Paulo da Silva Neto Sobrinho

>    Jesus teve ou não Irmãos?

Artigos, teses e publicações

Paulo da Silva Neto Sobrinho
>    Jesus teve ou não Irmãos?


“O fechado sistema dogmático de ensino
compreende uma teologia escolástica
autoritária e não-bíblica há muito ultrapassada”.

Hans Küng

 

 

Introdução

Em nosso meio sempre ocorrem dúvidas quanto à questão de que Jesus teve outros irmãos, já que não era o único filho de Maria.

Recentemente, numa palestra na reunião de quarta-feira, à noite, no Centro Espírita Irmão Mateus, Bairro Concórdia, Belo Horizonte, tocamos no assunto e não deu outra: a polêmica se instalou. Um número razoável de frequentadores acreditava que Jesus jamais teve irmãos, coisa bem natural já que foi isso que aprenderam de seus pais e líderes religiosos.

Às vezes é interessante que a polêmica ocorra; é um bom caminho para se encontrar a verdade. Vimos que alguns espíritas se interessam pelo assunto e que têm por hábito o estudo das passagens bíblicas relativas à vida e obra de Jesus. Percebemos, também, que companheiros buscam apoiar-se em dados concretos e não em crenças, às vezes, até mitológicas, promanadas dos teólogos do passado, que, diga-se de passagem, não devem ser condenados, pois somente representavam a cultura de época.

Com o presente estudo desse tema não temos a intenção de derrubar conceitos ou crenças religiosas; tão somente nos move o sincero desejo de elucidar o assunto, caso tenhamos condições de fazê-lo, é claro. Nem temos a pretensão de esgotá-lo, dando a palavra final.


A crença que interfere na crença

A principal crença que faz com que as pessoas não aceitem, de bom grado, que Jesus realmente teve irmãos reside na suposição de que Maria foi virgem – antes, durante e depois do parto. Óbvio que, se Jesus teve irmãos, essa visão cai por terra, e os que acreditam nisso ficariam sem “chão” dada a insistência que, ao longo dos tempos, se afirma tal coisa. Ademais, para muitos, isso se depreende dos textos bíblicos, os quais nós veremos um pouco mais adiante, pois, antes disso, devemos mencionar algumas culturas religiosas pagãs que tinham essa mesma crença, ou seja, de uma virgem sendo fecundada por um deus.

Deuses engravidando mulheres virgens é algo comum na mitologia antiga, conforme confirmam vários autores como, por exemplo:

a) Pepe Rodríguez (1953- )

No livro Mentiras fundamentais da Igreja Católica, no capítulo III, no item “Nascer de virgem fecundada por Deus foi um mito pagão bastante difundido em todo o mundo antigo anterior a Jesus”, encontramos:

Lendas pagãs deste género foram obviamente integradas na Bíblia, não só nos referidos relatos dos nascimento de Sansão, de Samuel ou de João Batista, como, muito mais tarde, no relato do nascimento de Jesus. Regra geral, desde tempos remotos, quando o personagem anunciado era de primeira ordem, a mãe era sempre fecundada por Deus, através de um procedimento milagroso que, fosse ele qual fosse, confirmava claramente o mito da concepção virginal. Esta confirmação era particularmente patente na concepção dos deuses-Sol, uma categoria a que, como veremos, pertence a figura de Jesus Cristo. (RODRÍGUEZ, 2007, p. 100-101, grifo nosso).

Um pouco mais à frente, Rodríguez acrescenta:

Todos os grandes personagens, tenham sido eles reis ou sábios – como, por exemplo, os gregos Pitágoras (c. 570-490 a.C.) ou Platão (c 417-347 a.C.) –, ou se tenham tornado o centro de alguma religião e acabado por ser adorados como “filhos de Deus” (Buda, Krishna, Confúcio e Lao Tsé) foram mitificados pela posteridade como filhos de uma virgem. Jesus, surgido muito depois, mas destinado a desempenhar um papel semelhante ao que os seus antecessores haviam desempenhado, não podia ter um estatuto inferior ao deles. Desse modo, o budismo, o confucionismo, o tauismo e o cristianismo, ficaram indelevelmente marcados pelo facto de terem sido fundados por um “filho do Céu”, encarnado através do acesso directo e sobrenatural de Deus ao ventre de uma virgem especialmente escolhida e apropriada. (RODRÍGUEZ, 2007, p. 103, grifo nosso).

