O chamado
“Pacto Áureo” é mais que um documento
formal, assinado em 1949, por (quase) todos os representantes
de entidades estaduais espíritas, denominadas em sua
maioria federações ou uniões espíritas.
Para além do “compromisso documental”, uma
série de elementos psíquicos e de convicção
corrobora o gesto material. E é sobre isto este artigo.
Antes de mais nada é necessária
uma volta no tempo. Uma contextualização se faz importante.
Era o crepúsculo do Século XIX, e já havia práticas
e instituições espíritas no Brasil, sobretudo
porque muitos filhos de famílias nobres estavam estudando na
Europa, sobretudo em França, onde passaram a conhecer o Espiritismo
nascente.
Mas, eram tempos negros. O Código
Penal de 1890, havia criminalizado diversas práticas, tidas
como “curandeirismo”, associadas a grupos espiritualistas
e para-religiosos, entre os quais estava o Espiritismo. A Federação
Espírita Brasileira (FEB), fundada em 1894, então, passou
a atuar no campo jurídico para a defesa de seus integrantes
e as medidas perpetradas impactaram, favorecendo instituições
congêneres, ligadas à Doutrina dos Espíritos.
A opção por assumir-se como uma agremiação
religiosa, também propiciou que ela se tornasse um porto seguro
para as demais casas espíritas, começando assim a delinear
a sua representatividade nacional.
Logo em seguida, 1891, foi promulgada
uma nova Carta Magna, que permitiu a liberdade religiosa. Assim, a
FEB com seus advogados explorou e foi se consolidando no formato de
instituição religiosa, escapando da criminalização
das práticas espíritas – já que o diploma
penal nacional continuava plenamente em vigor – e, assim, obteve
sua legitimação perante a Lei.
A entidade seguia agilmente e se valeu
desse advento (identidade religiosa), para caracterizar-se socialmente
como “mais uma opção cristã”, no
que facilitou a predominância dos espíritas religiosos
sobre os científicos. Utilizando o argumento de ser uma derivação
do Cristianismo, foi traçando, pouco a pouco, uma linha simétrica
entre este e o Espiritismo, então ainda bem pequeno perante
o chamado universo religioso em nosso país. Vale ressaltar
que, desde sempre, ao ingressar no cenário das religiões
cristãs, a Doutrina dos Espíritos foi perseguida por
seus contestadores, em grande parte de outras agremiações
religiosas cristãs, como o catolicismo e o protestantismo,
até obter o reconhecimento social pelo convencimento derivado
das práticas assistencialistas e, é claro, pela expansão
do pensamento dito espírita a partir do sucesso das obras psicografadas
por Francisco Cândido Xavier. Isto, é claro, décadas
à frente, ou seja, a partir dos anos 1930-1940.
Mas a mencionada transição
(leia-se, assunção do formato religioso) acirrou ainda
mais os ânimos dos espíritas científicos, que
saíram da FEB e fundaram outra instituição de
caráter federativo: a União Espírita de Propaganda
no Brasil (UEPB) sob a liderança de Angeli Torterolli, em 1894.
A reação dos espíritas religiosos foi imediata,
tanto que reconduziram Bezerra de Menezes à presidência
da FEB e lançaram mão de vários artigos no órgão
divulgador oficial, o “Reformador”, visando estabelecer
claras diferenças em relação ao citado novel
movimento, como exemplifica o artigo “Nossa Missão”.
Em seu retorno, Bezerra de Menezes
participa ativamente dos estudos sobre Roustaing com Antônio
Luiz Sayão (fundador do Grupo dos Humildes, depois Grupo Ismael),
aproximando-se definitivamente do segmento religioso e assim combatendo
abertamente os científicos. A UEPB utilizava-se abertamente
da propaganda para divulgação, como apresentações
musicais e teatrais, a prática de benemerência apoiada
em outras instituições como uma opção
ao modelo febiano, objetivando uma demonstração de força.
Incomodada, a FEB centrou esforços para combater com veemência
e indignação os métodos da UEPB, como num artigo
de 1896 no “Reformador” denominado “A Verdadeira
Propaganda”, que utilizou de elementos sacralizados no Espiritismo
para dar sustentação a um argumento de autoridade, ao
qual seguiu-se outro contundente texto, denominado “Clama, Não
Cesses”.
