Introdução
– A expressão “pureza doutrinária”
ainda é mal compreendida no meio espírita. Alguns acreditam
que pureza doutrinária engessa o Espiritismo, impedindo
o desenvolvimento do seu caráter progressista (Kardec, item
55 do cap. I de A Gênese [1]).
Entretanto, por mais contraintuitivo pareça, é
justamente a pureza doutrinária o ingrediente mais
importante para se desenvolver o Espiritismo de modo eficiente. Para
entender isso, vamos traçar um paralelo entre o conceito de
“pureza doutrinária” e a postura dos cientistas
no caráter progressivo da Ciência.
O que é e a importância da pureza doutrinária
para o movimento espírita já foram debatidos na literatura
espírita [2,3]. Como destacado
anteriormente [3], o conceito de “pureza”
de alguma “coisa” não tem valor pela “coisa”
em si (que é pura por natureza), mas sim para quem a emprega
em determinado fim. Por exemplo, faz sentido dizer que “a
água que vou tomar é pura”, mas não
faz sentido dizer que “a água pura é pura”.
O adjetivo doutrinária apenas faz referência ao tipo
de pureza que está sendo analisado. Assim, não
faz sentido verificar se a Doutrina Espírita é
pura, pois isso é redundante! Pureza doutrinária só
se aplica ao Movimento Espírita já que ele
representa a prática, vivência e o emprego que se faz
do Espiritismo na vida das pessoas. Nisso, será que temos consciência
se tudo aquilo que estudamos, praticamos e vivenciamos reflete os
ensinamentos da Doutrina Espírita? Será que a água
que estamos bebendo é pura?
O Movimento Espírita (ME) é muito interessado nas descobertas
da Ciência e, em particular, da Física. Logo, é
sensato analisar como o caráter progressivo da Ciência
se desenvolve. O que veremos a seguir é que o rigor
da Ciência no seu trabalho de pesquisa representa a aplicação
do conceito de pureza doutrinária no seu desenvolvimento.
Quando as pessoas assistem admiradas às notícias sobre
novas descobertas da Física, mal sabem que a Física
é extremamente rígida e não aceita novidades
antes de se verificar todos os seus critérios
de validade.
A pureza doutrinária na Física
– Therezinha Oliveira, ao falar
sobre a possibilidade de incorporação de novas revelações
e conhecimentos ao Espiritismo, diz [2]
que “... não sem que passem, antes, pelo crivo da
razão e, quando possível, da experimentação”.
Não é exatamente isso que os físicos cientistas
fazem, isto é, passar pelo crivo da razão e da experimentação?
Literalmente, o que os físicos fazem é seguir “à
risca” o que podemos chamar de “pureza doutrinária
na Física”! Mas como pode uma ciência tão
progressista como a Física adotar “pureza doutrinária”
em seus critérios de pesquisa? A resposta é simples.
É justamente por aplicar com todo rigor seus critérios
de pesquisa que os resultados de pesquisa da Física têm
valor! Da mesma forma, como uma verdadeira ciência, é
justamente adotando “pureza doutrinária” que o
Espiritismo irá progredir a passos muito mais largos do que
se imagina hoje. Não é adotando, sem critérios
e razão, conceitos esotéricos, práticas pseudocientíficas
e novidades de todo o tipo que o Espiritismo vai se desenvolver. Pureza
doutrinária em qualquer Ciência, incluindo a Ciência
Espírita, nada mais é do que a observância dos
métodos, rigores, teorias e paradigmas da própria Ciência
no trabalho de pesquisa e desenvolvimento de novos conhecimentos!
O equívoco decorre de se considerar o conceito de “pureza
doutrinária” como fator de estagnação.
Em pleno milênio das luzes do conhecimento, o ME precisa amadurecer
o seu entendimento a respeito do significado real de pureza doutrinária.
E, para isso, vamos analisar um pouco mais sobre como a Ciência
se desenvolve.O equívoco decorre de se considerar o conceito
de “pureza doutrinária” como fator de estagnação.
Em pleno milênio das luzes do conhecimento, o ME precisa amadurecer
o seu entendimento a respeito do significado real de pureza doutrinária.
E, para isso, vamos analisar um pouco mais sobre como a Ciência
se desenvolve.
O que confere valor a uma descoberta, em qualquer área do conhecimento,
é a observância dos critérios, rigores, e fundamentos
da respectiva área. Na área da Física, os físicos
e cientistas seguem com rigor os métodos e conceitos estabelecidos
pelas teorias e paradigmas da Física. Se algum cientista decidir
utilizar métodos de outra área na investigação
de conceitos de Física, isso não terá valor científico.
