Em O Livro dos espíritos
(LE), (1) após a Introdução,
a palavra “fluido” aparece pela primeira vez na resposta
dada pelos Espíritos à questão 27. Ao serem
perguntados se matéria e espírito são os dois
elementos gerais do universo, os Espíritos responderam:
Sim e acima de tudo Deus, o Criador,
o Pai de todas as coisas. Deus, espírito e matéria
constituem o princípio de tudo o que existe, a trindade
universal. Mas ao elemento material se tem que juntar o fluido
universal, que desempenha o papel de intermediário entre
o espírito e a matéria propriamente dita, por demais
grosseira para que o espírito possa exercer ação
sobre ela. Embora, de certo ponto de vista, seja lícito
classificá-lo como elemento material, ele se distingue
deste por propriedades especiais. […] (Destaques
do autor.)
Mas o que seria esse fluido? A questão
27a do LE fornece pistas:
a) Esse fluido será o que
designamos pelo nome de eletricidade? Dissemos que ele é
suscetível de inúmeras combinações.
O que chamais fluido elétrico, fluido magnético,
são modificações do fluido universal, que
não é, propriamente falando, senão matéria
mais perfeita, mais sutil e que se pode considerar independente.
(Destaques do autor.)
Na época em que Kardec tomou contato com
os fenômenos espíritas, ainda não existia a
teoria clássica do eletromagnetismo, formulada por James
Clerk Maxwell e publicada em 1861. Havia uma teoria fluídica
(2) da eletricidade, proposta por Charles
François de Cisternay du Fay e depois aprimorada por Benjamin
Franklin, que dizia que os fenômenos elétricos resultavam
do excesso ou falta de um determinado fluido. (2)
Teorias similares existiam para explicar o magnetismo. (2)
Não é de se estranhar, pois, que os Espíritos
tivessem utilizado termos conhecidos à época para
poder explicar os conceitos espíritas.
Um fluido é “uma substância que continuamente
se deforma (flui) sob ação de forças de cisalhamento”.
(3) Forças de cisalhamento são
aquelas aplicadas em direções paralelas, mas em sentidos
opostos, assim como a tesoura ao cortar um material. Os fluidos
possuem duas propriedades: (3) i) não
resistem à deformação, ou resistem de modo
relativamente lento (apresenta viscosidade); e ii) possuem habilidade
de fluir, assim como a habilidade de tomar a forma do recipiente
que os contém.
Essas definições materiais sobre fluidos têm
levado alguns companheiros a questionar sobre a validade do uso
do termo “fluido” para tudo o que é formado a
partir de modificações do Fluido Universal (FU), que
são etéreos ou imponderáveis. Alega-se que
o conceito de fluido no Espiritismo é algo mais sutil e dinâmico
do que o conceito de fluido na Ciência. Sugeriu-se que o termo
“campo”, como usado na definição de campos
elétricos e magnéticos, seria mais apropriado, cientificamente,
do que “fluido” para descrever as modificações
do FU. Propôs-se até mesmo a abolição
do uso do termo “fluido” das obras espíritas
e do Movimento Espírita, alegando-se que esse termo seria
impróprio pelas razões acima mencionadas. De outro
lado, estudiosos do aspecto filosófico da ciência espírita
enfatizam a importância de se manter a nomenclatura originalmente
definida pela Doutrina Espírita sob pena de se desvirtuar
o entendimento de seus principais conceitos com a inserção
apressada de novos termos. (4) Diante
disso, pretendemos analisar se realmente o termo “fluido”
seria inadequado para descrever os fluidos espirituais. Verificaremos
se o conceito de “campo”, no fundo, não nos remete
de volta ao conceito de “fluido”, quando analisado segundo
as teorias modernas da Física. Para isso, vamos rever o conceito
de “campo”, segundo a Ciência e analisar a descrição
do conceito de “campo elétrico”, segundo a teoria
quântica. Por fim, essa descrição será
comparada com o conceito de “fluido” para verificarmos
se, no final das contas, ele permanece ou não atual e correto
no Movimento Espírita.
Conceito de “campo”
O Wikipedia apresenta a seguinte definição
matemática de campo: “uma quantidade física
que possui um valor em cada ponto do espaço e do tempo”.
(5) Exemplos são os campos elétrico,
magnético, de velocidades, gravitacional etc. Os campos podem
ter natureza escalar, vetorial ou algo matematicamente mais complexo.
Um escalar é uma grandeza representada apenas por um número.
Um vetor é um objeto matemático que possui magnitude,
direção e sentido bem definidos sendo, portanto, representado
por três números. Os campos elétrico e magnético
são representados por vetores.
Michael Faraday, em 1847, foi o primeiro a usar o termo “campo”.
A ideia de campo está relacionada a algum tipo de alteração
que o espaço sofre, tornando-o capaz de agir sobre uma partícula
através de forças, de acordo com as propriedades físicas
da partícula. Esse conceito surgiu para explicar como par-
tículas distantes poderiam “sentir” a presença
umas das outras, isto é, como uma partícula exerce
força sobre as outras. Uma partícula sozinha no espaço,
ou seja, na ausência de outras partículas, não
sentirá nenhum tipo de força ou interação.
Mas, na presença de outras partículas, ela poderá
sentir forças de atração ou repulsão.
