Marcelo Henrique Pereira

>    Máquinas de Crer?

Artigos, teses e publicações

Marcelo Henrique Pereira
>    Máquinas de Crer?

 

 


Volta e meia me pego folheando a Revista Espírita, este inextinguível manancial de conhecimento espírita-espiritual, o “laboratório” das pesquisas de Kardec nos últimos tempos de seu trabalho de Codificador e Comunicador espírita.

Minha última “descoberta” está no trecho a seguir, contido no artigo “O livre pensamento e a liberdade de consciência”, publicado na edição de fevereiro de 1867:

“O livre pensamento, na sua acepção mais ampla, significa: livre exame, liberdade de consciência, fé raciocinada; ele simboliza a emancipação intelectual, a independência moral, complemento da independência física; ele não quer mais escravos do pensamento do que escravos do corpo, porque o que caracteriza o livre pensador é que ele pensa por si mesmo e não pelos outros, em outras palavras, que sua opinião lhe pertence particularmente. Pode, pois, haver livres pensadores em todas as opiniões e em todas as crenças. Neste sentido, o livre pensamento eleva a dignidade do homem; dele faz um ser ativo, inteligente, em lugar de uma máquina de crer.”

É neste último destaque que centro o meu “poder de fogo” neste ensaio: a premente necessidade dos espíritas assumirem sua condição de livre-pensadores, tornando-se mais dignos, ativos, inteligentes e repelindo a condição pessoal de (apenas) serem “máquinas de crer”.

As tais “máquinas” estão por aí, aos montes... Mesmo admitindo, como a teoria espírita o faz, baseada num ou noutro texto de Kardec e/ou dos Espíritos que com ele partilharam os escritos da Filosofia Espírita, a expressão “fé raciocinada” para designar o “tipo” de fé ou crença de que partilhariam os espíritas, expulsando, de pronto, os dogmas e a cegueira da fé pela fé, da crença em fatos sobrenaturais ou “mistérios”, é preciso ter uma enorme cautela para não confundir “alhos com bugalhos”. Explico.

O mais comum é vermos gente (e bota gente nisso!) dizendo-se “crente espírita”, batendo no peito para “assumir-se” religioso, defendendo com unhas e dentes o aspecto (caráter) religioso da Doutrina Espírita, não para defender o seu direito de expressão de religiosidade (afinal, cada um de nós, em maioria a tem e a manifesta de maneira muito peculiar, nos mínimos atos e fatos da existência), mas para “reduzir” a proposta espírita para o conteúdo daquilo que os espíritos “superiores” teriam ditado a Allan Kardec. Sim, porque para o espiritismo “tradicional”, o movimento majoritário, nenhuma linha do que Kardec apresentou – de sua lavra ou contando com a dicção dos desencarnados – está “desatualizado”, “impróprio”, “indevido” ou carece de modificação. Eis aí, fundamentalmente, o maior DOGMA ESPÍRITA.

Dizem os “federados” espíritas que, caso – repito caso, no sentido de “possibilidade distante” – haja algo a ser “melhor definido” ou “complementado”, os próprios Espíritos “superiores” tratarão de encaminhar a resolução, já que a “obra” não caberia aos “pobres mortais”, aos encarnados, mas, tão-somente a um “missionário” do “calibre” do próprio Kardec. E falam isso com uma assustadora naturalidade que mais parece um desdém em relação ao papel de cada uma das inteligências que, por afinidade e despertamento, têm se aglutinado em torno da proposta espiritista, individualmente ou mediante a participação em entidades associativas de distintos matizes, todos adjetivadamente espíritas, como a creditar única e exclusivamente aos desencarnados qualquer papel na construção de um mundo melhor.

Curioso é que estes mesmos companheiros levantam-se a repetir uma outra afirmação, agora de León Denis, considerado o principal seguidor-continuador de Kardec na França da Doutrina nascente, que afirma que “o Espiritismo será o que os homens dele fizerem”, não no sentido de desacreditar a atuação humana, de encarnados, perante o Espiritismo, mas, verdadeiramente, como um chamado para a participação efetiva destes no processo de consolidação das idéias espíritas em nosso orbe.