Assim, aumentava a radicalização
entre os grupos, com a FEB expondo o caráter de revelação
do Espiritismo, pois cientificamente não eram aceitos os argumentos,
mas religiosamente sim. A Federativa, assim, continuou apontando aquilo
que denominava de inconsistências, incoerências e posturas
dos dirigentes da UEPB, acusando-os abertamente de realizarem um falso
Espiritismo.
Tais posições foram
fortalecidas justamente com o retorno de Bezerra ao seio da FEB –
e com plenos poderes – em iniciativas como a sua transformação
em uma instituição modelar, para disciplinar as atividades
dos centros espíritas, assim como unificando as práticas
espiritistas por meio da orientação doutrinária,
principalmente por produção literária e jornalística.
A indução pelo exemplo foi, então, aprofundando
ainda mais a influência religiosa pela adoção
de estudos e orientações advindas do grupo de Sayão
e patrocinando os grupos de análise e estudo de “Os Quatro
Evangelhos”, em um espaço idêntico ao destinado
às atividades correlacionadas a “O livro dos Espíritos”.
Tais medidas e o insucesso de Torterolli em manter a UEPB acabaram
por calar de maneira definitiva os científicos, retornando
os restantes ainda existentes ao seio da FEB.
A entidade, assim, passou a centrar
seus esforços na publicação de romances ou obras
mediúnicas de caráter eminentemente religioso. Em paralelo,
Bittencourt Sampaio e Sayão, com defesas apaixonadas nas páginas
de Reformador, qualificando especialmente o aspecto missionário,
bem como utilizando as obras fundamentais e os apontamentos baseados
em Roustaing, equiparando e colocando no mesmo patamar como argumento
de autoridade, apoiada abertamente por Bezerra de Menezes, além
de utilizar-se, também de sua própria produção
literária (onde adotava, costumeiramente, o pseudônimo
de Max) e outros de caráter mediúnico. Estava aí
consolidada a solidificação do Espiritismo religioso
e cristão.
Merece destaque, neste contexto, a
produção mediúnica de Frederico Jr. (egresso
do Grupo Sayão) que recebia mensagens de Ismael e, também,
outras, atribuídas a Kardec (as quais devem ser analisadas
– mas nunca o foram – com base no crivo de identidade
e autenticidade, além dos afetos à concordância
com os chamados princípios espíritas) e outros, onde
se ressalta vasta produção mediúnica e autoral
(escritores encarnados), com a apropriação de alguns
elementos ditos científicos, propositadamente fundidos a conteúdos
doutrinários kardecianos, mas, ambos submetidos aos pressupostos
roustainguistas. Estava pavimentada a estrada de validação
do romance espírita como gênero preferido e com o inescapável
argumento de autoridade.
Pouco a pouco, ia a FEB traçando
o projeto de unidade doutrinária, passando a modelar o Espiritismo
no Brasil conforme seus pressupostos ideológicos, inclusive
lançando as bases de um cânone literário dito
espírita, com a “marca” do Espiritismo brasileiro:
febiano, eminentemente religioso e terapêutico, alicerçado
sobre a conduta do espírita e alinhavado sob o mantra “reforma
íntima”, ainda que a aparência fosse muito mais
relevante do que a essência. Como referência e base “doutrinária”,
a produção literária mediúnica passa a
ter um papel central na criação de princípios
doutrinários, até tornar-se a fonte principal de verdades
espirituais, substituindo, por isso, o conteúdo originário
das obras publicadas por Rivail-Kardec.
Mas a produção literária
dos primeiros anos teve solução de continuidade, com
um destacado hiato na produção de obras mediúnicas
pela federativa. Eis o porquê de, apesar de rejeitar, de início,
os escritos que vieram a compor o “Parnaso de Além-Túmulo”
(1932), genial vernissage de poetas e literatos do “além”,
resolveram publicar os escritos do franzino Francisco Cândido
Xavier, que já produzia com velocidade e frequência impressionantes.
É neste ponto que a FEB vislumbrou a oportunidade de firmar-se
ainda mais no cenário espírita no Brasil, porque a postura
humilde, a fala mansa e a subserviência completa do médium
mineiro – não só ao seu “guia”, o
Padre Manoel da Nóbrega, mas, também, aos dirigentes
da federativa, que “revisavam” seus livros – eram
os ingredientes oportunos para a consolidação de uma
literatura espírita genuinamente tupiniquim.