b) Hans Küng (1928- )

Esse autor também nos passa informações bem interessantes:

Sim, o Faraó do Egipto é concebido milagrosamente como rei divino, pelo deus espiritual, Amon-Rá, na figura do rei reinante e pela rainha virgem. Na mitologia greco-helénica os deuses também contraem “matrimónios sagrados” com filhas de humanos, dos quais nascem filhos de deuses tais como Perseu e Herácles ou também figuras históricas como Homero, Platão, Alexandre, Augusto. É impossível deixar de reparar no seguinte: a concepção virginal em si não é algo exclusivamente cristão! A ideia de concepção virginal, é, pois, segundo a exegese actual, utilizada por ambos os evangelistas como lenda ou saga “etiológica”, com o objectivo de apresentar uma “justificação” (grego, “aitía”) para a existência do filho de Deus. […]. (KÜNG, 1997, p. 56, grifo nosso, a não ser o da antepenúltima linha, que é do original)

c) Edward Carpenter (1844-1929)

Vejamos o que ele diz sobre o tema:

Mas quase mais notável que a crença mundial nos salvadores é a lenda igualmente difundida de que eles nasceram de Mães-Virgens. Não há quase nenhum deus – como já tivemos a oportunidade de ver – que seja adorado como um benfeitor da humanidade nos quatro continentes, Europa, Ásia, África e América – que não tenha nascido de uma Virgem, ou, pelo menos, de uma mãe que atribuísse a concepção não a um pai humano, mas sim ao céu. E isso parece, à primeira vista, o mais surpreendente, porque acreditar em tal possibilidade é muito absurdo para nossa mente moderna. […]. (CARPENTER, 2008, p. 108, grifo nosso)

O mais interessante é que Carpenter também lista vinte e uma semelhanças da história de Jesus com histórias antigas de deuses; vejamos, sobre isso, o que ele diz:

A história de Jesus, como vemos, tem muita semelhança com as histórias dos antigos deuses Sol e com o percurso atual do Sol nos céus – tantas coincidências, que não podem ser atribuídas à mera coincidência ou até mesmo a blasfêmias do Demônio! Vamos enumerar algumas delas. Há (1) o nascimento da Virgem; (2) o nascimento na manjedoura (caverna ou câmera subterrânea); e (3) em 25 de dezembro (logo depois do Solstício de Inverno). Há (4) a Estrela do Leste (Sírio) e (5) a chegada dos magos (os “Três Reis”); há (6) o Massacre dos Inocentes, e o voo para um país distante (dito também de Krishna e outros deuses Sol). Há os festivais da Igreja de (7) Candelária (2 de fevereiro), com procissões das velas para simbolizar a luz crescente; há (8) a Quaresma, ou a chegada da primavera; há o (9) dia de Páscoa (normalmente em 25 de março) para celebrar a travessia do Equador pelo Sol; e (10) simultaneamente a explosão de luzes no Sepulcro Sagrado em Jerusalém. Há (11) a Crucificação e a Morte do carneiro-deus, na sexta-feira santa, três dias antes da Páscoa; há (12) a prisão feita com pregos em uma árvore, (13) o túmulo vazio, (14) a Ressurreição (nos casos de Osíris, Attis e outros); há (15) os doze discípulos (os signos do Zodíaco); e (16) a traição de um dos doze. Depois, há (17) o Dia do Meio do Verão, o dia 24 de junho, dedicado ao nascimento de João Batista, e correspondente ao dia de Natal; há as festas da (18) Assunção da Virgem (15 de agosto) e do (19) nascimento da Virgem (8 de setembro), correspondentes ao movimento do Sol por Virgem; há o conflito de Cristo e seus discípulos com os asterismos outonais, (20) a Serpente e o Escorpião; e finalmente há um fato curioso de que a Igreja (21) dedica o dia do Solstício de Inverno (quando qualquer um pode, naturalmente, duvidar do renascimento do Sol) a São Tomé, que duvidava que a Ressurreição fosse verdadeira! Algumas coincidências, mas não todas, estão em questão. Mas elas são suficientes, acredito eu, para provar – mesmo permitindo possíveis margens de erro – a verdade de nossa contenção geral. Entrar no paralelismo dos caminhos de Krishna, o deus Sol indiano, e Jesus demoraria muito tempo; porque, de fato, a semelhança é muito grande." Eu proponho, no entanto, ao final deste capítulo, que nos aprofundemos um pouco na festa cristã da Eucaristia, em parte por causa de sua relação com a derivação de rituais astronômicos e celebrações da Natureza já referidas, e em parte por causa da luz que a festa geralmente, seja ela cristã ou pagã, joga sobre as origens da Mágica Religiosa – um assunto que devo abordar no próximo capítulo. (CARPENTER, 2008, p. 35-36, grifo nosso)

