Introdução:
O contato com o sobrenatural
Como procederíamos nós, se convidados fôssemos
para uma reunião onde a atração principal eram
mesas que se erguiam do solo, davam pancadas no chão com uma
ou mais pernas e, até, dançavam ao som de melodias entoadas
por pequenos conjuntos musicais?
Qual seria nossa reação ante a insistência de
amigos para visitarmos suas residências, em horários
previamente determinados, para presenciar reuniões onde os
“espíritos” dos mortos se comunicavam, e tais eventos
poderiam trazer informações relativas aos interesses
dos presentes?
Como reagir ante a constatação, quando da freqüência
a ditas reuniões, acerca da inexistência de fraudes ou
mistificações, comprovando-se tratar realmente de comunicações
egressas de mortos, muitos deles dizendo da realidade da vida espiritual,
da continuidade da vida pós-morte, das relações
entre vivos e mortos e da permanência de gostos, simpatias e
afinidades?
Estes foram episódios da vida de um homem chamado Hippolyté
Leon Denizard Rivail, nos dias de seus primeiros contatos com os fenômenos
espirituais. Rivail, a propósito, ao ser informado sobre a
possibilidade de haver inteligência e livre-vontade em uma mesa,
que respondia “sim” ou “não” a determinadas
perguntas, sentenciou: “- Isso é história
para fazer dormir. Só acredito se me provarem que as mesas
têm nervos e cérebro para poder responder perguntas.”
2. A formação
do homem Rivail
Allan Kardec nasceu em Lyon, a 03.10.1804 e desencarnou em Paris,
a 31.03.1869. Seu nome de batismo era Hippolyte León Denizard
Rivail.
Filho de pais de classe média, um magistrado e uma professora,
estudou na Suíça, no Instituto de Pestalozzi, tornando-se
mestre em Letras e Ciência. Integrou-se à linha do pensamento
pestalozziano, incorporando ao seu estilo pessoal a didática
e a prática recebidas de seu preceptor, dentro de um humanismo
aberto e universalista.
Casou-se com Amélie Gabrielle Boudet, que revestiu-se em sua
maior colaboradora. Fundou, em sua casa, cursos gratuitos de Física,
Química, Anatomia e Astronomia, escrevendo diversas obras de
educação e apresentando Planos e Métodos de Reforma
do Ensino de seu país, a França. Assumiu a postura de
intelectual europeu preocupado com a solução dos problemas
humanos, usando uma poderosa ferramenta: a Educação.
Sua vocação idealista levou-o para os estudos científico-educacionais,
constituindo uma longa carreira e experiência pedagógica.
Destaque-se que, na época, o ensino europeu (e mundial) não
revestia-se das especialidades e da departamentalização
que hoje imperam, e as universidades constituíam-se em verdadeiros
centros de pesquisa ampla, e a formação do indivíduo
era muito mais genérica, porém abrangente. Daí
dizer-se que Kardec graduou-se com variadas habilidades, tendo escolhido,
por força de seu “estilo” espiritual, a carreira
do magistério como decorrência de suas experiências
anteriores, com a qual mantinha maior afinidade.
3. O “espírito cético” de Rivail.
Rivail era, assim, “[...] um homem cosmopolita, sensível,
arguto e naturalmente aberto às influências mais nobres
que a história e a experiência lhe ofereciam.”[1]
Na idade madura – pós cinqüenta anos – estava
psicologicamente formado e perfeitamente ajustado à sensibilidade
de perceber as necessidades de seu tempo, em plena era napoleônica,
pós-iluminista. A França já havia despertado
para os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, linhas-mestras
que hoje são revisitadas pelo Direito e pelas Sociedades, na
busca pela garantia plena dos direitos individuais e sociais, no Estado
que se cognomina de Responsabilidade Social.
