1 - Considerações
Iniciais:
A nosso ver, têm ocorrido recentemente
alguns abusos que se exteriorizam na forma de afirmações,
que acreditamos um tanto descabidas, publicadas em diversos periódicos
espíritas e obras diversas. Elas são todas concernentes
ao contexto em que o Espiritismo pode ser (pretensamente) inserido
no conjunto das ciências modernas. Tais abusos tentam, de
uma maneira algo desesperada, não só estabelecer uma
possível conexão entre o Espiritismo e as demais ciências
ordinárias (principalmente a Biologia, Química e notadamente
a Física) como também justificar a Doutrina Espírita
diante de tais disciplinas. Nosso objetivo aqui é estabelecer
as causas principais de tal movimento, apontando sua prescindibilidade
e seu aspecto prejudicial ao Movimento Espírita.
O que move a tentativa acima mencionada de justificar a importância
do Espiritismo via ciência, bem como sua possível interpretação
científica diante de outras doutrinas científicas
são, basicamente, a falta de compreensão do aspecto
científico real do Espiritismo, a ignorância em relação
ao verdadeiro significado da Ciência (como ela opera e se
estabelece) e, de algum modo, um certo gosto por novidades, modernismos
e fatos extraordinários.
O aspecto científico do Espiritismo anunciado por Kardec
está, ao que parece, longe de ser compreendido em sua última
expressão dentro do atual Movimento Espírita. Não
compreendendo os ingredientes essenciais e suficientes que identificam
uma doutrina como sendo genuinamente científica (ingredientes
que o Espiritismo possui completamente), busca-se uma adequação
da Doutrina Espírita dentro dos moldes do puro empirismo,
ou de outra forma, lançando mão de argumentos em torno
do indutivismo ingênuo. Há, de uma maneira ou de outra,
um forte apelo ao senso comum.
Para avaliarmos completamente o aspecto científico do Espiritismo
é necessário o emprego da análise moderna da
Filosofia, mais precisamente o ramo que estuda a teoria do conhecimento
científico ou Epistemologia da Ciência. Não
entraremos aqui nos detalhes dessa análise, aliás
um tanto complexa, afirmamos apenas que tal estudo já pode
ser encontrado, e indicamos ao leitor o lugar onde encontrá-lo
(ver Chibeni 1988 e 1994).
Uma possível fonte de confusão entre a relação
Espiritismo e as demais ciências é gerada, muitas vezes,
pela falta de significado preciso para certas palavras. Os exemplos
são muitos, um clássico é o da palavra energia.
Há diversos significados ligados a essa palavra, e é
necessário imenso cuidado em se especificar claramente tais
significados. Na Física Clássica, por exemplo, ela
designa uma qualidade inerente aos corpos materiais, que permanece
latente até que certas condições sejam satisfeitas.
Não é infreqüente o uso do termo energia por
diversos autores espirituais, mas nesse caso, nenhuma tentativa
de associação direta com o significado implicado pela
Física pode ser inferido. Existem, entretanto, muitos autores
(encarnados, é claro!) que parecem confundir, não
poucas vezes, as duas acepções possíveis, sugerindo
uma tradução da energia de que falam os Espíritos
em termos da energia usada na Física, nossa velha conhecida.
De outras vezes, a precipitada justificativa científica do
Espiritismo segue a freqüente moda de justificação
científica feita em outras doutrinas, como por exemplo a
Teosofia e doutrinas orientalistas (ver,
por exemplo, Phillips 1980). Essa justificativa
caracteriza-se por uma tentativa de inserção de certas
idéias religiosas, na maioria das vezes de origem oriental,
no contexto de recentíssimas descobertas ou modelos da Física
contemporânea. É natural que haja pessoas que pensem
ser necessário o mesmo procedimento com o Espiritismo. Não
compreendem, entretanto, que a Doutrina Espírita já
possui uma base científica própria, e que a natureza
do fenômeno que ela estuda, bem como o estado atual de nosso
conhecimento sobre a matéria não permitem uma conexão
tão direta entre a Física, por exemplo, e o Espiritismo.
Além disso, é necessário que se saiba que muitos
dos modernos modelos da Física (como exemplo, o diversos
modelos teóricos de interação entre partículas
e campos no microcosmo) sofrem radicais revisões todos os
dias. O Espiritismo, por sua vez, tem uma estrutura muito mais estável,
porque repousa em fenômenos de caráter mais diretamente
observável, sendo suas afirmações de muito
maior confiança (7).
