Do mesmo modo como em outras épocas
e para temas análogos, Ciência e Religião duelam
em palcos da Sociedade humana, cada qual com seus argumentos, visando
a permissibilidade ou a proibição de determinadas condutas
humanas. No passado, homens de visão e conhecimento científico,
à frente do contexto social e histórico, também
construíram teses e demonstraram, por meio de estudos e pesquisas
em muitos campos e setores, a imprecisão e a invalidade de
diversos dogmas religiosos, construídos sob bases míticas
ou místicas com apoio no sobrenatural, e representativos do
mistério que envolvia as situações de difícil
entendimento.
Muitos destes homens pagaram com suas próprias vidas a ousadia
de pensar, experimentar e divulgar suas idéias, mas foram significativos
para que outros, após eles, em cenários mais favoráveis
e com consciências mais despertas, pudessem esclarecer as coletividades
acerca de dados “mistérios” da vida, e facilitar
a coexistência planetária.
Talvez um dos temas mais áridos de nosso tempo seja a delimitação
dos conceitos de vida e morte. Tanto no seu início, quanto
seu termo. Aborto e nascimento, eutanásia e morte “natural”
são questões que inquietam inúmeras pessoas,
provocando debates apaixonados e acalorados, em que nem sempre os
argumentos lógicos e conscientes sobressaem.
Socialmente, o mundo evoluiu bastante. Da formatação
de Estados Religiosos, em que o poder político era repartido
entre autoridades civis, militares e religiosas, ou em que estas últimas
tinham grande ascendência sobre os governos, chegamos ao modelo
de Estado Laico, vigente em praticamente todas as Nações
do presente, salvo algumas exceções. O laicismo, a propósito,
é a doutrina filosófica que propugna pela absoluta separação
entre o Estado e as agremiações religiosas, e a neutralidade
do primeiro em questões afetas à religião. Tem
como valores básicos a liberdade de consciência, a igualdade
entre os cidadãos em matéria religiosa, e a origem humana
e democraticamente estabelecida das leis do Estado.
É a Ciência, por sua vez, um importante móvel
das ações humanas, calcada na progressividade dos conceitos
e na melhoria de tudo o quanto esteja sujeito às leis físicas.
Participa, ela, de uma das maiores batalhas do Ser contra inimigos
poderosos: a dor, a doença e a própria morte. Em todas
as partes do globo terrestre, pessoas e instituições
se dedicam ao desafio de combater e vencer estes “inimigos”
da sobrevivência. Vários dos ramos científicos,
por sua vez, especializam-se cada vez mais e propiciam um melhor equacionamento
das questões que tanto atormentam a Humanidade. Uma delas,
sem dúvida nenhuma, é tornar os organismos físico-biológicos
mais resistentes às enfermidades e melhorar o nível
de qualidade de vida das pessoas. É aí que entra a questão
das pesquisas com células-tronco embrionárias.
O Brasil possui, neste particular, uma das legislações
mais avançadas do mundo, a Lei de Biossegurança, e os
profissionais de nosso país já participam de grupos
de pesquisa e projetos de parceria institucional internacional. Pelos
termos da legislação brasileira, estão autorizados
os experimentos com células-tronco adultas e embrionárias,
e estas últimas são objeto de celeuma e de uma ação
direta de inconstitucionalidade (ADI n. 3510), que está na
pauta de discussão da mais alta corte judiciária brasileira,
o Supremo Tribunal Federal (STF). Isto porque uma vertente opinativa
defende que tais organismos, originados do processo de fecundação
“in vitro”, entre óvulo e espermatozóide
humano, conteriam vidas humanas e, portanto, o descarte de embriões
fecundados nos experimentos clínicos seria uma hipótese
de aborto, a ser rechaçada legal e juridicamente.
No bojo desta discussão está o argumento de que o conceito
do bem jurídico “vida” teria início na “concepção”,
isto é, com a dita fecundação, mesmo artificial.
E a carta constitucional brasileira, como grande parte das similares
de outros países protege a vida como bem supremo, punindo,
em âmbito criminal, as agressões a ele, em qualquer circunstância,
excetuando algumas situações peculiares, de legítima
defesa e de guerra, por exemplo.
Assim sendo, o debate que chega à corte judiciária envolve,
de um lado, o grupo dos cientistas, dos laicos e daqueles que desejam
o progresso das pesquisas (e, entre eles, um considerável número
de pessoas que depende dos resultados destas para evitar a morte ou
melhorar a qualidade de vida), e os religiosos, cujo argumento maior
é o de que Deus provê a vida e tudo o que ocorre se dá
por específica “autorização” de Deus,
de modo que a incursão humana nestes setores – sobretudo
no âmbito de decidir quando e como deve ocorrer ou definir seu
término – consiste em agressão às “Leis
de Deus”.