Por exemplo, cargas elétricas interagem entre si através
da chamada Lei de Coulomb que diz que cargas iguais se repelem e
cargas opostas se atraem de modo proporcional ao produto da intensidade
das cargas e ao inverso do quadrado da distância entre elas.
Mas a questão que intrigou os cientistas foi: como uma carga
“sabe” da existência e proximidade das outras
cargas, ou como “sabe” se essa outra carga é
de sinal igual ou oposto à sua própria carga?
Alguma informação a respeito de cada carga presente
num ambiente se propaga pelo espaço e essa informação
é, de alguma forma, percebida e interpretada pelas outras
partículas.
O campo elétrico foi definido para tentar explicar isso.
Ele representa a alteração no espaço devido
à simples presença de partículas de carga elétrica.
As outras partículas “percebem” a existência
de outras cargas através da percepção da intensidade,
sentido e direção do campo elétrico. A Ciência,
então, definiu formas matemáticas precisas de se quantificar
o campo elétrico, como uma grandeza vetorial, e realizou
inúmeras experiências para determinar mapas ou diagramas
espaciais que o representam diante de diversos tipos e distribuições
de cargas.
Embora útil, o conceito de “campo” era considerado
mais um artifício matemático do que um objeto físico.
Porém, com o desenvolvimento da teoria eletromagnética
de Maxwell, demonstrou-se que a luz e a radiação eletromagnética
são campos elétricos e magnéticos que oscilam
no tempo e no espaço. Como a radiação eletromagnética
continha energia e momento linear, os campos eletromagnéticos
passaram a ter um status de objetos físicos reais.
O conceito de campo é algo interessante porque é imponderável
por natureza. Essa imponderabilidade pode ter sido a motivação
para que alguns companheiros espíritas pensassem que ele
é melhor do que o termo “fluido” para descrever
aquilo que chamamos de fluidos espirituais. Afinal, no item 2, do
cap. XIV de A gênese (GE), (6)
Kardec expôe sua opinião sobre o fluido universal:
[…] Como princípio elementar do universo,
ele assume dois estados distintos: o de eterização
ou imponderabilidade, que se pode considerar o primitivo estado
normal, e o de materialização ou de ponderabilidade,
que é, de certa maneira, consecutivo àquele. […]
Ou seja, como o estado de imponderabilidade caracteriza
os fluidos espirituais, alguns companheiros abrigaram a ideia de
que o conceito de campo, que também é algo imponderável,
poderia descrevê-los diretamente. Se a questão fosse
apenas a ponderabilidade, razão não haveria para desprezar
o termo “fluido”, pois que os gases são fluidos
imponderáveis. Mas estudos modernos, com base na física
moderna, mostram que o conceito clássico de campo, como algo
estático e que transmite informação instantaneamente
a todo o espaço, não pode existir. É aí
que vamos perceber a atualidade do termo “fluidos” e
a sabedoria dos Espíritos em não propor outra denominação
para os mesmos.
Com a descoberta da quantização da energia do campo
eletromagnético, chamado fóton, e o surgimento posterior
da teoria quântica da matéria, a forma como os cientistas
entendem o conceito de campo mudou. A teoria que trata do campo
eletromagnético de modo quântico é chamada eletrodinâmica
quântica (ou QED da sigla em inglês) (7).
A QED descreve a interação ou forças entre
partículas carregadas reciprocamente através da troca
de fótons. Esses fótons são chamados de virtuais
ou mensageiros, porque só existem com o propósito
de trocar informações eletromagnéticas entre
as cargas elétricas.(8) O campo
elétrico seria, então, representado pelo conjunto
de fótons virtuais ou mensageiros trocados entre as partículas
de carga que participam da interação entre elas. O
campo elétrico, assim, não é mais uma entidade
absolutamente imponderável e abstrata, mas sim um conjunto
de partículas de luz – os fótons –, que
fluem incessantemente de uma carga para outra a fim de efetuar a
interação entre elas.
Retornemos, agora, às propriedades dos fluidos. Além
de não resistir à deformação, a propriedade
de ter habilidade de fluir é o ponto que liga o conceito
moderno de campo ao conceito de fluidos. Como visto acima, o conceito
quântico de campo elétrico envolve partículas
de luz virtuais que, possuindo a habilidade de fluir de uma partícula
material de carga à outra, permite a troca de informações
eletromagnéticas entre elas. Por ser formado de objetos físicos
que têm a habilidade de fluir, “campo” pode ser
chamado de “fluido”. Portanto, o termo “fluidos”
no Espiritismo não está ultrapassado, como alguns
pensam, e é perfeitamente adequado para descrever os fluidos
espirituais.
Em conclusão, mostramos como o termo “fluido”
permanece atual mesmo com os avanços da física moderna.
Destacamos a sabedoria dos Espíritos quando usaram a expressão
“o que chamais” antes de “fluido” na resposta
dada à questão 27a):
[…] O que chamais fluido elétrico,
fluido magnético, são modificações
do fluido universal, que não é, propriamente falando,
senão matéria mais perfeita, mais sutil e que se
pode considerar independente. Ao usar a expressão “o
que chamais fluido elétrico…”, os Espíritos
não se comprometeram em confirmar que a eletricidade e
o magnetismo seriam fluidos, como se pensava na época,
e, ao mesmo tempo, não deixaram de usar o termo que permanece
atual. A Doutrina Espírita demonstra, mais uma vez, estar
à frente de seu tempo.