Em sendo o Brasil majoritariamente
cristão, tudo o que foge deste padrão hegemônico
acaba sujeito a tais apedrejamentos. Os fundamentalismos batem
à nossa porta, direta ou indiretamente, no cotidiano,
sem que isso, muitas vezes, nos provoque espanto.
Em uma fictícia cidade, isolada e distante, chegou um homem
de outra cultura, com outros costumes, de paragens distantes. Se vestia
de forma diferente, tinha outros hábitos e outras crenças.
Resolveu se instalar na cidade a negócios e aos poucos aquela
presença incomodava os cidadãos.
O homem era cordial e amigo de todos,
mas, mesmo assim, passou a ser vigiado e alvo de desconfiança
e afastamento de muitos. No templo daquela cidade só se falava
nele… Mas ele não frequentava aquela casa, mas, estando
em sua residência alguns tinham visto fotos de algumas divindades
diferentes.
Um dia, no púlpito do templo,
um falante mais exaltado começou a dizer que os casos recentes
de catapora na cidade eram culpa daquele homem. Deveria ser um feiticeiro,
um bruxo, um demônio amaldiçoando a comunidade.
E assim, um dia, o muro de sua casa
apareceu pichado. Palavras rudes, desclassificantes, violentas. Adiante,
num ou noutro comércio, começaram a se recusar a vender
para ele. E houve situações em que, passando pela rua,
duas, três ou mais pessoas, de dedo em riste ou mãos
fechadas em forma de soco, lhe dirigiram impropérios. Até
que, em um dia fatídico, transitando do trabalho para casa,
ele começou a ser apedrejado.
Caído no chão, ensanguentado,
em um momento de alucinações pelos ferimentos, ele começou
a enxergar as pessoas que o apedrejavam se converterem em uma feição
grotesca, como demônios… À medida em que iam jogando
pedras, na sua visão, aquelas foram se convertendo, aos poucos,
exatamente no que diziam abominar.
Essa fábula de abertura ilustra
a incoerência da intolerância em matéria religiosa
que grassa em nosso planeta. Situação, aliás
que, no Brasil, não é apenas uma casuística crescente,
mas tem sido objeto de normalização.
O caso mais recente, envolvendo uma
professora da cidade baiana de Camaçari, apedrejada e xingada
por alunos após ministrar aulas de cultura afro-brasileira
é chocante. Assim como é estarrecedor perceber o baixo
impacto de situações como essa na indignação
da população em geral.
Aceitamos que a violência contra
visões diferentes da que temos, seja tolerável. Assim,
acabamos sendo tolerantes com a intolerância, o que é
ainda mais grave quando essa intolerância, a princípio
ideológica ou religiosa, se converte em ações
criminosas, violentas, abjetas porquanto envoltas em um ódio
explosivo. E, quando não, como o caso acima ilustra, coletivo,
em que uns contagiam outros no combate “em nome da fé”.
Em sendo o Brasil majoritariamente
cristão, tudo o que foge deste padrão hegemônico
acaba sujeito a tais apedrejamentos. Os fundamentalismos batem à
nossa porta, direta ou indiretamente, no cotidiano, sem que isso,
muitas vezes, nos provoque espanto. Já não são
mais casos isolados ou arroubos derivados de fanatismo exacerbado.
Compõem um estranhíssimo “novo normal” e,
para muitos, inclusive aqueles que se pautam pela fraternidade ou
solidariedade em geral, não merecem a necessária empatia,
como se estivéssemos revivendo o poema de Bertold Brecht (1898-1956),
“Primeiro levaram os negros”.
Entristece-nos, profundamente, a falta
de empatia e o desrespeito ao humano. E isto se torna, permanentemente,
para os que estão despertos, objeto de nossa preocupação
para muito além de uma mera questão de solidariedade.
Ontem foi a professora. Quem será amanhã?
***
Primeiro levaram os negros
Bertolt Brecht
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.