Quem se debruça sobre a biografia do insigne patrono, encontra
traços de Rosseau e Pestalozzi, de Lamarck e Darwin, de Comte
e Napoleão, de Marx e Engels, todos visíveis revolucionários,
para promover a verdadeira revolução “das luzes”,
liderando o grande esforço de “[...] construção
de uma nova visão de homem e de mundo, humanista e dinâmica,
na qual razão e sentimento pudessem, harmonicamente, buscar
a verdade.”[2]
Somente ele, naquela época, para perceber a utilidade do novo
“modismo”, substituindo a atração frívola
e passageira, calcada nas respostas de espíritos brincalhões,
zombeteiros e graciosos, por uma investigação séria,
compactuada com inteligências luminares do passado (deste e
de outros Mundos), capaz de descortinar, para o homem, as verdades
que ele próprio, por sua condição investigativa
precária, ainda não podia conceber.
4. O contato com os fenômenos
e o despertar de sua missão
Em 1854, Rivail foi convidado a participar de reuniões onde
ocorriam fenômenos mediúnicos – as mesas girantes
– pelo Sr. Fortier, nas casas das Sra. Roger e da Mme. Plainemaison,
onde começou seu estudo, sério e profundo, observando
experimentalmente, recolhendo e pondo em ordem os dados recebidos
pela fenomenologia mediúnica (psicografia e psicofonia), até
publicar, em 1857, a primeira edição, ainda simplificada,
de O Livro dos Espíritos.
No ano seguinte, fundou a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas,
a primeira instituição espírita do mundo, com
fulcro na observação dos fenômenos, no estudo
e na difusão (veiculação) das idéias espíritas.
Editou a Revista Espírita, verdadeiro
laboratório das impressões e escritos egressos das sessões
práticas de Espiritismo, além das demais obras constantes
da Codificação: O Livro dos Médiuns
(1861), O Evangelho segundo o Espiritismo
(1864), O Céu e o Inferno (1865)
e A Gênese (1868). Deixou vários
escritos, os quais foram publicados após sua morte, intitulados
Obras Póstumas (1890).
Trabalhou árdua e disciplinadamente durante quatorze anos seguidos,
em exemplo de dedicação e renúncia. Herculano
Pires, filósofo e escritor espírita brasileiro, acentua
na obra Ciência espírita e suas implicações
terapêuticas, que a revolução espiritual
adveio pelo Espírito de Verdade, que assume a titularidade
da autoria espiritual do Espiritismo, mas a ciência espírita
(revelação humana) foi obra de Kardec, que a ela se
dedicou de corpo e alma, para despertar os maiores pensadores de seu
tempo (e, quiçá, do nosso, também), para a divulgação
e a reflexão acerca da realidade dos fenômenos espíritas
e do conteúdo da doutrina.
5. A obra pioneira
É patente que O Livro dos Espíritos
é considerado pelos espíritas como o “livro de
filosofia” do espiritismo. Segundo JONES [3],
“[...] a Filosofia é algo que se situa entre a Teologia
e a Ciência. Todo o conhecimento definido pertence à
Ciência e todo dogma, pertence à Teologia. Mas, entre
a Teologia e a Ciência existe um território de ninguém,
onde as nossas reflexões, as nossas idéias, os nossos
mais simples pensamentos, transitam sem dificuldades, sem formalismos
– esta terra de ninguém é uma terra de todos:
é o chão da Filosofia.”
E, por conseqüência, completa: “[...] Na visão
do filósofo J.Herculano Pires, o Livro dos Espíritos,
veículo privilegiado destas idéias inovadoras, mesmo
não tendo sido elaborado em linguagem técnica e nem
observe as minúcias da exposição filosófica,
revela todo um complexo e amplo sistema de filosofia. É, portanto,
o arcabouço filosófico do Espiritismo.”
Ao lançar o livro básico, Kardec inscreveu seu nome
entre os notáveis de todos os séculos, considerando-se
que esta obra já foi objeto de estudo em universidades e centros
de pesquisa – e continua sendo, em alguns tópicos –
mesmo que, a princípio, a intenção inicial fosse
a de ridicularizá-lo.
