Volta e meia me pego folheando a Revista
Espírita, este inextinguível manancial
de conhecimento espírita-espiritual, o “laboratório”
das pesquisas de Kardec nos últimos tempos de seu trabalho
de Codificador e Comunicador espírita.
Minha última “descoberta” está no trecho
a seguir, contido no artigo “O livre pensamento
e a liberdade de consciência”, publicado
na edição de fevereiro de 1867:
“O livre pensamento, na sua
acepção mais ampla, significa: livre exame, liberdade
de consciência, fé raciocinada; ele simboliza a emancipação
intelectual, a independência moral, complemento da independência
física; ele não quer mais escravos do pensamento do
que escravos do corpo, porque o que caracteriza o livre pensador
é que ele pensa por si mesmo e não pelos outros, em
outras palavras, que sua opinião lhe pertence particularmente.
Pode, pois, haver livres pensadores em todas as opiniões
e em todas as crenças. Neste sentido, o livre pensamento
eleva a dignidade do homem; dele faz um ser ativo, inteligente,
em lugar de uma máquina de crer.”
É neste último destaque
que centro o meu “poder de fogo” neste ensaio: a premente
necessidade dos espíritas assumirem sua condição
de livre-pensadores, tornando-se mais dignos, ativos, inteligentes
e repelindo a condição pessoal de (apenas) serem “máquinas
de crer”.
As tais “máquinas” estão por aí,
aos montes... Mesmo admitindo, como a teoria espírita o faz,
baseada num ou noutro texto de Kardec e/ou dos Espíritos que
com ele partilharam os escritos da Filosofia Espírita, a expressão
“fé raciocinada” para designar o “tipo”
de fé ou crença de que partilhariam os espíritas,
expulsando, de pronto, os dogmas e a cegueira da fé pela fé,
da crença em fatos sobrenaturais ou “mistérios”,
é preciso ter uma enorme cautela para não confundir
“alhos com bugalhos”. Explico.
O mais comum é vermos gente (e bota gente nisso!) dizendo-se
“crente espírita”, batendo no peito para “assumir-se”
religioso, defendendo com unhas e dentes o aspecto (caráter)
religioso da Doutrina Espírita, não para defender o
seu direito de expressão de religiosidade (afinal, cada um
de nós, em maioria a tem e a manifesta de maneira muito peculiar,
nos mínimos atos e fatos da existência), mas para “reduzir”
a proposta espírita para o conteúdo daquilo que os espíritos
“superiores” teriam ditado a Allan Kardec. Sim, porque
para o espiritismo “tradicional”, o movimento majoritário,
nenhuma linha do que Kardec apresentou – de sua lavra ou contando
com a dicção dos desencarnados – está “desatualizado”,
“impróprio”, “indevido” ou carece de
modificação. Eis aí, fundamentalmente, o maior
DOGMA ESPÍRITA.
Dizem os “federados” espíritas que, caso –
repito caso, no sentido de “possibilidade distante” –
haja algo a ser “melhor definido” ou “complementado”,
os próprios Espíritos “superiores” tratarão
de encaminhar a resolução, já que a “obra”
não caberia aos “pobres mortais”, aos encarnados,
mas, tão-somente a um “missionário” do “calibre”
do próprio Kardec. E falam isso com uma assustadora naturalidade
que mais parece um desdém em relação ao papel
de cada uma das inteligências que, por afinidade e despertamento,
têm se aglutinado em torno da proposta espiritista, individualmente
ou mediante a participação em entidades associativas
de distintos matizes, todos adjetivadamente espíritas, como
a creditar única e exclusivamente aos desencarnados qualquer
papel na construção de um mundo melhor.
Curioso é que estes mesmos companheiros levantam-se a repetir
uma outra afirmação, agora de León Denis, considerado
o principal seguidor-continuador de Kardec na França da Doutrina
nascente, que afirma que “o Espiritismo será
o que os homens dele fizerem”, não no sentido
de desacreditar a atuação humana, de encarnados, perante
o Espiritismo, mas, verdadeiramente, como um chamado para a participação
efetiva destes no processo de consolidação das idéias
espíritas em nosso orbe.