É certo que o Espiritismo guarda uma relação
com as outras ciências, mas os fatos espíritas, por
si sós, já asseguram uma especial independência
de seu objeto de estudo com o das demais ciências materiais.
Não obstante, essa independência foi muito bem identificada
e analisada por Kardec em O que é o
Espiritismo.
Dentro do Movimento Espírita, muitas vezes a anunciação
de descobertas gerais das ciências materiais (como a Física,
com seus novos modelos acerca do funcionamento do Universo) é
feita, em geral, tendo por base obras de divulgação
científica (ver Chagas 1995)
que, a nosso ver, pecam por falta de
precisão da discussão das idéias, sem contar
com a dificuldade inerente de se expressarem conceitos altamente
abstratos, muitas vezes (como, por exemplo, a unificação
do espaço e do tempo em um contínuo quadri-dimensional,
a dilatação do tempo, etc., da Teoria da Relatividade
Restrita) em termos de uma linguagem mais acessível ao leigo.
Isso implica, idealmente, a tentativa de fazer o não especialista
compreender plenamente tais conceitos, tais quais são dentro
da teoria em que estão inseridos. É bastante clara
a impossibilidade de tal tentativa. Se desprezarmos os erros grosseiros
de tradução que muitos textos de divulgação
trazem, quando de origem estrangeira, concluímos que eles
podem, no máximo, passar ao leitor não especialista
uma idéia vaga de tais conceitos. Ora, assim sendo, uma importante
questão seria: Que valor pode ter a tentativa de se relacionar
conceitos e fundamentos das ciências ordinárias com
fundamentos importas de Doutrina Espírita, quando tal intento
é feito tão-só baseando-se em textos de propaganda
científica? A precariedade de tradução, a dificuldade
de expressão apropriada dos conceitos, bem como a transitoriedade
das teorias que tais textos podem trazer são suficientes
para termos uma idéias clara da resposta a essa questão.
Relacionada à dificuldade de entendimento do aspecto científico
real do Espiritismo está a profunda falta de informação
existente nos meios espíritas (o que é, no nosso entender,
bastante natural) e, por que não dizer, acadêmicos
(o que já não parece tão natural assim), em
torno do conceito de Ciência. Mais uma vez, um apelo à
Epistemologia se faz necessário (ver
Chibeni 1988 e 1994, Chalmers 1976).
As implicações dessa ignorância são as
eternas e mal fundamentadas críticas ao Espiritismo feitas
por diversas escolas parapsicológicas e demais adeptos das
denominadas "ciências psi" (Chibeni
1988). Esses rejeitam, explicitamente,
a idéia do Espírito como causa envolvida em grande
parte, se não em todos, dos posteriormente denominados "fenômenos
paranormais". Assim agindo, queremos deixar claro ao leitor,
tais escolas são levadas por uma idéia ultrapassada
de Ciência, bem como por concepções obsoletas
do método científico.
2 - Um Exemplo:
Um exemplo um tanto exagerado das confusões com relação
às questões expostas anteriormente pode ser encontrado
no artigo "Matéria e antimatéria" (Reformador,
abril 1994). O autor inicia dizendo
que "a ciência terrestre chama de matéria tudo
o que tem energia e massa, é sólido (...) ou fluídico
(...) e ocupa lugar no espaço e no tempo". Essa afirmação,
de caráter geral, confere à matéria determinadas
propriedades como, por exemplo, massa, mas não pode ser usada
para caracterizar certos tipos de matéria no universo. O
ponto crítico está onde é afirmado:
"É de antimatéria
o plano vital em que se movem os Espíritos desencarnados."
E, mais abaixo:
"É pela diferença
de sinalização de carga elétrica dos elementos
que formam o 'plano invisível' que, em condições
normais, não o percebemos fisicamente."
Em nenhum lugar dentro da bibliografia
espírita, escrita por autores abalizados e de peso, podem
ser encontradas ou sequer deduzidas tais afirmações.
Muito ao contrário, das obras de Kardec tem-se claramente
que o mundo espiritual constitui um universo paralelo, totalmente
independente do material, tanto que, ainda que o mundo material
perecesse, o espiritual continuaria existindo. Isso porque matéria
e espírito são dois princípios independentes
no universo com uma origem desconhecida. As questões 25,
26, 27, 84, 85 e 86 de O Livro dos Espíritos, são
suficientes para esclarecer quaisquer dúvidas. Vejamos, por
exemplo, a questão 86:
"O mundo corporal poderia
deixar de existir, ou nunca ter existido, sem que isso alterasse
a essência do mundo espírita?"