Estava, pois, lançada a pedra fundamental da Nova Era, sedimentada
no intercâmbio produtivo com seres desencarnados, dispostos
a ajudar a Humanidade, um instrumento de serviço e de amor.
A partir de seu magistral trabalho, com apoio em Herculano Pires,
é possível alinhavar os quatro pontos do chamado “Método
Kardequiano”:
“1) Escolha de colaboradores
mediúnicos insuspeitos, do ponto de vista moral, da pureza
das faculdades e da assistência espiritual (Kardec repassava
as respostas obtidas anteriormente ao crivo de outros espíritos,
através de médiuns diferentes. Assim é que
ele traba¬lhou com as Srtas. Caroline e Julie Baudin, Japhet,
Aline e Solichon, Ermance Dufaux, Sra. Schmidt e Srs. Forbes e Crozet,
dentre outros)”;
2) “Análise rigorosa das comunicações.
(Kardec diz no L.M. que "não existe
uma comunicação má que possa resistir a uma
crítica rigorosa" (cap. 24, item 266). E, na mesma obra,
ele consigna a orientação de Erasto: mais vale repelir
dez verdades do que admitir uma única men¬tira, uma única
teoria falsa (cap. 20, item 230))”;
3) “Controle dos espíritos comunicantes, através
da coerência de suas comunicações e do teor
de sua linguagem”; e,
4) “Consenso universal: concordância entre as várias
comunicações, através de médiuns diversos
em diferentes lugares. (A "Revista Espírita"
foi fundamental para isso. O LE surgiu inicialmente
com 501 questões, em 18/4/1857. Na quinta edição,
ocorrida em 1861, já eram 1.019 questões. Kardec era
o centro mundial que recebia mensagens e comunicações
de todos os cantos, inclusive do Brasil. Kardec escreveria em 1864,
no item II da introdução ao "Evangelho
segundo o Espiritismo": "A única garantia
séria do ensinamento dos espíritos está na
concordância que existe entre as revelações
feitas espontaneamente, por intermédio de um grande número
de médiuns, estranhos uns aos outros, e em diversos lugares")”
[4].
6. O legado kardequiano
Costuma-se medir a importância de cada personalidade humana
com base no que ela pôde realizar em prol da Humanidade e, principalmente,
pelo legado deixado para que os homens de outros tempos o utilizem
em seu proveito pessoal-individual e coletivo.
A partir de 1857, com a obra pioneira, Allan Kardec cunhou “[...]
um novo conceito de homem, partindo da realidade, para ele fundamental,
do espírito. O método que propôs desloca a questão
do espírito do terreno da fé para situá-la no
amplo campo da experimentação científica. Sistematizando
o que chamou de espiritismo, conceituo-o, por isso mesmo, como uma
ciência. Não uma ciência estéril, mas geradora
de um tipo de conhecimento ética e moralmente transformador,
capaz de tornar o homem mais fraterno e, assim, mais feliz. Uma proposta
pouco compatível com o nosso tempo. O que, por sua vez, permite
ainda se tome seu autor muito mais como mito do que como o grande
homem que foi.”[5]
Ao codificar o Espiritismo, Kardec transferiu para os homens a oportunidade
de decisão sobre o que desejam ser. Sem liberdade não
há atividade criadora nem responsabilidade individual, pressupostos
do fundamento ético da Doutrina Espírita.
7. Considerações Finais
Haveria Espiritismo sem Kardec?
Sem dúvida que sim. O trabalho de conscientização,
de humanização, de fraternidade, rotina dos espíritos
superiores que nos endereçam esforços no sentido de
sua implementação, por certo se vale de inteligências
encarnadas e sensíveis para providenciar as “mudanças”
qualitativas.
