O título deste ensaio, por
si só, deve provocar uma reação de surpresa e
dúvida por parte do leitor. Afinal, qual é a relação
que existe entre a Doutrina Espírita e um dos maiores eventos
esportivos do mundo contemporâneo? Introdutoriamente, assim,
pode-se afirmar que qualquer situação humano-espiritual
está ao alcance da consideração espiritista,
sem que tenhamos a intenção de justificar ou referendar
as atitudes humanas, mas, pelo contrário, a proposta é
aproveitar as diversificadas situações da vida material,
como mote para as apreciações (oportunas) dos fatos
à luz do Espiritismo.
A Copa do Mundo é um evento que, sabidamente, ocorre de quatro
em quatro anos, entre agremiações esportivas que representam
a bandeira e as cores dos países que dela participam (conforme
critérios de acessibilidade numa competição prévia
– eliminatórias – ou por ser o país-sede
do evento). Por detrás da prática desportiva (que envolve
pessoas que a exercem com ânimo profissional – atletas,
dirigentes e árbitros) –, há, com certeza, diversos
fatores, entre os quais, citamos, exemplificativamente, os de cunho
geopolítico, econômico e social, que podem ser determinantes
para a polarização dos interesses do público
que comparece (preferencialmente) aos jogos, tanto quanto para aqueles
que, mesmo situados nos lugares mais longínquos, acompanham,
pelos meios de comunicação, as partidas.
A Copa é, portanto, uma grande festa, marcada substancialmente
pela pluralidade cultural e étnica, onde desfilam caracteres
e expressões que contemplam povos, raças e gerações,
numa indizível miscigenação. Guardadas as devidas
proporções, tem-se que, em regra, mesmo com as dicotomias
da linguagem articulada (idioma) e gráfica, as pessoas conseguem
se comunicar, se entender e se respeitar. Excetuando-se, é
claro, alguns seres que ainda estagiam em níveis psicológicos
de perturbação e violência, pode-se afirmar, com
tranqüilidade, que a acirrada competição nos gramados,
calcada na disputa pela vitória, superando adversários,
não se estende para as arquibancadas, pois a "ficção"
que é representada pelos embates esportivos não corresponde,
na vida "real", à aniquilação de uns
por parte de outros (permita-nos o leitor, que nos antecipemos em
dizer que, apesar da existência, no presente ou em tempos idos,
de governantes tiranos, déspotas e beligerantes, aqueles que,
inclusive, dizimaram ou tentam dizimar seus "opositores",
a imensa maioria dos povos prefere a convivência pacífica
e harmoniosa).
Sob a ótica espírita, então, como pode ser encarado
(e interpretado, mesmo que por analogia) o acontecimento em tela?
Vamos, pois, aos elementos que, em nossa visão e análise,
merecem destaque e digressão.
Primeiramente, o esporte (e tudo aquilo que com ele se relaciona –
patrocínios, comunicação, tecnologia, alimentação,
hospedagem, lazer, comércio, etc.) – configura a dedicação
e o interesse (direto ou indireto) de espíritos encarnados
nas ocupações materiais da vida, o que recebe o título
conceitual de trabalho. Emmanuel, num de seus oportunos escritos,
certa feita, já havia afirmado: "Toda ocupação
útil é trabalho". Neste sentido, complementarmente,
a vitória no competitório, representada pela taça,
materializa a conjugação de esforços (coletivos)
para tal intento e, nesta acepção, pode-se dizer que
"ganhou o mais capaz", isto é, aquele que mais trabalhou
(para tal desiderato).
A competição esportiva, por extensão, é
regida por regras (rígidas) que contemplam a punição
aos faltosos (os cartões amarelos e vermelhos, os exames de
"anti-dopping", a suspensão e/ou a exclusão
de participantes), seja pela atuação (direta e imediata)
dos árbitros, seja posteriormente a cada jogo, por análises
e deliberações de órgãos colegiados. Aqui,
uma verossímil semelhança com a sistemática da
Justiça Divina, que, a partir de um sistema de compensação
(ação e reação), determina a forma pela
qual os seres saldam seus débitos e restituem possíveis
prejuízos causados. Não é necessária,
assim, a presença de um Tribunal Espiritual, pois o próprio
ser é o juiz de si mesmo. A principal distinção
entre as avaliações do esporte e os atos judiciais espirituais
é que, no âmbito destes últimos, não existem
"injustiças" nem os erros comuns ao nível
humano e suas imperfeições.