Se algum cientista decidir inventar novos métodos sem
justificá-los em termos dos métodos e conceitos atuais,
isso não terá valor científico. Assim, novas
descobertas só são aceitas numa área, se forem
fiéis aos conceitos, critérios e métodos
do paradigma original da respectiva disciplina científica.
Por que bóson de Higgs?
– Como exemplo, vamos analisar uma das descobertas recentes
da Física que mais chamou a atenção da mídia:
o bóson de Higgs. A revista Science dedicou espaço
especial para vários artigos sobre o assunto (incluindo acesso
gratuito a alguns deles [4]). O chamado
Modelo Padrão das partículas subatômicas é
considerado uma das teorias mais completas e bem sucedidas da Física,
por descrever de modo preciso as propriedades das partículas
que compõem a matéria, e as forças de interação
entre elas (com exceção da força da gravidade).
Entretanto, uma dessas propriedades das partículas que não
era explicada pela teoria é a massa. Há 40 anos, Higgs
propôs a existência de um campo que seria responsável
pela propriedade de massa das partículas. Como campos, segundo
a Física Quântica, são formados por um tipo de
partícula chamada bóson, a responsável
por esse campo levou o seu nome: bóson de Higgs. Se
essa partícula realmente existisse, a massa das partículas
poderia ser explicada pelo Modelo Padrão de modo consistente.
O conceito de “pureza doutrinária” na
descoberta do bóson de Higgs se evidencia de duas
formas. Uma ao verificar que, mesmo sabendo que o Modelo Padrão
sustentava a existência dessa partícula, os físicos
não consideravam como certa a existência do bóson
de Higgs! Isso, pois, de acordo com a pureza doutrinária
da Física, não basta apenas fazer sentido teoricamente,
a existência do bóson de Higgs precisava ser verificada
experimentalmente e com todo o rigor que a Física determina
para isso.
Cientistas de diversas áreas construíram um aparelho
de mais de 5 bilhões de dólares [4]
para realizar os experimentos de colisões de partículas
necessários para observar o bóson de Higgs. E a segunda
forma de perceber o conceito de pureza doutrinária
na Física advém do seguinte. Como os fenômenos
de colisão envolvidos no experimento podem ser explicados por
outros fatores, foi necessário repetir as
colisões de partículas por bilhões
de vezes, e por mais de um método diferente
ao mesmo tempo [5].
O que na Física é tido como
verdade
– Da análise e comparação dos resultados,
foi possível demonstrar que o bóson de Higgs está
presente em determinados tipos de reações nucleares
com um erro de 1 em ~ 300 milhões de eventos!
Só assim, os físicos deram por demonstrada a existência
do Bóson de Higgs! Isso é pureza doutrinária
aplicada na Física! Isso é o exemplo de cuidado
que a Física nos mostra antes de se considerar como
verdade uma novidade qualquer.
“É preciso, pois, evitar o deixar-se seduzir pelas
aparências, tanto da parte dos Espíritos, quanto
da dos homens; ... é preciso que tudo seja friamente examinado,
maduramente pesado, confrontado, e, se desconfiamos do próprio
julgamento, (...), é preciso recorrer a outras pessoas.”
(Grifos em negrito, meus). Essas palavras
de Kardec, em discurso feito em 19 de setembro de 1860 aos espíritas
lioneses [6], não expressam exatamente
a postura de pureza doutrinária que a Física e toda
Ciência adotam? Portanto, o movimento espírita deve valorizar
a pureza doutrinária em suas atividades. É
justamente ela que ajudará o caráter progressista do
Espiritismo.
Para desenvolver bem o caráter progressista do Espiritismo,
é necessário:
1) estudar aprofundadamente as obras
básicas do Espiritismo;
2) estudar as obras, mediúnicas ou não, de autores
bem reconhecidos no movimento espírita, sempre verificando
se elas de fato não apresentam conflitos com a base doutrinária;
3) evitar a adição de enxertos e novidades sem satisfazer
o crivo da razão e sem a devida demonstração,
que, por sua vez, não pode ocorrer de modo superficial e
sem completo domínio do assunto em questão (ver, por
exemplo, a análise apresentada na referência [7]);
e
4) seguir a recomendação de Erasto (item 230 de O
Livro dos Médiuns [8]): “É
melhor repelir dez verdades do que admitir uma única falsidade,
uma só teoria errônea”. Em outras palavras,
como descrito na Introdução de O Evangelho segundo
o Espiritismo [9]: “Uma
só garantia séria existe para o
ensino dos Espíritos: a concordância que haja entre
as revelações que eles façam espontaneamente,
servindo-se de grande número de médiuns estranhos
uns aos outros e em vários lugares. (...) Essa verificação
universal constitui uma garantia para a unidade futura do Espiritismo
e anulará todas as teorias contraditórias.
