A nove de março de 1979, José
Herculano Pires retornava à pátria espiritual, com quase
65 (sessenta e cinco) anos de idade, deixando-nos um legado de estudo
aplicado espírita e de compromisso com a racionalidade lógica
e a progressividade do Espiritismo. O maior filósofo espírita
brasileiro e um dos maiores do mundo, Herculano Pires transitou com
inegável facilidade sobre diversas áreas do conhecimento
humano, com uma capacidade muito além da média de traduzir
os acontecimentos sociais e os fenômenos psíquicos sob
a abordagem legitimamente espiritista.
A encarnação física e, sobretudo, o trabalho
de intelectual e pensador espiritista representam, para todos os espíritas
estudiosos e continuadores da difusão da mensagem espiritista,
uma grande referência histórico-cultural.
De nossa parte, conhecemos Herculano em 1981, logo após tornarmo-nos
espíritas. "Conhecemos" não o homem, mas seus
escritos, porque na verdade Herculano já tinha deixado o plano
Terra havia dois anos. A partir daí, passamos a devorar tudo
o que o professor havia escrito e que nos chegava às mãos.
Lembramo-nos, inclusive, que, quase toda semana, íamos à
"Banca da SERTE", livraria espírita situada bem no
centro de Florianópolis, perguntar às atendentes se
um "novo" livro do Professor "havia chegado".
Quase sempre, resposta negativa. Grande parte dos belos e sábios
escritos do "filósofo de Avaré" estavam (e
continuam) esgotados, salvo recentes reedições de alguns
títulos, por esforço de seu filho Herculano Ferraz,
à frente da Fundação Maria Virgínia e
José Herculano Pires e da Editora Paidéia.
Com o advento da Internet, entretanto, a situação ficou
um pouco mais fácil, e, de vez em quando, nas listas de discussão
ou nas que enviam mensagens, têm sido veiculados textos esparsos
(e, até, livros em formato pdf), de sua autoria, propiciando
que tenhamos acesso a artigos e pensamentos até então
desconhecidos, ou, ainda, que outros companheiros possam, atualmente,
conhecer (em parte) a magistral obra pedagógico-filosófica
de Herculano.
Ainda nos surpreendemos, aqui e ali, com a contundência e severidade
de suas linhas, sobretudo quando dirigidas a nós, espíritas,
que não tratamos com o devido zelo nem a mensagem nem a proposta
de trabalho do Espiritismo.
Mas, o que mais nos causa perplexidade é ver que Herculano
é tão pouco conhecido, porque não lido e não
estudado, nas atuais instituições espíritas.
E é por isso que aproveitamos este ensejo, de falar do aniversário
de 30 anos de sua passagem, para relembrar alguns dos fatos e contingências
mais importantes de sua vida, a título de incentivo para que
os jovens (e os adultos) espiritistas de hoje, busquem um reencontro
com o Professor.
Vamos a eles:
- Católico de formação
até os 15 anos de idade, o jovem de Avaré (SP) foi
guiado pela necessidade do raciocínio lógico e aplicado,
a fim de conhecer melhor as “coisas do mundo”, passando
antes pela Teosofia até acessar, pela vez primeira em face
de um desafio proposto por um amigo, o conteúdo de O
Livro dos Espíritos, em 1936, aos 22;
- Precocemente, revelou sua veia literária (um soneto, aos
9, sobre o Largo São João, sua terra natal, depois,
com Sonhos Azuis – contos, aos 16, e Coração
– poemas livres e sonetos, aos 18 anos de idade). Com 32 anos,
publicou O caminho do meio, seu primeiro
e mais elogiado romance e aos 44, licenciou-se em Filosofia com
a tese “O Ser e a Serenidade”
(depois, também, publicada como livro);
- Homem múltiplo, na definição
de seu biógrafo e amigo Jorge Rizzini (recém-desencarnado),
conseguiu conciliar a trajetória espírita com atividades
profissionais no âmbito do magistério, da filosofia,
da parapsicologia, do jornalismo e do sindicalismo, foi servidor
público (Banco do Brasil), além de ter atuado na esfera
político-governamental, por diversas vezes. Participou do
Governo Jânio Quadros, em São Paulo e chegou a colaborar
na (meteórica e polêmica) gestão deste político
à frente da Presidência da República, como chefe
do subgabinete da Casa Civil (1961);
- Escritor e articulista, dizia sofrer de grafomania, pois escrevia
dia e noite. Publicou em torno de 85 livros (dos quais 62, espíritas)
e mais de 15 mil laudas, sobre as mais variadas temáticas
(Filosofia, Ensaios, Histórias, Psicologia, Parapsicologia
e Espiritismo), sempre com inegável e inigualável
qualidade. Uma de suas obras, O Espírito e o
Tempo, foi democraticamente escolhida em processo
de consulta, como o “livro espírita do século
XX” (ao lado de O Problema do Ser do Destino e
da Dor do pensador francês León Denis),
um verdadeiro Tratado Antropológico do Espiritismo, base
para a consideração da Mediunidade como base cultural
da História da Humanidade;
- Combativo, denunciou e bradou forte e claramente contra todo e
qualquer desvio, tentativa de adulteração e desconfiguração
do edifício kardequiano, sendo, ainda, o interlocutor favorito
dos programas de rádio e TV para debater com clérigos,
parapsicólogos e cientistas, sobre questões transcendentais.