Em todas as épocas da Humanidade foi possível visualizar
grandes personalidades, expoentes da lógica, do bom-senso,
da verdade e do sentimento, capazes de alavancar verdadeiras revoluções
no pensar e no agir. Muitas, entretanto, sucumbiram, ante suas próprias
deficiências e idiossincrasias, ou, como é comum verificar-se,
deixaram-se contagiar por distúrbios de personalidade ainda
comuns em espíritos errantes como nós, dando vazão
a arroubos de arrogância, prepotência, orgulho e vaidade.
Kardec, ou Rivail, poderia ter sido um deles. Mas não o foi.
O pedagogo concentrou-se tanto na feitura, na organização,
na sistematização do pensamento espiritual, que anulou-se
a si próprio (no bom sentido da palavra), chegando, inclusive,
a passar desapercebido diante da imensa obra que construiu. Tanto
isto é verdade que muitos espíritas, apressados e não-conscienciosos,
consideram-no, erroneamente, como um “secretário”
dos Espíritos Superiores, um mero “datilógrafo”
organizador de pensamentos esparsos ditados por inteligências
desencarnadas.
Kardec fez muito, muito mais que isto. Apôs comentários
judiciosos em todos os livros básicos, referenciando-os uns
aos outros, senão de modo explícito – embora existam
alguns desses casos – mas de modo didático. Todavia,
o mérito maior do operário Kardec não foi o de
“codificar”, isto é, sistematizar seqüencial
e logicamente os pensamentos sobre os mais diversos temas e matizes
da Espiritualidade. Como costumamos dizer no meio da comunicação
social, o mérito de Kardec está nas perguntas, criteriosamente
selecionadas e confeccionadas, revivendo o augusto Sócrates
em sua maiêutica filosófica. “Quem pergunta quer
saber” e Kardec, vez por outra, foi visivelmente “redundante”
(para uns), mas metódico e exaustivo (para nós, que
passamos a compreender melhor sua obra, a cada vez que sobre ela nos
debruçamos). O sucesso de uma entrevista jornalística
no presente, não está no gabarito do entrevistado, como
única premissa. Que será de um bom tema e de um excelente
especialista, se não soubermos, nós comunicadores, extrair
dele o manancial de elementos necessários ao deslinde de um
dado tema? Kardec foi, pois, exímio na arte de perguntar e,
muitas vezes, já pessoalmente satisfeito com as respostas,
pensou nos circunstantes, nos leitores, para atrever-se a entabular
mais duas, três ou várias perguntas, esmiuçando
ainda mais as temáticas.
Por isto e tudo mais, nosso grande contributo de gratidão em
relação ao seu criterioso trabalho deveria ser direcionado
em dois sentidos necessários e solidários:
1) avivar e manter constante a necessidade
do estudo de sua obra, superando a mera leitura ou a interpretação
do que “disse Kardec” por parte, apenas de palestrantes
ou expoentes da escrita; e,
2) providenciar, urgentemente, a atualização dos escritos
dos espíritos (e dos comentários kardequianos) à
luz das recentes e constantes pesquisas e descobertas científicas,
sem, é claro, desnaturar o pensamento e o trabalho pioneiro
do mestre druida, realizando a tarefa que os pós-kardequianos
até hoje relevaram ao último plano de suas ações.
Que este compromisso, assim, figure entre os espíritas esclarecidos
do presente, aqueles que hão de manter vivo e útil
o magistral esforço daquele que se converteu no galardão
da “Alvorada de Luz sobre as Trevas”.
[1] JONES, Maurice
Herbert. A síntese kardequiana
[2] JONES, cit.
[3] JONES, cit.
[4] OLIVEIRA FILHO, Astolfo Olegário de. Allan Kardec e a codificação
do espiritismo
[5] MOREIRA, Milton Medran. Kardec: o mito e o homem.
(*) Marcelo Henrique Pereira, Mestre
em Ciência Jurídica. (*) Presidente da Associação
dos Divulgadores do Espiritismo de Santa Catarina e Secretário
para a promoção da juventude da Confederação
Espírita Pan-Americana.