Passa-se, então, oficialmente,
a apostar na sua capacidade de produção literária
de Chico e, em paralelo, a consolidação de argumentos
de defesa acerca tanto da seriedade do médium – que doava
integralmente os direitos autorais de seus livros para inúmeras
instituições, muitas delas com destacada atuação
assistencialista – quanto de sua (reconhecida) capacidade mediúnica,
estudada, inclusive, por especialistas na paranormalidade, do Brasil
e do exterior.
Além dos livros, diversas páginas
esparsas, assinadas por diferentes personalidades desencarnadas, passaram
a ser repetidamente estampadas nas páginas de “Reformador”
– e, em muitos casos, mais de uma na mesma edição.
Mas, faltava algo…
Era preciso garantir o convencimento
dos espíritas e atrair os simpatizantes de outras religiões,
com a delimitação de um estado anímico posterior
e consequente à morte, bem próximo das crenças
religiosas conhecidas, mas com uma pitada de originalidade e ineditismo.
Foi aí que surgiu a obra “Nosso Lar” (1944), rapidamente
um estrondoso sucesso de vendas, por apresentar uma cidade no além
em que as teorias espíritas – aparentemente, claro –
estavam materializadas na organização, constituição,
divisão de tarefas e na permanência provisória
dos Espíritos, num lugar circunscrito – e feliz! –
para preparam-se, todos, para o retorno à carne.
Eis a obra que retoma o modelo utilizado
como argumento de autoridade, de acordo com a matriz febiana.
Vale salientar que neste período
– décadas de 30 e 40 – o cenário do movimento
espirita brasileiro carecia, ainda, de um maior adensamento institucional
(maturidade) e uma melhor formatação para o ensino e
prática espíritas, considerada a ambiência em
que coexistiam vários tipos de Espiritismo. Era preciso, então,
“uniformizar” ou “padronizar” ensinamentos
teóricos e práticas, conforme iniciativas das federativas
dos Estados do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e São Paulo,
principalmente.
Neste fervor, a recém-criada
União das Sociedades Espíritas do Estado de São
Paulo (USE) vem a promover o seu I Congresso Espírita (1947),
mas sem a presença oficial da FEB. Não se sabe se a
organização de São Paulo feriu alguns sentimentos
pessoais dos dirigentes nacionais ou, mesmo, a ideia da hegemonia
febiana na promoção de eventos deste patamar.
No mesmo período, ocorreu em
Buenos Aires, Argentina, o I Congresso Espírita Pan-Americano
(1946), com representantes da Argentina, Brasil, Chile, Cuba, Equador,
Estados Unidos, Honduras, México, Porto Rico e Uruguai, para
defender uma doutrina calcada na filosofia moral de Jesus, mas sem
caráter religioso, promovendo a difusão de um espiritismo
humanista, laico, livre-pensador, progressista e universalista, o
que contrariava frontalmente o Espiritismo-religião patrocinado
pela FEB. Não é demais dizer que o referido congresso
resultou na criação da Confederação Espírita
Pan-Americana (CEPA).
Em 1948, ocorre o II Congresso Espírita,
onde a FEB teria sido instada a ser a organizadora do evento, mas
declinou do convite alegando que não seria o momento. Como
evidenciaram as resoluções finais do congresso, no mesmo
foram propostas: a unificação espírita nos estados;
a unificação espírita no país; e, o estudo
de problemas doutrinários de natureza fundamental e urgente.
Explicitamente se sugere a criação de um órgão
central, uma espécie de conselho federativo em âmbito
nacional e sugere-se a conformação institucional confederativa.
Ou seja, propugna-se a Confederação Espírita
Brasileira que, na prática, esvaziaria completamente o poder
da FEB.
Tais fatos, associados à proposta
laica encabeçada pela CEPA resultaram no contra-ataque febiano.