Para esta consolidação, verdadeiramente, é preciso
despirmo-nos de preconceitos e idéias que foram semeadas e
plantadas no movimento, à feição de uma neo-seita
cristã e que é objeto específico da precitada
dissertação de Kardec (muito mais uma advertência
fraterna e carinhosa de Kardec a todos nós que militamos, hoje,
no Espiritismo): evitarmos nos transformarmos em “máquinas
de crer”, achando o conteúdo das obras fundamentais como
infalível, porque este, ao contrário do que se lhe atribuem
os espíritas desavisados, estaria submetido à maturidade
temporal, à evolutividade dos conceitos e à necessidade
de adequação de linguagem, contexto e proposta aos “novos
tempos”, que sucederiam os antigos, na marcha inexorável
da vida.
Eu, sinceramente, quero distância da crendice espírita.
Ela até pode ser útil às pessoas que, recém-ingressas,
ainda guardam uma série de condicionamentos e posturas que,
aos poucos, vão cedendo lugar à conscientização
de que o conteúdo, o interior sublima e suplanta o exterior
e as manifestações materiais da fé. O Centro
Espírita deve ser um lugar de produção espiritista,
de discussão, de debate, de revisão do próprio
pensamento espírita – o original, que tem a “marca”
do homem Rivail em tudo e por tudo, como o subseqüente, passando
pelos “clássicos”, os cientistas, os filósofos,
os médiuns, até chegar aos estudiosos de nosso tempo,
ou seja a produção espiritista do início do século
XX para cá. Tudo, repetimos, tudo está em cotejo, sob
avaliação e mediante investigação comparativa
e prospectiva. Nada escapa da análise, da perscrutação
objetiva, da crítica construtiva, num trabalho (até
hercúleo, mas) necessário dos espíritas deste
e dos tempos vindouros.
Precisamos, enfim, fazer a parte que nos cabe! Precisamos deixar “para
os outros” as tarefas que nos competem e, ainda assim, carecemos
de nos libertas das peias, das amarras, dos condicionamentos que alguns
“líderes” do passado e do presente provocaram em
nós: a aceitação de pseudo-verdades que eles
acalentaram, pela limitação que compete e é particular
a cada alma, a de conceber o mundo conforme seus olhos, e aceitar
tal como verdade absoluta, até o próximo passo em que
se descobre existir uma outra abordagem, um outro ponto de vista,
uma outra constatação, talvez – e, muitas vezes
– mais conforme, lógica e útil.
Espíritas, parem de serem meras máquinas de crer! Transformem-se,
como exorta o inesquecível Mestre Rivail, na roupagem de Kardec,
em individualidades dignas, ativas e inteligentes. O Espiritismo precisa
prosseguir e assumir seu papel de efetivo agente transformador de
consciências, para além das crenças... Ou, como
o próprio Codificador afiançou, com a autoridade que
possuía, não por títulos ou por posições
terrenas, mas pela execução direta do trabalho espírita:
O Espiritismo é uma ciência de raciocínio, não
de credulidade!
(*) Doutorando
em Direito
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27 de dezembro de 2008
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Algumas pessoas nos censuraram pelas explicações teóricas
que, desde o princípio, procuramos dar dos fenômenos
espíritas. Essas explicações, baseadas sobre
uma observação atenta, remontando dos efeitos à
causa, provavam, de uma parte, que queríamos nos dar conta
e não crer nelas cegamente; de outra, que queríamos
fazer do Espiritismo uma ciência de raciocínio
e não de credulidade.
Por essas explicações que o tempo desenvolveu, mas que
consagrou em princípio, porque nenhuma foi contraditada pela
experiência, os Espíritas
acreditaram porque compreenderam, e não
é duvidoso que é a isto que se deve atribuir o crescimento
rápido do número dos adeptos sérios. É
a essas explicações que o Espiritismo deve por ter saído
do domínio do maravilhoso e de estar ligado às ciências
positivas; por elas demonstrou aos incrédulos que isto não
é uma obra de imaginação; sem elas estaríamos
ainda para compreender os fenômenos que surgem a cada dia. Era
urgente colocar, desde o princípio, o Espiritismo sobre o seu
verdadeiro terreno. A teoria fundada
sobre a experiência foi o freio que impediu a credulidade supersticiosa,
tanto quanto a malevolência, de fazê-lo desviar de seu
caminho. Porque aqueles que nos censuram por termos tomado a iniciativa,
não a tomaram eles mesmos?
Allan Kardec in nota no artigo “O livre pensamento
e a liberdade de consciência”