Em segundo plano, o objetivo da competição futebolística
é a vitória, que representa a adoção da
melhor estratégia, com os recursos disponíveis, frente
aos distintos desafios que constituem a competição,
desde a fase inicial, passando pelas oitavas, quartas, semifinal e
final. Assim também o é em relação às
lutas e embates do cotidiano humano-espiritual, quando cada indivíduo
adota estratégias, programa-se para o futuro, reúne
credenciais e qualificações para superar suas limitações
e "ser o melhor". A vitória é, assim, do ponto
de vista espiritual, uma conquista, e não obra do acaso, da
sorte, ou da "conspiração (a favor) dos deuses".
Se, no caso do esporte, um lance casual, uma infelicidade de algum
atleta, ou um erro humano podem determinar um resultado, na vida,
a equação merecimento-competência-trabalho parece
ser a mais adequada para representar o conjunto da trajetória
exitosa de todos os espíritos, uns mais rapidamente do que
outros, é bem verdade.
No cenário da vitória, deve ficar evidente que a ambição
não assume contornos de vaidade e egoísmo, ou de prepotência
e arrogância – tão comuns no esporte – mas,
em verdade, devem sobressair aspectos relacionados ao desenvolvimento
de virtudes como a perseverança, a dedicação,
o comprometimento e a participação efetiva daqueles
que desejam vencer. No plano ideal da existência espiritual,
deve o ser alegrar-se com o sucesso, mas, ao contrário das
manifestações materiais, a alegria do companheiro (e,
até, do adversário) é compartilhada mesmo pelos
"derrotados", pois todos, indistintamente, mais dia menos
dia, alcançarão os objetivos finalísticos.
Outro ponto a salientar – principalmente nos últimos
tempos – é a questão do "fair play",
isto é, a solidariedade, o "jogo leal", que principia
por pequenos gestos, no próprio jogo, em que a bola é
colocada para fora de jogo para que um atleta (contundido) seja atendido,
os jogadores se desculpem em virtude de alguma jogada mais ríspida,
e a bola, igualmente, seja devolvida para o time que detinha sua posse,
no momento da interrupção da partida. Esta deve ser,
em essência, a tônica dos relacionamentos humanos, e passa
a ser rotina quando o ser desperta para certas necessidades e passa
a tratar o semelhante do mesmo modo como deseja ser, por ele, tratado.
Isto, fundamentalmente, diferencia os seres entre si, de modo que
a assunção de uma postura pró-ativa, solidária
e construtiva, causa reações nos circunstantes, provocando,
nestes últimos, a oportuna reflexão que impele à
mudança.
Temos presente, neste peculiar, que, principiando por fazer o bem
àqueles que, também, favoravelmente nos tratam –
aquilo que a lição evangélica identifica como
o amor aos parentes e seres mais próximos de nós –
evolui para a consideração dos outros seres que nos
rodeiam, até alcançar os que se comportam ou se dizem
nossos inimigos: adversários de ontem ou de hoje, que estagiam
conosco no aprendizado de todos os dias.
Por fim, ainda que num exercício de ufanismo (ou utopia), resta-nos
considerar que o verdadeiro congraçamento entre atletas e torcedores
pelos estádios da Copa do Mundo, sejam representativos de uma
futura atmosfera de total entendimento entre os seres que, mais despertos
para as realidades espirituais, possam envidar todos os esforços
no sentido da compreensão do semelhante, da harmonia entre
indivíduos e povos, numa festejada fraternidade.
Quem sabe um dia, o exemplo do esporte esteja estampado no cotidiano
de nossas vidas!
(*) Marcelo Henrique, Doutorando em
Direito e Assessor Administrativo da Associação Brasileira
de Divulgadores do Espiritismo - ABRADE.