A questão é tão profunda e complexa que também
divide os espíritas. Há, notadamente, o contraponto
entre espíritas “científicos” (laicos) e
“religiosos”, de modo que os primeiros entendem a realidade
de uma co-participação do homem nos “desígnios”
divinos, como co-autor e podendo, em inúmeras situações,
obrar segundo sua inteligência e tirocínio para a elucidação
das questões de natureza física, com a (mais ampla)
liberdade de pensamento e de ação, condicionadas, é
claro, as decisões ao condão da responsabilidade de
cada um, perante as chamadas Leis Espirituais (representadas, em certo
aspecto, pelas Leis Morais epigrafadas em O Livro dos
Espíritos). De outro lado, figuram os argumentos
restritivos e condicionantes daqueles que entendem que o homem “brinca
de ser Deus” e adentra campos que deveriam “seguir o curso
natural”, como, por exemplo, a situação de não
abortar, em nenhuma circunstância, porque toda gestação
seria uma oportunidade (viável e válida) do reencarne
de espíritos em evolução, necessitados daquele
corpo. Tudo obedeceria, assim, aos desígnios divinos, no sentido
de que Ele (o Deus, causa primária, inteligência suprema)
estaria presente em tudo e, portanto, a interferência humana
seria pedante, vaidosa e descabida.
Ambas as “correntes” espiritistas usam da fundamentação
contida em O Livro dos Espíritos,
para alicerçar seu pensamento e construir sua argumentação.
No exato momento histórico-evolutivo em que deveríamos
estar continuando a experimentação espírita,
nos moldes prelecionados por Kardec, há mais de 150 anos, remontando
ao critério do Consenso Universal dos Ensinos dos Espíritos
(CUEE), submetendo questões a diversos Espíritos, sob
a intervenção de distintos médiuns, em épocas
e locais igualmente diferentes, inclusive aproveitando as noções
científicas e filosóficas de nossa época à
consideração das inteligências invisíveis
– num esforço de consonância entre o que a produção
humana e a informação espiritual possam declarar –
preferimos nos basear em dadas “opiniões” deste
ou daquele espírito, que se corresponde com o nosso mundo através
de dados médiuns, considerados “oficiais”, sem
cotejar a necessidade imperiosa de submetermos toda e qualquer comunicação
– independentemente da assinatura espiritual ou da personalidade
do receptor – ao crivo de Erasto (“rejeitar nove verdades
a aceitar uma só mentira”).
O “duelo”, assim, resurge entre nós, talvez não
com a característica dos cenários de meados do século
XIX, com armas de fogo e regras permitidas pelas leis da época,
mas com a contextura de estarem, lado a lado, correntes de pensamento
(sob o albergue do conhecimento e da prática espíritas)
que, ao invés de procurarem um consenso lógico e um
entendimento necessário, persistem na apresentação
de verdades dicotômicas, deixando o incauto iniciante ou pouco
embasado estudioso espírita, na dúvida sobre “o
que” realmente deve ser aceito, entendido e difundido.
Particularmente, no cenário das pesquisas científicas,
entendemos que a Ética deva ser a base para os experimentos
e os resultados obtidos. Não a moral individual, sujeita aos
percalços dos interesses humanos, muitos dos quais escravizados
às conquistas derivadas do poder, da honra e do dinheiro. Divisar,
com precisão, os objetivos de cada evento humano ou material,
entendendo que o homem é personagem principal e não
mero títere da “Espiritualidade” ou de “Deus”,
deve ser o primeiro passo.
Não podemos continuar reféns do atraso “ideológico”
que limita as ações humanas à “autorização
divina”, nem, tampouco, adotarmos como regra procedimental a
ampla liberdade de ação, cabendo aos homens (legisladores,
operadores jurídicos, cientistas e dirigentes políticos)
a aquilatação, em padrões aceitáveis,
dos limites e das permissibilidades, o “sim” e o “não”,
o “certo” e o “errado”, ainda que, no transcurso,
seja necessário rever dados procedimentos para adaptá-los
a novos delineamentos, novamente egressos do exercício do raciocínio
e da moralidade coletiva.
As pesquisas – no Brasil ou em outras plagas – com certeza
continuarão ocorrendo e a própria Espiritualidade –
em consenso e em conjunto com a Humanidade encarnada – saberá
aproveitar a ação consciente e produtiva dos “homens
de bem” para promover o progresso. Assim tem sido, e assim continuará
a ser... Independentemente dos homens e suas obtusidades...
(*) Marcelo Henrique Pereira, Mestre em Ciência
Jurídica, Presidente da Associação de Divulgadores
do Espiritismo de Santa Catarina e Delegado da Confederação
Espírita Pan-Americana para a Grande Florianópolis (SC)