A necessária descriminalização
da prática terapêutica espírita
Houve épocas em que os fenômenos
mediúnicos de efeitos físicos ocorriam em profusão.
Desde os raps (batidas), passando pelas mesas girantes e dançantes,
até a definição de métodos e meios de
comunicação mais efetiva, o intercâmbio entre
os mundos espiritual e físico se tornou possível graças
à aplicação da inteligência humana à
fenomenologia, com inegáveis avanços. Se ainda existem
ocorrências como o deslocamento de objetos, o abrir e fechar
de portas e janelas e os ruídos, isso se dá em função
da falta de educação e disciplina mediúnica,
dada a espontaneidade da manifestação nos primeiros
momentos – e que pode persistir por mais ou menos tempo, caso
o envolvido não procure o atendimento e o acompanhamento espiritual
adequado. A sensibilidade mediúnica, assim, atrai os Espíritos
que nos rodeiam e que desejam se fazer notados ou transmitir mensagens
(“recados”) aos encarnados.
No campo dos fenômenos espirituais de efeitos físicos
mais evidentes de nosso tempo, destacam-se a psicopictografia (pintura
mediúnica), a materialização e as cirurgias ou
intervenções de cura mediúnica. Neste artigo,
nos ocuparemos dos últimos, sob os prismas espiritual e jurídico.
Vale dizer, preliminarmente, que desde tempos imemoriais as curas
de natureza religiosa ou mediúnica configuram uma prática
comum em todas as culturas e povos. A mais comum é a que decorre
de orações ou pontos – declamados ou cantados
– por meio das chamadas benzedeiras. O que diferencia o procedimento
adotado, separando medicina de curandeirismo é a cientificidade
do método, já que o caráter científico
resulta do conjunto das regras, das práticas e dos resultados,
uma espécie de “gramática da ciência”.
Curandeirismo, aliás, é palavra que deriva do latim
(curare + eiro) e simboliza a prática de atividade curativa
por quem não possui título ou habilitação
para a medicina.
A mediunidade de cura, contemplada em “O Livro dos Médiuns”,
caps. XIV e XVI, itens 174 e 189, simboliza a ação espiritual
sobre o organismo enfermo, minimizando os efeitos da patologia e proporcionando
alívio, melhora e, até, cura. Diz o texto básico:
“[...] os que têm
o poder de curar ou de aliviar o doente, pela só imposição
das mãos, ou pela prece”.
De modo tradicional, a equação
do tratamento espiritual conjuga três fatores:
1) ação terapêutica (qualificação
do atendimento, por meio dos dons do médium e os “poderes”
do Espírito desencarnado que o auxilia);
2) necessidade da melhora (importando no compromisso pessoal do enfermo
na reformulação futura de suas condutas – o “vá
e não peques mais”, de Jesus); e
3) mérito do paciente (no sentido da compensação
da prova ou da expiação, em função do
desempenho atual do doente, nas diversas situações da
vida).
Não há, pois, “milagre”, “dádiva”
ou “benesse” divina, de modo descompromissado, gratuito
ou fortuito. Se a doença não é uma “desgraça”,
a cura também não pode ser encarada como “graça”.
Ambas são, isso sim, oportunidades, constituindo-se em duas
faces de uma mesma moeda. Se, voluntária e meritoriamente adquirimos
anomalias e doenças, do mesmo modo dela nos livraremos, cedo
ou tarde, no mecanismo perfeito de equalização da Justiça
Divina.
Ainda assim, é necessário, de antemão, diferenciar
acerca dos “tipos” de doenças ou enfermidades existentes
no ser humano: doenças físicas (materializadas no corpo
material); doenças psicológicas (em que aparentemente
os sintomas indicam uma enfermidade que não existe no corpo)
e doenças psicossomáticas (desenvolvidas mentalmente
pelo indivíduo, que acredita ter a enfermidade, até
que ela, finalmente, se manifesta, em resultados, nos órgãos
físicos). Todas elas podem ser “tratadas” em instituições
espíritas sérias e especializadas, com foco no Espírito,
no perispírito (corpo intermediário) e, com a assessoria
de médicos, no corpo material.
Há duas modalidades básicas de cura mediúnica:
a) por processos invisíveis, sem sinais aparentes; e,
b) por intervenções físicas, como cortes e perfurações.
São ambos, comumente, denominados “cirurgias espirituais”,
apesar desse nome ser mais adequado para o segundo grupo. As que pertencem
ao primeiro grupo podem ser realizadas à distância (quando
o paciente se encontra, por exemplo, em sua própria residência,
e toma alguns cuidados básicos como o recolhimento, a ingestão
de água e a sintonia espiritual – comumente por meio
da prece), ou em locais específicos (centros espíritas,
nos quais a equipe espiritual utiliza-se do grupo de médiuns
presentes ao recinto).