d) Havery Spencer Lewis (1883-1939)

Em sua obra A vida mística de Jesus, ele afirma:

A Índia teve um grande número de Avatares ou Mensageiros Divinos, Encarnados por Concepção Divina, tendo dois deles levado o nome de “Chrishna”, ou “Chrishna o Salvador”. Consta que Chrishna nasceu de uma virgem casta chamada Devaki que, por sua pureza, fora escolhida para se tornar a mãe de Deus. Neste exemplo, encontramos a antiga história de uma virgem dando à luz um mensageiro de Deus divinamente concebido.

Buda foi considerado por todos os seus seguidores como gerado por Deus e nascido de uma virgem chamada Maya ou Maria. Nas antigas histórias sobre o nascimento do Buda, tais como são compreendidas por todos os orientais e como são encontradas em seus escritos sagrados muito anteriores à Era Cristã, vemos como o poder Divino, chamado o Espírito Santo, desceu sobre a virgem Maya. Na antiga versão chinesa dessa história, o Espírito Santo é chamado Shing-Shin.

Os siameses tinham igualmente um deus e salvador nascido de uma virgem e que eles chamaram Codom. Nesta velha história, a bela e jovem virgem fora informada com antecedência de que se tornaria mãe de um grande mensageiro de Deus e, um dia, enquanto fazia seu período usual de meditação, concebeu através de raios de sol de natureza Divina. O menino nasceu e cresceu de maneira singular e notável, tornou-se um protegido da sabedoria e fez milagres.

Quando os primeiros europeus visitaram o Cabo Comorim, na extremidade sul da península do Industão, surpreenderam-se ao encontrar os naturais do lugar, que nunca haviam tido contato com as raças brancas, cultuando um Senhor e Salvador que fora divinamente concebido e nascera de uma virgem.

E quando os primeiros missionários jesuítas visitaram a China, escreveram em seus relatórios que haviam ficado consternados por encontrarem na religião pagã daquela terra a história de um mestre redentor que nascera de uma virgem por concepção divina. Ao que consta, esse deus havia nascido 3468 anos a.C. Lao-Tse, o famoso deus chinês, também nascera de uma virgem, de pele negra, sendo descrita como a bela e maravilhosa como o jaspe.

No Egito, bem antes do advento do cristianismo e muito antes do nascimento dos autores da Bíblia ou de qualquer doutrina concebida como cristã, o povo egípcio já tivera vários mensageiros de Deus nascidos de virgens por Concepção Divina. Hórus, segundo o sabiam todos os antigos egípcios, havia nascido da virgem Ísis, sendo sua Concepção e seu nascimento um dos três grandes mistérios ou doutrinas místicas da religião egípcia. Para eles, todos os incidentes ligados à Concepção e ao nascimento de Hórus eram pintados, esculpidos, adorados e cultuados como o são os incidentes da Concepção e do nascimento de Jesus pelos cristãos de hoje. Outro deus egípcio, Ra, nascera de uma virgem. Examinei uma das paredes de um antigo templo na margem do Nilo, onde há um belo quadro esculpido representando o deus Toto mensageiro de Deus – dizendo à jovem Rainha Mautmes que daria à luz um Divino Filho de Deus, que seria o rei e Redentor de seu povo.