Para esta consolidação, verdadeiramente, é preciso despirmo-nos de preconceitos e idéias que foram semeadas e plantadas no movimento, à feição de uma neo-seita cristã e que é objeto específico da precitada dissertação de Kardec (muito mais uma advertência fraterna e carinhosa de Kardec a todos nós que militamos, hoje, no Espiritismo): evitarmos nos transformarmos em “máquinas de crer”, achando o conteúdo das obras fundamentais como infalível, porque este, ao contrário do que se lhe atribuem os espíritas desavisados, estaria submetido à maturidade temporal, à evolutividade dos conceitos e à necessidade de adequação de linguagem, contexto e proposta aos “novos tempos”, que sucederiam os antigos, na marcha inexorável da vida.

Eu, sinceramente, quero distância da crendice espírita. Ela até pode ser útil às pessoas que, recém-ingressas, ainda guardam uma série de condicionamentos e posturas que, aos poucos, vão cedendo lugar à conscientização de que o conteúdo, o interior sublima e suplanta o exterior e as manifestações materiais da fé. O Centro Espírita deve ser um lugar de produção espiritista, de discussão, de debate, de revisão do próprio pensamento espírita – o original, que tem a “marca” do homem Rivail em tudo e por tudo, como o subseqüente, passando pelos “clássicos”, os cientistas, os filósofos, os médiuns, até chegar aos estudiosos de nosso tempo, ou seja a produção espiritista do início do século XX para cá. Tudo, repetimos, tudo está em cotejo, sob avaliação e mediante investigação comparativa e prospectiva. Nada escapa da análise, da perscrutação objetiva, da crítica construtiva, num trabalho (até hercúleo, mas) necessário dos espíritas deste e dos tempos vindouros.

Precisamos, enfim, fazer a parte que nos cabe! Precisamos deixar “para os outros” as tarefas que nos competem e, ainda assim, carecemos de nos libertas das peias, das amarras, dos condicionamentos que alguns “líderes” do passado e do presente provocaram em nós: a aceitação de pseudo-verdades que eles acalentaram, pela limitação que compete e é particular a cada alma, a de conceber o mundo conforme seus olhos, e aceitar tal como verdade absoluta, até o próximo passo em que se descobre existir uma outra abordagem, um outro ponto de vista, uma outra constatação, talvez – e, muitas vezes – mais conforme, lógica e útil.

Espíritas, parem de serem meras máquinas de crer! Transformem-se, como exorta o inesquecível Mestre Rivail, na roupagem de Kardec, em individualidades dignas, ativas e inteligentes. O Espiritismo precisa prosseguir e assumir seu papel de efetivo agente transformador de consciências, para além das crenças... Ou, como o próprio Codificador afiançou, com a autoridade que possuía, não por títulos ou por posições terrenas, mas pela execução direta do trabalho espírita: O Espiritismo é uma ciência de raciocínio, não de credulidade!

(*) Doutorando em Direito

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27 de dezembro de 2008

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Algumas pessoas nos censuraram pelas explicações teóricas que, desde o princípio, procuramos dar dos fenômenos espíritas. Essas explicações, baseadas sobre uma observação atenta, remontando dos efeitos à causa, provavam, de uma parte, que queríamos nos dar conta e não crer nelas cegamente; de outra, que queríamos fazer do Espiritismo uma ciência de raciocínio e não de credulidade. Por essas explicações que o tempo desenvolveu, mas que consagrou em princípio, porque nenhuma foi contraditada pela experiência, os Espíritas acreditaram porque compreenderam, e não é duvidoso que é a isto que se deve atribuir o crescimento rápido do número dos adeptos sérios. É a essas explicações que o Espiritismo deve por ter saído do domínio do maravilhoso e de estar ligado às ciências positivas; por elas demonstrou aos incrédulos que isto não é uma obra de imaginação; sem elas estaríamos ainda para compreender os fenômenos que surgem a cada dia. Era urgente colocar, desde o princípio, o Espiritismo sobre o seu verdadeiro terreno. A teoria fundada sobre a experiência foi o freio que impediu a credulidade supersticiosa, tanto quanto a malevolência, de fazê-lo desviar de seu caminho. Porque aqueles que nos censuram por termos tomado a iniciativa, não a tomaram eles mesmos?

Allan Kardec in nota no artigo “O livre pensamento e a liberdade de consciência”

 



Fonte: http://aeradoespirito.sites.uol.com.br


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