Toda ciência que se preza e que
almeja permanecer na senda do tempo, precisa de adeptos sérios
e equilibrados, que não assumam posições ortodoxas
e permanentes. Se as ciências possuem axiomas ou princípios,
também é sabido que tais postulados, em razão
da imperfeição dos conceitos, experimentos e realizações
humanas, são mutáveis e progressivos. O mesmo se dá
com a ciência espírita que, apesar de emanar de uma fonte
fidedigna – Deus e os Espíritos Superiores – precisou
e precisa do elemento intermediário humano – mediunidade
e entendimento – para ser conhecido, divulgado e aprendido.
Nas três últimas
décadas do século passado, de um modo mais efetivo,
diversos foram os organismos institucionais (centros, alianças
e federações) que desenvolveram projetos ou campanhas
voltadas ao estudo da Doutrina Espírita. Cada um deles
tinha um objetivo, um objeto e um método próprios, visivelmente
direcionado à qualificação do público-alvo
e a formação de continuadores das tarefas no movimento
espírita. Não podemos esquecer, também, dos inúmeros
trabalhos de sistematização da transmissão do
conhecimento espírita, desenvolvido por pessoas sérias
e dedicadas – algumas sem muito preparo acadêmico ou pedagógico,
é verdade, – mas que, a seu turno, envidaram esforços
para propagar os ensinamentos e fomentar a constância e a especialização
dos interessados ou adeptos. Recordo-me, por exemplo, de reuniões
em que as questões e as respostas de O livro dos espíritos
eram lidas e comentadas, uma a uma, ou os temas de O céu e
o inferno e A gênese eram explanados por monitores, com o uso
de técnicas de ensino-aprendizagem e dinâmicas de grupo,
muitas das quais tenho em arquivo e continuo utilizando em seminários
ou workshops – espíritas ou acadêmicos –
tal a sua validade e pertinência.
Mas, convenhamos, será
somente isso o Estudo da Doutrina Espírita? Para que se destina
e que resultados alcança estes procedimentos? Qual a ligação
entre Estudo e Ciência?
Em regra geral, o movimento espírita
acha-se voltado para a prática do proselitismo, isto é,
a difusão das “verdades”, conceitos, idéias,
premissas ou princípios afetos ao Espiritismo, possibilitando
aos neófitos e aos adeptos, por meio da divulgação
e da repetição, o entendimento das noções
básicas que a Filosofia Espírita encampa. Considerando,
ainda, a parcela majoritária do espiritismo tupiniquim
(cognominado por Sandra Stoll como “espiritismo à brasileira”),
podemos afiançar que os prosélitos são de natureza
religiosa, de vez que os freqüentadores das instituições
comportam-se como fiéis e encaram a “ida ao Centro”
como prática de fé religiosa, mesmo que a doutrina não
possua ritos, sacramentos ou dogmas. Mesmo sem querer tratar deste
tema (religião ou não-religião) neste ensaio,
é impossível abordar a prática espírita
sem tangenciar a religiosidade explícita dos espíritas.
Assim sendo, que espaço temos
para o “crescimento” da Doutrina Espírita, isto
é, a expansão dos conceitos, a descoberta de novas verdades,
a apresentação de novas teses (concebendo a perspectiva
da antítese e da síntese, ou seja, a refutação
e a conclusão – afirmativa ou negativa – conseqüente),
e, como corolário deste processo, a continuidade do aprendizado
balizado no Controle Universal dos Ensinos dos Espíritos? Reflitamos...
Com muita franqueza, a postura sectária
de muitos dirigentes e líderes espíritas, que considera
o Espiritismo como uma “revelação divina”,
isto é, obra do conjunto de espíritos superiores, sem
intervenção humana – ressalvado, é claro,
o trabalho de codificação de Allan Kardec – e,
portanto, só pode ser “alterado” mediante uma “determinação”
de ordem superior para que um (ou mais) missionários venham
repassar novas informações ao público-ouvinte
humano. No máximo, cremos, é permitida a “complementação”
de alguns temas, ou a releitura dos mesmos, por meio do concurso de
“renomados” guias ou médiuns de “reconhecida
idoneidade”. Por isso, grande valor se dá aos livros
psicografados – mormente se assinados por determinados espíritos
que já gozam de prestígio e validade no seio do movimento.
Em paralelo, não se difunde a prática dos trabalhos
de pesquisa (científica ou literária), de peso e com
lastro acadêmico, quando, no máximo, se procede à
revisão bibliográfica para a montagem de “colchas
de retalhos” sobre o que afirmaram este ou aquele médium
ou espírito acerca de dados temas. Evidentemente, isto não
é unanimidade e há, aqui ou acolá, pessoas ou
grupos pequenos voltados ao trabalho de construção do
pensamento espírita, entre os quais podemos, honrosamente,
citar o CP-Doc (Centro de Pesquisa e Documentação Espírita)
e o IPEPE (Instituto de Intercâmbio do Pensamento Espírita).
Precisamos, urgentemente, abrir espaço
para a renovação de ares no movimento, evitando que
o mesmo se cristalize no dogmatismo e na ausência de perspectivas,
já que, em função da própria limitação
histórico-territorial do trabalho (magnífico e pioneiro)
do Prof. Rivail, algumas questões – mesmo com a criteriosa
intervenção do codificador e a acuidade dos espíritos
que o assistiram na tarefa – refletem o pensamento vigente na
Europa do Século XIX, e necessitariam de atualização
de linguagem e ideologia, de pluralismo e interdisciplinaridade, além,
é claro, do necessário aprofundamento, já que,
evidentemente, em termos intelecto-culturais, saltos imensos foram
dados no concurso do tempo.
A última e mais peculiar questão
que brota desta discussão é personalíssima: quem
fará a atualização e a alteração
do modus procedendi da obtenção e da disseminação
dos “novos” conceitos espíritas? Nós, ou
seja, todos os espíritas conscientes, que acreditam no trabalho
de parceria entre os Planos Material e Espiritual e sabem que o progresso
(humano-espiritual) é a conseqüência do trabalho
conjunto. Reveladores, por excelência, são todos os espíritos
que cotidianamente continuam comparecendo em reuniões e assistindo
líderes e pensadores espíritas, assim como, propriamente,
também, estes últimos, desde que cada uma das teses
apresentadas possa estar sujeita ao mesmo crivo inicialmente proposto
pelo pedagogo francês: a contrafação, a comparação
com outras informações, a submissão da mesma
às premissas fundamentais da Ciência Espírita,
seus princípios.
Às lideranças espíritas,
por fim, um apelo sincero: ao invés de olhar com preconceito,
condenando previamente aqueles que militam no círculo da Cultura
Espírita, interessados na permanência dos ideais espíritas
e sua influência ativa no mundo em que vivemos, acusando-os
de “intelectuais” ou “elitistas”, que tal
entender que, apesar das limitações humanas (entre as
quais as mazelas do egoísmo e orgulho ainda presentes em nós),
a “volta ao passado”, é uma necessidade premente:
Kardec – como os pensadores, estudiosos e cientistas do presente
– só pôde realizar a tarefa hercúlea que
encampou como missão, porque possuía um cabedal de conhecimento
(acadêmico-científico) e uma metodologia de pesquisa
derivadas de sua bagagem de homem cultural. Por que não nós?