Alguns especialistas na matéria preferem diferenciar o atendimento
espiritual em quatro grupos:
i) Operações e aplicações de recursos
do magnetismo curador (intercâmbio entre médium e Espírito)
no perispírito do indivíduo enfermo, com reflexos patentes,
imediatos ou não, nos órgãos doentios do corpo
físico;
ii) Operações no corpo espiritual do paciente pela aplicação
de recursos energéticos curadores sutis, incorporando, no médium,
o Espírito de um médico;
iii) Operações com o uso de instrumentos cirúrgicos
em órgãos doentes do corpo material; e,
iv) Operações realizadas por Espírito materializado,
por meio de médium em transe que fornece ectoplasma.
Em geral, as cirurgias (intervenções) mediúnicas
(espirituais) não resultam em dores físicas para os
pacientes, mesmo sem o uso de anestésicos ou analgésicos.
Pessoas que se submeteram às mesmas declaram não sentir
qualquer dor ou mal-estar, mesmo com os cortes e perfurações.
Há quem diga que há, nestes casos, o uso de técnicas
de hipnose aplicadas ao enfermo. Em muitas situações,
os resultados são surpreendentes, com o recrudescimento parcial
ou total das enfermidades, para o espanto dos médicos. É
comum, também, que as instituições e os médiuns
que prescrevem referido atendimento, recomendarem que os medicamentos
e os tratamentos “materiais” (prescritos por profissionais
do ramo clínico) não sejam suspensos, concomitantemente
aos procedimentos espirituais (somente o médico pode decidir
a este respeito).
Um traço diferencial em relação ao que é
e o que não é “espiritismo”, no tocante
ao atendimento espiritual se acha relacionado à cobrança
dos “serviços”. Uma instituição que
se paute pela orientação kardequiana NUNCA deverá
cobrar pelo atendimento, seja de forma direta (valor dos procedimentos),
quanto indireta (indenizações pelo uso das instalações,
pelo material “cirúrgico” – álcool,
curativos ou similares). A máxima “daí de graça
o que de graça receberdes” é o fundamento filosófico
da assistência espiritual em todos os casos.
Também, como dito acima, a “especialidade” das
instituições espíritas é o atendimento
ESPIRITUAL, com foco no Espírito e no perispírito. Somente
poderá ocorrer qualquer atendimento “material”,
com a prescrição de terapias, atendimento, remédios
e similares, com a presença e o acompanhamento de um profissional
do ramo clínico, por exigência da legislação
específica sobre a matéria.
Igualmente, toda intervenção física prescinde
de determinados cuidados e requisitos. Lamentavelmente, a pretexto
de invocar a intervenção de Espíritos “curadores”,
muitas pessoas se submetem a tratamentos pouco convencionais, que
provocam sérios riscos à saúde daqueles que experimentam
os procedimentos realizados por médiuns “pseudo-médicos”.
Tais riscos decorrem do primitivismo das técnicas empregadas
e do não-acompanhamento adequado das complicações
pós-cirúrgicas. Chamadas, erroneamente, de cirurgias
psíquicas, não são assim de fato, pelo uso, em
diversificados casos, de instrumentos materiais.
Há, infelizmente, um mundo “paralelo” a isso, plasmado
com a colaboração da crendice e da superstição,
em que a difusão de “curas milagrosas” cultiva
a procura por centenas e, até, milhares de pessoas. São
os curandeiros que se predispõem a atender às inúmeras
necessidades e problemas humanos, desde a incontinência urinária
até o câncer, a apendicite até a AIDS. Muitos
exploram a ingenuidade e o desespero das pessoas, não raro
se beneficiando financeiramente, com favores monetários e donativos
ou “presentes”.
Referidos curandeiros atuam à margem da lei e, mesmo a pretexto
de “curarem” ou “minorarem” as dores do próximo,
por sua conduta enganosa e pela exploração da “fé
pública”, configuram o chamado exercício ilegal
da medicina. A matéria é regulada pelo Código
Penal Brasileiro (art. 284), que prescreve: “Exercer o curandeirismo:
I - prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer
substância; II - usando gestos, palavras ou qualquer outro meio;
III - fazendo diagnósticos.” A pena é a de detenção,
de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos e, no caso de recebimento de valores,
multa. Em paralelo, há o charlatanismo, outro tipo penal relacionado
à promessa de cura, por meio secreto ou infalível, no
caso os “dons” que a pessoa diz possuir (art. 283, do
Código Penal). A pena, para tal crime, é a de detenção,
de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. [1]
Igualmente, a profissão médica no Brasil acha-se regulada
pelo Decreto Executivo Federal n. 20.931, de 1932, que condiciona
a prática à habilitação (diploma) segundo
as leis federais e ao registro profissional (Conselho Regional), protegendo-se
a população (saúde pública).
