação de hipóteses,
não havendo verificação de se a natureza
pensa igualmente.
Quem 'pensa' em matéria
de criação e teste de hipóteses são
os seres humanos. A Natureza não pensa, ela simplesmente
é. Aqui aparece a mesma crítica à lógica
que o autor do texto diz 'que não tem tanto poder como
pensam' (ver item 3 em 'Ciência' acima).
4) O senso comum, ao lado da
lógica, é superestimado.
Em boa
parte dos desenvolvimentos da Ciência, o 'senso comum' é
utilizado como sinônimo de 'razoabilidade', ou seja, é
uma percepção humana que permite distinguir o que
é razoável do que não é. O mesmo ocorre
com a lógica. (Ver considerações do item
3 em 'Ciência').
5) O conhecimento espírita
ainda é majoritariamente indutivo, baseado em moldes
científicos do século XIX (positivismo).
Se por 'positivismo' entendermos
a necessidade de se fundamentar o conhecimento em fatos ou fenômenos
naturais, é compreensível que o Espiritismo tenha
caráter 'positivo' neste sentido. Afinal aquilo que Kardec
descreve em 'O Livro dos Médiuns' não é invenção
dele, mas constitui uma fenomenologia verificável. É
necessário que seja assim, pois a base do conhecimento
não pode ser a crença ou a invenção.
Toda ciência - ainda que nascida como pura teoria - só
se estabelece ao se conectar a uma classe de fenômenos observáveis
(não necessariamente através sentidos humanos).
A ciência moderna continua a ser positiva ou positivista
nesse sentido.
Entretanto, é falso considerar o desenvolvimento e fundamentação
do Espiritismo em uma acepção particular do positivismo:
aquela que crê que o mundo deve ser explicado a partir de
entidades que sejam acessíveis apenas aos sentidos humanos.
Um positivista nessa definição só acredita
naquilo que os sentidos lhe apresentam. Kardec aceitou a existência
dos Espíritos e de muitas outras coisas a partir de evidências
indiretas (afinal Espíritos não podem ser vistos
ou 'detectados' por nenhum tipo de equipamento.
6) Persiste a presença
de hipóteses “ad hoc” inverificáveis
para sustentar pontos nebulosos da doutrina. (ex: vida “invisível”
em outros planetas).
Se o plano invisível existe
na Terra, porque não poderia existir em outros planetas?
Por que esse privilégio? Há aqui interpretação
limitada da noção dos 'mundos habitados' . Ela não
se refere a planetas, mas a planos de existência. Ao exigir
'hipóteses verificáveis' o autor está sendo
incongruente com sua crítica de Kardec - o de acusá-lo
de 'positivista'.
6) Apropriações
correntes são feitas sem garantia de que são válidas
(ação e reação, noções
de mecânica quântica, etc.)
É verdade. Há muitas
pessoas que fazem uso de paradigmas de ciências bem estabelecidas
como modelos de entidades de natureza espiritual. Isso não
só no Brasil como no exterior onde, dizem, o Espiritismo
de Kardec não existe. Há que se explicar porque
isso ocorre nesse contexto (além da argumentação
simples exposta pelo autor), demonstrando que isso não
é característica da Doutrina Espírita. Para
ver um exemplo recente do uso de noções de Física
Quântica, consulte a revista Neuroquantology.
7) Pede um lugar “especial”
entre as ciências por não ter acesso direto ao
seu objeto de estudo (espíritos).
Aqui temo outra afirmação
totalmente falsa. Por isso é importante distinguir
entre a noção de disciplina acadêmica (disciplina
que tem corpo de pesquisadores, cátedra, laboratórios,
verbas, corpo de edição com publicações
sujeitas à avaliação por pares etc) com ciência
ou conhecimento sobre o qual ela discorre. Toda vez que dizemos
'O Espiritismo é Ciência', não estamos
a afirmar que ele é uma disciplina acadêmica nesse
sentido especial. Assim, a afirmação não
é válida.
Ainda assim, é possível ver que os 'objetos da Natureza'
descritos e utilizados pela Doutrina Espírita são
entidades que têm sua existência no mundo em que vivemos.
Se eles não são objeto de estudo das disciplinas
acadêmicas, então quem os estudará?
8) Verdades podem ser extraídas
de “estados alterados de consciência”, vulga
mediunidade. Contudo, nenhuma proposta rigorosa para a separação
do joio e do trigo foi apresentada.
Será correto igualar 'estados
alterados de consciência' com a mediunidade? Se definirmos
estado de consciência normal como o estado mental durante
a vigília, então, quando dormimos ocorre mediunidade?
Se o estado de vigília e sono são estados normais
de consciência, então alguém bêbado
terá mediunidade?
As 'propostas rigorosas' passam todas pelo crivo neo-positivista
tece longas críticas à existência da própria
fenomenologia psíquica. Aqui vemos transparecer incoerência:
a Ciência aceita 'explicações esdrúxulas'
e evidências indiretas fugindo do 'bom senso', mas as investigações
na esfera psíquica ou espiritual deve passar por um 'crivo
rigoroso'.
8) Produz cartilhas de certo
e errado. Eufemismos são usados para se alegar que “não
é bem assim…”
Fica difícil avaliar essa
afirmação do autor de 'Espiritismo, Ciência
e Lógica' se ele não deu nenhuma referência
a quais são essas 'cartilhas'.
Existem maneiras mais sofisticadas
e razoáveis de se defender o ateísmo. Está
claro que o referido artigo não só é tendencioso
em relação à Doutrina Espírita, mas
constitui uma defesa precária do ateísmo, que merece
nosso respeito como crença.