Em 1949, havia a Liga Espírita do Brasil, que promoveu o II
Congresso Espírita Pan Americano, no Rio de Janeiro. Wantuil
de Freitas, representante da FEB, dá a conhecer um documento
elaborado pela entidade, que propunha uma diretriz para a unificação
do movimento espírita, uma espécie de “acordo
de cavalheiros”. Era o “Pacto Áureo”, composto
por dezoito pontos, que parecia consolidar a tão sonhada unificação
dos espíritas. Parecia…
Na prática, porém, isto
causaria uma imensidão de polêmicas e atritos, entre
os espíritas. A principal delas, a recomendação
para os espiritistas, sobretudo os dirigentes e divulgadores, a principal,
seria a de colocar em prática a exposição contida
no livro “Brasil: Coração do Mundo, Pátria
do Evangelho” (1938), de maneira a acelerar a marcha evolutiva
do Espiritismo. O livro, psicografado por Chico Xavier e de autoria
espiritual atribuída ao escritor Humberto de Campos, compreende
a narração de supostos fatos históricos do Brasil
à luz do espiritismo e coloca o país como o grande promotor
do evangelho no mundo. Repete, assim, os ufanismos perpetrados em
diferentes épocas da Humanidade, quanto à “terra
prometida” ou o “povo de Deus”, começando,
claro, pelos hebreus (judeus).
Pelo texto em tela, a tarefa seria
de competência dos espíritas, mas com a proeminência
e a coordenação da FEB, seus integrantes e divulgadores
escolhidos, sejam médiuns ou palestrantes: os “eleitos”
da “Casa Máter”. A narrativa, em tom teatral, enaltece
e consagra a FEB e seus dirigentes e responde aos anseios dos roustainguistas,
que pleiteavam um “lugar de destaque” na História
do Espiritismo – já que o Mestre Kardec, apesar de trata-lo,
em correspondências, com todo respeito e atenção,
afirmou que a obra, ditada por UM Espírito a UM único
médium, possuía elementos personalísticos que
em nada aderiam à sistemática do trabalho da Doutrina
dos Espíritos, centrada, sabemos nós, na universalidade
dos ensinos DOS Espíritos e no exame lógico-racional
de toda e qualquer mensagem. Na fala de Erasto, que é a bússola
de todo e qualquer trabalho mediúnico, “é preferível
rejeitar dez verdades do que aceitar uma só mentira”.
Roustaing, para a FEB (leia-se Humberto
de Campos, depois Irmão X) é Roustaing incluso, como
um alienígena, nessa versão particular e transversa
da história, tida “como espírita”, na “plêiade
de auxiliares” de Kardec na missão de levar o Evangelho
ao mundo. E, pasmem, isto jamais foi contestado, sendo acatado tácita
e solenemente por todos os signatários presentes.
Herculano Pires, Deolindo Amorim,
Júlio de Abreu Filho colocaram-se frontalmente contrários
ao malfadado Pacto Áureo, pelo mesmo ter sido engendrado na
“calada da noite”, sem discussão ou maturação,
de forma tão profundamente incoerente com o ensino dos Espíritos
e ao pensamento kardeciano. Tanto que o grande professor, o maior
filósofo espírita brasileiro, podendo estar ao lado
do maior da história, León Denis, ter chamado o documento
de bula papal.
O principal resultado do Pacto Áureo
foi, sabem os que estudam o movimento espírita brasileiro,
a criação do Conselho Federativo Nacional (CFN), órgão
que reúne as vinte e sete federativas do país (26 Estados
e o Distrito Federal), que não é presidido por um de
seus pares, mas pelo próprio presidente da FEB. Na prática,
é um órgão inoperante, de homologação
das diretrizes, ações e projetos criados e coordenados
pela Diretoria Executiva da própria FEB, ainda que, na constituição
de comissões e órgãos doutrinário-administrativos,
figurem representantes de comissões regionais (quatro, em todo
o país) e das próprias federações. Com
isso, a história demonstra, em realidade, que o movimento espírita
é marcado pela dominância clerical de uma instituição
que tem figuração idêntica a qualquer centro espírita
(formado por associados civis, em reduzido número), que escolhem
o seu presidente e este, assim como os demais membros da executiva
febiana, controlam totalmente o desempenho das atividades espíritas
e expedem diretrizes que são repassadas ao conjunto de instituições
que se vincula às federativas, sem qualquer possibilidade de
discussão democrática.
Neste particular, a FEB honra com
sua trajetória religiosa e assume a feição de
entidade responsável pela “evangelização”
dos espíritas. Evangelizar, aliás, é atividade
criada pela Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR)
para manter coeso e unido o seu rebanho de fiéis. Curioso é
que, em toda a produção de Allan Kardec (32 obras) o
verbete escolhido, para o aperfeiçoamento (progresso) individual
e coletivo seja Educação. E, jamais, Evangelização.