Contudo, nunca foi arrogante, prepotente ou mal-educado em relação
a seus sistemáticos ou eventuais “adversários”,
pois não confundia ideias com pessoas, mantendo-se sempre
fraterno e cordial, apesar de crítico mordaz e irreverente,
do movimento espírita e do catolicismo, sem deixar de lado
o bom humor e a bem-querência no trato interpessoal;
- Jornalista, colaborou com periódicos (jornais, revistas
e boletins) e dirigiu, durante seis anos o jornal Diário
Paulista, tendo sido redator, secretário, cronista e crítico
literário, alcançando a respeitável marca de
2 mil artigos em 12 periódicos, adotando quase uma dezena
de pseudônimos – muitos dos quais conhecidos até
hoje, em razão de incursões do professor em órgãos
noticiosos, assinando como tal – dos quais o mais famoso era
Irmão Saulo;
- Pedagogo e Educador, difundiu a Educação Espírita
como cadeira pedagógica, sendo o primeiro daqueles que propugnaram
pela existência de Faculdades Espíritas. Editou e lançou
(1970) a revista “Educação Espírita”;
- Cientista espírita, daqueles que arregaçam as mangas
e se debruçam, ávida e responsavelmente, sobre os
fenômenos espíritas, buscando-lhes a robustez de sustentação,
na aplicação do método e da metodologia próprios
e naturalmente adequados, por meio da sintaxe da exposição
objetiva de fatos e argumentos e da semântica do desenvolvimento
lógico e racional. Defendeu, veementemente, a permanente
aproximação da Ciência Espírita com as
ciências humanas; e,
- Conferencista ardoroso, com uma prodigiosa memória quanto
às citações das obras fundamentais em suas
exposições, adotou, tanto na expressão oral
quanto na escrita, dois dos principais caracteres de seu Espírito
imortal: profundidade e coragem, sobretudo para a edificação
de pontes permanentes e sólidas entre o conhecimento espírita
e as vertentes da cultura contemporânea.
Herculano, se vivo estivesse, com certeza estaria à tribuna
e à pena jornalística, desafiando tal qual Dom Quixote,
elegantemente, aqueles a quem chamava de “detratores do Espiritismo”,
para que se explicassem e se posicionassem “fora” do espectro
espiritista. Não havia meio termo ou meias palavras, para o
filósofo, ainda que, neste sentido, não fosse necessário,
a ele, atuar com grosseria, aos berros e sem caridade. Nada mais o
deixava tão profundamente irritado, perplexo e receoso do que
a adesão dos pretensos espíritas às novidades
“de ocasião”. E elas, as novidades, continuam por
aí, a atrair aqueles que não têm, para com a Doutrina
Espírita, o mínimo compromisso com o estudo, a prática
e o raciocínio lógico aplicado, nem, tampouco, com a
universalidade dos ensinos espíritas, critério inafastável
de Kardec. Era o “zelador do Espiritismo”, merecendo o
status de Kardec brasileiro, de reconhecimento aos inúmeros
serviços prestados à Doutrina Espírita.
Assim, a lembrança de seu passamento, ocorrido há trinta
anos, nos desperta a doce e agradável saudade, sempre que o
revisitamos em cada leitura, sempre que republicamos, em nosso periódico
(a “Revista Espírita Harmonia”,
criada em 1987), algumas de suas linhas, como sinal e expressão
de alerta àqueles que desejam um Espiritismo plural, permanente,
alteritário e produtor das grandes transformações
evolutivas (individuais e coletivas). Este é o maior legado
que ele nos deixou, um talento que devemos fazer multiplicar, como
recomendou aquele Carpinteiro de Nazaré.
Ler e estudar Herculano e, sobretudo, entendê-lo e aplicá-lo
no cotidiano de nossas instituições e no seio de nosso
movimento, é o maior sinal de que as sementes que ele lançou
vicejaram e já produzem frutos, a cem por um.
Este pequeno texto, então, dedicamos à guisa de louvor
à memória do maior filósofo espírita brasileiro
(1914-1979)