[2]
Vale lembrar que, SEMPRE, o responsável será o ser encarnado,
que tenha ministrado o tratamento, a terapia ou prometido a cura,
mesmo estando mediunizado. Não há como apenar quem esteja
“morto”, ou seja, o Espírito que incorpore ou sugestione
o encarnado, pois este não pertence juridicamente ao “mundo
dos vivos”. A responsabilidade jurídica (penal e civil,
em termos de indenização) é sempre do médium
e, em muitos casos, também, dos dirigentes da instituição
que concordem, promovam ou tolerem a prática.
Deste modo, toda instituição que se dispuser a ministrar
atendimento “clínico”, do ponto de vista material
– em complemento ao espiritual – como ministrar homeopatia
ou receitar qualquer tipo de remédio, acha-se sujeita à
presença OBRIGATÓRIA de um médico, sob pena de
ser enquadrada no dispositivo acima. As “curas mediúnicas”,
assim, só podem estar relacionadas aos aspectos espirituais,
atuando no foco principal (o doente e suas predisposições,
condutas e comportamento). Toda vez que o atendimento e a assistência
espiritual e espírita tiver como objeto a doença física
e o corpo físico, recomenda-se que haja um médico especialista
acompanhando o processo, para evitar problemas de natureza processual,
movidos seja pelos envolvidos diretamente seja por terceiros, já
que a denúncia da prática do “curandeirismo”
pode ser feita por qualquer pessoa.
Há algumas instituições espíritas, ainda,
que se consideram como “religiosas”, crendo que esta denominação
ou referência seja franqueadora para a ocorrência de assistência
ou atendimento em termos de cura. Ledo engano. A proteção
constitucional às igrejas e formas de culto não se estende
a situações que se enquadrem como objeto de trabalho
e atuação de determinados profissionais, com as qualificações
exigidas em nosso Estado de Direito, como é o caso de médicos,
psicólogos, psiquiatras e terapeutas. Albergados ou não
em instituições espíritas, as pessoas que, mesmo
gratuitamente, se disponibilizarem a atender o semelhante, devem possuir
diplomas e registros específicos, sob pena de serem enquadrados
no exercício irregular de dadas profissões.
Aos médiuns que possuam tal especialidade, recomenda-se, sempre,
o estudo da Doutrina Espírita, para conhecimento de toda a
fenomenologia e o intercâmbio energético, recorrendo
à filosofia espiritista para haurir os fundamentos éticos
do atendimento ao semelhante. E, em complemento, que possa ter acesso
a informações técnicas relacionadas ao corpo
humano, à saúde e as terapias clínicas, desde
que não seja, ele, um profissional médico.
Em termos de organização espírita, devemos reiterar
que o médium deve EVITAR o contato com o paciente, pois o fenômeno
curativo espiritual independe do toque. Vale dizer que algumas enfermidades
podem estar associadas à obsessão, por meio da associação
(vinculação energética) entre o encarnado (paciente)
e outro(s) Espírito(s) – desencarnado(s) ou não.
De outra sorte, a prática da fluidoterapia – comumente
através dos passes, nas instituições espíritas
– não guarda qualquer correlação com o
curandeirismo, de vez que a atividade não se encontra regulamentada
e não pertence a qualquer especialidade clínica, habilitação
ou profissão regulamentada.
Por fim, entendamos que a geratriz de todo e qualquer estado psicossomático
é o Espírito, a individualidade. Em outras palavras,
somos nós mesmos a causa e o efeito, o princípio e o
fim de nossa vida. O Espírito (corpo espiritual ou psicossoma),
assim, chamado de modelo organizador biológico, é quem
canaliza para o campo físico a energia espiritual responsável
pelos estados de saúde e equilíbrio e doença
e desarmonia. Como, em muitos casos, a medicina terrena ainda se detém
no exame do soma (corpo físico), os médiuns e os Espíritos
que atendem nas instituições espíritas acessam
ao banco de dados contido nos centros de força do nosso perispírito,
podendo intervir, decisiva e produtivamente, nos chamados “tecidos
sutis da alma”. Destarte, no estágio espiritual em que
nos encontramos, necessário nos é conciliar o atendimento
clínico físico com o espiritual, para melhores e duradouros
resultados.
Notas do Autor:
[1] Antes da atual disciplina legal (1942),
o Código Penal de 1890 capitulava como criminosas as práticas
espíritas, junto à magia e ao curandeirismo. A restrição
às atividades mágicas permaneceu até 1985.
[2] Vale lembrar que em 2005, o Superior Tribunal de Justiça,
em última instância, manteve a condenação
dada pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal de duas pessoas
(N. V. P. e A. F. O. R.), por exercício ilegal da arte farmacêutica
e curandeirismo, por meio da mediunidade, consistindo na manipulação
de fórmulas medicamentosas sem a devida habilitação
legal e na realização de orações e técnicas
esdrúxulas, prometendo curas prodigiosas com o objetivo