Aí é que, no porvir, se encontrará o critério
da verdade.”
(Grifos em itálico originais, e em negrito, meus.)
Por fim, jamais esquecer que “o que costuma caracterizar
uma nova revelação, quando o é de fato, não
é a negação da anterior, mas, justamente, a sua
confirmação dos pontos fundamentais que lhes servirão
de degraus de apoio”. (Yvonne do Amaral Pereira [10].)
A base kardequiana e sua importância
– Para concluir, reproduzimos abaixo a preocupação
dos bons Espíritos com relação à pureza
e fidelidade doutrinária:
“A Doutrina Espírita
possui os seus aspectos essenciais em configuração
tríplice. Que ninguém seja cerceado em seus anseios
de construção e produção. Quem se afeiçoe
à ciência que a cultive em sua dignidade, quem se devote
à filosofia que lhe engrandeça os postulados e quem
se consagre à religião que lhe divinize as aspirações,
mas que a base kardequiana permaneça em tudo e todos,
para que não venhamos a perder o equilíbrio sobre
os alicerces em que se nos levanta a organização.
(...)
(...) Acontece, porém, que temos necessidade de preservar
os fundamentos espíritas, honrá-los e sublimá-los,
senão acabaremos estranhos uns aos outros, ou então
cadaverizados em arregimentações que nos mutilarão
os melhores anseios, convertendo-nos o movimento de libertação
numa seita estanque, encarcerada em novas interpretações
e teologias, que nos acomodariam nas conveniências
do plano inferior e nos afastariam da Verdade. (...)
(...) Allan Kardec, nos estudos, nas cogitações,
nas atividades, nas obras, a fim de que a nossa fé não
faça hipnose, pela qual o domínio da sombra se estabelece
sobre as mentes mais fracas, acorrentando-as a séculos de
ilusão e sofrimento. (...)
(...) Seja Allan Kardec, não apenas
crido ou sentido, apregoado ou manifestado, a nossa bandeira, mas
suficientemente vivido, sofrido, chorado e realizado em nossas próprias
vidas. Sem essa base é difícil forjar o caráter
espírita-cristão que o mundo conturbado espera de
nós pela unificação.” (“Unificação”,
mensagem de Bezerra de Menezes recebida por Chico Xavier em 20-04-1963
publicada em Reformador, Dezembro de 1975. Grifos em negrito meus.)
Fidelidade à doutrina
é essencial
– “A programação que estabelecestes
para este quinquênio é bem significativa, porque verteu
do Alto, onde se encontrava elaborada, e vós a vestistes com
as considerações hábeis e aplicáveis a
esta atualidade. Este é o grande momento, filhos da alma. Não
tergiverseis, deixando-vos seduzir pelo canto das sereias da ilusão.
Fidelidade à doutrina é o que se nos impõe,
celebrando os cento e cinquenta anos da obra básica da Codificação
Espírita. Não permitais que adições
esdrúxulas sejam colocadas em forma de apêndices que
desviem os menos esclarecidos dos objetivos essenciais da doutrina.
(...) Sede fiéis, permanecendo profundamente vinculados ao
espírito do Espiritismo como o recebestes dos imortais
através do preclaro Codificador.”
(“O Meio-Dia da Nova Era”, mensagem de Bezerra de Menezes
recebida por D. P. Franco em 12-04-2007 publicada em Reformador, Junho
de 2007. Grifos em negrito meus.)
“Esses tempos atuais chamam-nos à fidelidade
aos projetos do Espírito de Verdade, para que estejamos
atentos a fim de que não abandonemos o trabalho genuinamente
espiritista, passando a ocupar valioso tempo com palavrórios
e disputas, situações e questões que, declaradamente,
nada tenham a ver com a nossa Causa, por não serem
da alçada do Espiritismo.”
(“Definição e trabalho em tempos difíceis.”,
mensagem de Camilo recebida por Raul Teixeira em 11-11-2005 publicada
em Reformador, Janeiro de 2006. Grifos em negrito meus.)
Alexandre Fontes da Fonseca é professor de Física
na Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho",
em Bauru-SP.