Ao nos voltarmos para a Pérsia descobrimos que Zoroastro foi o primeiro dos redentores do mundo a ser aceito como nascido em plena inocência, pela concepção de uma virgem. Antigos entalhes e pinturas deste grande mensageiro mostram-no cercado por uma aura de luz que inundava o humilde local de seu nascimento. Ciro, rei da Pérsia, também era tido como nascido de origem divina, e nos registros de seu tempo ele é chamado de Cristo ou Filho ungido de Deus e considerado mensageiro de Deus. (LEWIS, 2001, p. 74-76, grifo nosso)

e) Geza Vermes (1924- )

Em seu livro Natividade, também trata da concepção virginal e da suposta profecia de Isaías; leiamos:

A concepção virginal em Mateus e a profecia de Isaías

Até aqui, Mateus contou uma história desconcertante. A não ser pela alusão a algum tipo de envolvimento do Espírito Santo, uma expressão para designar o poder através do qual Deus age no mundo, o anjo do sonho não esclarece como Maria engravidou. O evangelista então intervém e lança uma nova luz sobre a questão valendo-se de uma profecia do Antigo Testamento, segundo a qual uma virgem virá a dar à luz o Salvador do povo judeu. Na versão do Evangelho para as palavras de Isaías, diz a profecia: “Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um filho que se chamará Emanuel, que significa 'Deus conosco'” (Isaías 7,14, em Mt 1,23).

Este é o primeiro texto bíblico apresentado como prova por Mateus em sua narrativa da infância. Em Lucas não há nenhum. Mas esse testemunho profético, cujo objetivo é anunciar uma gravidez milagrosa ou concepção virginal, só é eficaz sob uma condição: ele funciona apenas se for seguida a versão da Septuaginta grega para Isaías 7,14, destinada a um público grecófono e interpretada como os leitores gregos o entenderiam. Como se sabe, a forma que subsistiu do Evangelho de Mateus é a grega e, como tal, seu alvo era obviamente um público grego. Contudo, o público original para o qual a tradição da narrativa do nascimento de Jesus foi desenvolvida era de judeus palestinos e o idioma em que foi inicialmente transmitida seria o aramaico ou, possivelmente, o hebraico, não o grego. Também é evidente que para esses palestinos, em sua maioria judeus da Galileia, o texto de Isaías teria sido extraído da Bíblia hebraica, não da Septuaginta grega.

O que nos deixa em um verdadeiro dilema. Para aludir à mulher que virá a conceber e dar à luz um filho, Isaías 7,14 em hebraico não se refere a uma virgem, ou betulah em hebraico, mas a uma 'almah, isto é, “uma jovem mulher”: termo neutro que não implica necessariamente virgindade. Por exemplo, no Cântico dos Cânticos 6,8 o termo “jovens mulheres” ('alamot) aparece em paralelo com “rainhas e concubinas”, que seguramente não são virgens. Ademais, é muito improvável que a 'almah mencionada em Isaías 7, a jovem que no futuro próximo há de conceber e dar à luz um filho, seja virgem. O contexto sugere que ela já é casada, e esposa do então rei judeu, Acaz, ao fim do século VIII a.C.

Quando fala em 'almah, o texto hebraico de Isaías em lugar algum especifica que ela ainda é virgem ou que está prevista uma concepção milagrosa de qualquer tipo. O sinal profético em Isaías 7,14, em hebraico, está não na condição virginal da mãe, mas no significado do nome que ela deverá dar a seu filho – “Emanuel” – sugerindo que o futuro príncipe, em conformidade com o bom augúrio expresso no nome, “Deus conosco”' trará proteção divina aos habitantes de Jerusalém, naquela época sob ameaça de dois reis inimigos que sitiavam a cidade (ver Isaías 7,16). Considerando tudo isso, a conclusão a que se chega é que o relato semita subjacente à versão grega de Mateus que conhecemos de forma alguma poderia conter uma previsão da concepção virginal do Messias.

