“Esqueçam
os problemas da vida
O trem, o dinheiro e a bronca do patrão
Não pensem em suas marmitas
E no alto preço do feijão
Joguem fora a roupa do dia-a-dia
E tomem banho no chuveiro da ilusão.”
(Samba-enredo da Beija-flor, 1979.)
Textos espíritas sobre o carnaval existem muitos. Quase todos
condenam a festa e o comportamento das pessoas, com severas prescrições
quanto ao futuro (espiritual) dos que a ele aderem, em face dos exemplos
de insanidade daqueles que escolhem a época para, sob máscaras,
pinturas ou fantasias – ou não – desfilarem atitudes
que seriam impensáveis ou inaceitáveis no resto do ano.
Preferimos, nós, outro rumo. Ao invés de pregarmos e
apregoarmos, simplesmente, a abstinência e o distanciamento,
enfocaremos algumas justificativas ou explicações para
a conduta humana deste início de milênio, apresentando,
ainda, algumas variáveis e contingências importantes
para entender o porquê dos festejos. De início, há
uma certa sobrecarga de tratamento em relação a tal
comemoração, e que não é aplicada a outros
festejos, como o da passagem de ano e os eventos típicos de
regiões/épocas, como, exemplificativamente, em Santa
Catarina, nosso Estado, tem-se as tradicionais festas alemãs
de outubro. Nunca vi, por exemplo, ninguém se insurgir contra
a Oktoberfest, a Marejada ou a Festa do Marreco, que reúnem,
anualmente, milhares de pessoas, com grande consumo de bebidas alcoólicas
(chopp e cerveja), envolvendo, também, o chamado “sexo
livre”, tal qual a farra de Momo.
Em essência, o carnaval é uma das festas mais antigas
do planeta, estando presente em quase todos os povos, atraindo pessoas
das mais diferentes classes sociais e faixas etárias, como
que numa espécie de ritual, verdadeira encenação
ou representação teatral de nós mesmos (ou sobre
nós mesmos). Diz-se que o folião “perde o juízo”,
porque, não raro, dificilmente, pelos efeitos do álcool
e dos alucinógenos e, em face da turbulência (ou anestesia)
mental derivada do som em alto volume e das luzes em excesso, alguém
se lembra (com exatidão) do que (e com quem) fez.
Gregos e sumérios, em tempos imemoriais, celebravam a vida
por meio do carnaval, pela chegada da primavera e do tempo das boas
colheitas, ao mesmo tempo agradecendo e pedindo (aos deuses) o tempo
de fartura ou abundância, renovação e fertilidade.
Na festa, um traço comum, destacado pelos diversos historiadores,
é o uso de máscaras, a inversão de posições
e a isonomia total (aparente), uma espécie de concretização
dos ideais (utópicos, para nossos padrões sociais) de
fraternidade, liberdade e, é claro, igualdade, a exteriorização
dos desejos mais íntimos, as fantasias expressas no ato de
fantasiar-se ou travestir-se.
O “vale-tudo” das festas primitivas (no vestir-se, portar-se,
as brincadeiras, as músicas, as danças), em face da
expressão exterior dos precitados ideais funcionava intimamente
como um desabafo, uma desforra, quase uma vingança (sem violência).
Estudiosos da psicanálise apontam que, até hoje, a finalidade
precípua do envolvimento das pessoas com o evento seria a de
descarregar uma quantidade de energias capazes de aliviar o ser ou
“lavar-lhe” a alma. Uma “purificação”,
então, em que chegam à tona aqueles sentimentos antes
represados, uma catarse.
Há quem compare tal desafogo com a vibração de
uma torcida inteira, num estádio lotado, comemorando o gol
de seu time, emoção que somente quem presenciou ou sentiu
pode descrever. Frações de segundo extasiantes, em que
o tempo parece parar para contemplar a emoção...
Veja-se, portanto, que, em aspectos emocionais, o carnaval poderia
ser, realmente, uma excelente oportunidade para a troca de energias
do ser, respeitados, é claro, os limites das contingências
físicas do corpo humano, na busca do prazer sem excessos. Sem
prescrever, contudo, bulas de orientação moral, o ideal
seria “passar” pelo carnaval sem que as seqüelas
possíveis e decorrentes dos abusos atingissem a individualidade
espiritual. Algo como pensar que a ausência das regras usuais
do cotidiano, em face dos festejos, não importasse na abolição
de “todas” as “regras”, sobretudo aquelas
que nos vinculam às demais pessoas, o respeito ao semelhante
e a nós mesmos (nosso corpo e nossa alma).
Economicamente, também e ainda, o carnaval movimenta milhares
de recursos, representando o ganha-pão de pessoas e suas famílias,
ligados direta ou indiretamente à indústria daquele
espetáculo, circunstância que não pode ser desprezada
em qualquer diagnose, mormente em função de nossa realidade
– a de um país com instabilidade econômica e em
face da necessidade constante de promoção da inclusão
social pelo trabalho e renda.
O ponto vulnerável, em termos de uma análise espiritual
da festa, é o da sexualidade, já que, em sede de liberação
dos “desejos e instintos mais primitivos”, a tônica
do hoje, como acentuam os especialistas na psique humana, a animalidade
do ser espiritual se acentua e desemboca em experiências de
relações sexuais com vários parceiros (promiscuidade),
com expressão homo ou heterossexual (ou, até, ambos),
e, não raro, importando na infidelidade (traição)
conjugal, desconhecida ou tolerada pelo(s) cônjuge(s). Neste
diapasão, mesmo enaltecendo, em todos os casos, o caráter
de livre-escolha dos espíritos, e a decorrente responsabilidade
destes em face dos seus procedimentos (ações), direito,
pois, inafastável da individualidade espiritual, não
é inoportuno nem moralista dizer que “cada um colherá
os frutos da semeadura que fizer”. Nossas relações
afetivas e sexuais devem ser objeto de profunda e constante reflexão,
pois, do contrário, estaríamos retrocedendo para ficar
sob os efeitos da mera animalidade, onde a fase do cio e da exacerbação
dos instintos seria decorrência e comportamento “natural”.
Já deveríamos ter deixado para trás a época
das inconseqüências, das loucuras e dos excessos. Há,
sem dúvida alguma, consórcios psíquicos entre
encarnados e desencarnados e, neste capítulo, é notória
a vampirização de energias para a satisfação
dos prazeres momentâneos. O divertimento precisa ser direcionado
para a elevação do ser, e não para o seu rebaixamento,
com indiscutíveis e penosos reflexos para o presente e o futuro.
A espiritualidade, é claro, pode ser alcançada nas dimensões
das vivências da vida física, mas, sob nenhum pretexto,
deve estar associada ao desrespeito por si mesmo e pelo(s) outro(s).
Pensemos nisso e escolhamos o melhor, e que ele seja a diversão
sadia e responsável!
(*)
Marcelo Henrique Pereira, Mestre em Ciência Jurídica,
Presidente da Associação de Divulgadores do Espiritismo
de Santa Catarina e Delegado da Confederação Espírita
Pan-Americana para a Grande Florianópolis (SC)
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