Decerto. Eles são independentes;
contudo, é incessante a correlação entre ambos,
porquanto um sobre o outro incessantemente reagem.
Por outro lado, o que a Física
estabelece como certo com respeito à antimatéira torna
absurdas as afirmações propostas acima relacionadas
ao mundo espiritual. Conforme H. Alvén (1965), que foi ganhador
do Prêmio Nobel em 1970, em "Propriedades da
Antimatéria":
"A teoria de Dirac do elétron
e a descoberta do pósitron criou a crença de que
toda partícula possui sua correspondente antipartícula.
Essa crença foi confirmada pela descoberta do antipróton.
Todas as outras partículas parecem Ter também antipartículas.
Disso se conclui que os "antiátomos" devem existir,
e são semelhantes aos átomos ordinários,
com núcleos formados de antiprótons e nêutrons
envoltos por pósitrons. Tais antiátomos devem Ter
as mesmas propriedades dos átomos ordinários. Eles
devem formar compostos químicos similares aos compostos
químicos ordinários, que emitem linhas espectrais
a exatamente os mesmos comprimentos de onde dos átomos
ordinários."
Assim sendo, as propriedades da
antimatéria são as mesmas da matéria ordinária,
ou, em outros termos, antimatéria é o nome dado a
um tipo especial da matéria! Por outro lado, a existência
da antimatéria foi confirmada experimentalmente
(10), assim como a impossibilidade de coexistência
simultânea de matéria e antimatéria. Essa é,
também, a causa da inexistência natural de antimatéria
em nosso mundo. Está claro, entretanto, que de nenhum lugar,
nem do atual conhecimento da Física, nem da Doutrina Espírita,
semelhantes afirmações podem ser inferidas.
3 - A
Não Necessidade e os Perigos:
Do que foi exposto, é bastante
óbvio que as tentativas de inserção do Espiritismo
no contexto das modernas teorias científicas, bem como sua
justificação diante da academia estabelecida, o que
visa um tanto à sua valorização, são
totalmente desnecessárias. De fato, elas são desnecessárias
porque, tendo como objetivo de estudo algo que não se identifica
como sendo a matéria ordinária, o Espiritismo consegue
suficiente independência com relação às
demais doutrinas científicas que estudam a matéria,
para caracterizar-se como um ramo independente de conhecimento.
Não só por isso, pelo caráter harmônico
com que os princípios espíritas interagem entre si,
fruto de sua boa fundamentação, pela maneira com que
estão estabelecidos tais princípios e por suas bases
experimentais, pode-se considerar a Doutrina Espírita como
uma teoria genuinamente científica no sentido epistemológico
moderno. Essa doutrina tem como objetivo o estudo do elemento espiritual,
e não se confunde de nenhuma maneira com as demais ciências,
embora guarde alguma relação com elas. Lembramos,
também, que Allan Kardec jamais se atreveu a tentar interpretar
os novos conceitos que descobriu de acordo com os conhecimentos
científicos de sua época. Se o tivesse feito, não
sabemos quais teriam sido as conseqüências, desastrosas
com certeza, ao posterior desenvolvimento e expansão da Doutrina
Espírita.
Os prejuízos de uma campanha
indiscriminada que visa a ressaltar ou inferir precipitadamente
semelhante relação podem ser facilmente previstos.
Tais prejuízos podem não ser grandes para aqueles
que já possuem um conhecimento considerável do corpo
doutrinário espírita, mas o que dizer dos iniciante?
Quantas confusões totalmente desnecessárias podem
ser evitadas nas mente dos principiantes em Espiritismo se certas
afirmações simplesmente não forem feitas? Acreditamos
não serem poucas.
O verdadeiro trabalho espírita
está no aprimoramento do espírito humano em sua bagagem
moral, na sublimação dos instintos humanos, vertendo-os
em valores divinos, em suma, no progresso moral do mundo. Para isso,
sim, o estudo acurado e cauteloso é imprescindível.
Também por isso, experimentações científicas
detalhadas no campo espírita só podem ser feitas com
a expressa colaboração do Plano Espiritual superior
que, para isso, exige uma definitiva demonstração
desses valores divinos em nós. (Ver
No Mundo Maior, de André Luiz, p. 31.)