Como então esta noção entrou no Evangelho da Infância, de Mateus? Por puro acidente, o tradutor da Septuaginta usou para o termo hebraico 'almah de Isaías 7,14 a palavra grega parthenos (virgem), que, no entanto, pode também significar solteira ou mulher não-casada que não seja necessariamente virgem. O Mateus “grego” ou o editor grego do Mateus semita topou com essa tradução imprecisa e a adotou. Esse feliz achado permitiu-lhe apresentar a seus leitores de fala grega a concepção de Jesus como única e situada em posição muito superior a todas as outras concepções milagrosas do Antigo Testamento.

Existe uma prova incontestável de que uma proporção substancial do público visado pelo texto final de Mateus era composta por gregos, que não tinham conhecimento do hebraico. Em Mateus 1,23, o nome hebraico “Emanuel” na citação de Isaías é apresentado com uma tradução para explicar seu significado: “Deus conosco”. Como se sabe, o original hebraico de Isaías não inclui tal interpretação e, o que é mais importante, ela também não consta da tradução grega da Septuaginta. Os judeus da diáspora, para quem a Septuaginta foi produzida, supostamente deveriam saber o que significava Emanuel. O comentário grego a essa citação em Mateus - “que significa Deus conosco” - é obviamente criação do próprio evangelista, para auxiliar seus leitores gregos não-judeus. Assim, aplicada a Maria, a profecia de Isaías em sua versão grega destinava-se a transmitir ao público grego da narrativa materna da infância que “Jesus-Emanuel” ou “o Messias-Filho de Deus” seria concebido através do Espírito Santo e milagrosamente gerado por Maria na condição de virgem.

O Mateus grego, consequentemente, afirma que a concepção virginal é demonstrada pela citação de Isaías. No entanto, o argumento do evangelista está invertido. Ele quer que seu leitor entenda que o evento representa o cumprimento da profecia; em outras palavras, que a concepção de Jesus por Maria ocorreu porque, de acordo com Isaías, assim estava predestinada por Deus. A verdade é bem o contrário: a ideia da “parthenos que concebe”, fornecida pela profecia, é que motivou a história. Foi o texto grego de Isaías 7,14 que proporcionou a Mateus uma fórmula surpreendente para exprimir o caráter milagroso do nascimento de Jesus, como o cumprimento de uma previsão das escrituras.

Repetindo pela última vez, a concepção virginal é uma extrapolação das palavras da Septuaginta, fazendo uso de material histórico, apresentada a, e compreendida por, leitores cristãos gentios helenistas do Evangelho de Mateus. A história do nascimento de Jesus, contada em aramaico ou hebraico e citando Isaías em hebraico, jamais poderia ter dado origem a tal interpretação. Mas em grego, em combinação com a exegese literal do nome “Emanuel = Deus conosco”' tornou-se a fonte da qual surgiu o conceito do Filho divino de mãe virgem. É preciso reiterar, mesmo que seja ad nauseam, que tal evolução somente foi possível em um meio cultural helenístico grecófono. Os antecedentes ideológicos da mitologia greco-romana e as lendas sobre a origem divina de figuras eminentes da época e de um passado recente (ver Capítulo 4) propiciaram um campo fértil para o crescimento do que viria a ser, no jargão teológico cristão, a Cristologia. Com o tempo, através de Paulo, de João e dos filosofantes Padres da Igreja gregos, essa ideia original evoluiu para a deificação de Jesus, Filho da Virgem grávida de Deus (Theotokos).

Também é possível contestar que a ideia da concepção virginal inferida no texto de Mateus, com seu uso da versão da Septuaginta para Isaías, era de origem cristã-gentia helenística, pela posição adotada pelo antigo cristianismo judaico sobre o assunto. Facetas importantes da doutrina desses cristãos-judeus, conhecidos como os ebionitas ou os Pobres, foram preservadas nos escritos dos apologistas da Igreja, que procuravam refutá-las. Sob a denominação de ebionitas, devemos entender comunidades cristãs-judaicas que, após sua separação da Igreja cristã-gentia central, provavelmente na virada do século I d.C., sobreviveram ainda por mais duzentos ou trezentos anos. Através do Padre da Igreja Irineu, do fim do século II, que foi bispo de Lião, e do historiador da Igreja Eusébio de Cesareia, do século IV, sabemos que os ebionitas rejeitavam a doutrina do nascimento virgem. Eusébio deixa claro que, para eles, Jesus era “o filho de uma união normal entre um homem e Maria” (História Eclesiástica 3,27). Irineu anteriormente havia argumentado, usando frases emprestadas do Novo Testamento, que os ebionitas “se recusavam a entender que o Espírito Santo havia vindo a Maria e que o poder do Altíssimo a havia envolvido com sua sombra” (Contra as Heresias, 5,1, 3). Ele explicava ainda que a fim de sustentar seus ensinamentos e “puxar o tapete” da ortodoxia cristã, os ebionitas defendiam a versão grega de Teodósio e Aquila como mais correta do que a Septuaginta, e substituíram o parthenos (virgem) desta última pelo termo neanis (jovem mulher) em sua tradução de Isaías 7,14 (ibid. 3,21, 1). Na opinião deles, a prova de que a Septuaginta não era confiável representava o fim da doutrina de Mateus e da Igreja cristã a respeito de concepção virginal.

Com efeito, a 'almah do Isaías hebraico e o correspondente neanis de Áquila e Teodósio revelam a fragilidade da ideia do nascimento virgem, conforme concebida pelo Mateus grego. Sua adoção pelo evangelista (ou por seu editor final) tornou inevitável a revisão da formulação direta da genealogia (A gerou B etc.), com vistas a excluir a paternidade de José; e tem também o efeito imprevisto de prejudicar a prova montada para autenticar a legitimidade de Jesus como Messias descendente direto de Davi, através de José. (VERMES, 2007, p. 74-79, grifo nosso).

Sendo a maioria desses povos, mencionados por estes vários autores, bem mais antiga que os judeus, não há como não se levar em conta que suas culturas foram incorporadas no cristianismo nascente, embora muitos piedosos fiéis neguem isso, certamente, pelo desconforto que traz àquilo que têm como verdade.

Os cristãos apoiam-se, principalmente, na seguinte passagem bíblica para justificar a virgindade de Maria:

Mateus 1,18-25: “A origem de Jesus, o Messias, foi assim: Maria, sua mãe, estava prometida em casamento a José, e, antes de viverem juntos, ela ficou grávida pela ação do Espírito Santo. José, seu marido, era justo. Não queria denunciar Maria, e pensava em deixá-la, sem ninguém saber. Enquanto José pensava nisso, o Anjo do Senhor lhe apareceu em sonho, e disse: 'José, filho de Davi, não tenha medo de receber Maria como esposa, porque ela concebeu pela ação do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, e você lhe dará o nome de Jesus, pois ele vai salvar o seu povo dos seus pecados'. Tudo isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta: 'Vejam: a virgem conceberá, e dará à luz um filho. Ele será chamado pelo nome de Emanuel, que quer dizer: Deus está conosco'. Quando acordou, José fez conforme o Anjo do Senhor havia mandado: levou Maria para casa, e, sem ter relações com ela, Maria deu à luz um filho. E José deu a ele o nome de Jesus”.

Vejamos antes de nossas considerações o que, em A dinastia de Jesus: a história secreta das origens do cristianismo, o autor James D. Tabor (1946-) explica a respeito da virgindade de Maria:

[…] O ensinamento sobre a “virgindade perpétua” simplesmente não é encontrado no Novo Testamento e não faz parte dos primeiros credos cristãos. A primeira menção oficial a essa ideia só vem a partir de 374 d.C., com o teólogo cristão Epifânio. (3) A maior parte dos escritos cristãos primitivos anteriores ao século IV d.C. aceita naturalmente que os irmãos e irmãs de Jesus sejam filhos nascidos de José e Maria (4).
_______
(3) A ideia da virgindade perpétua de Maria foi afirmada no 2º Concílio de Constantinopla, em 553 d.C. e no Concílio de Latrão, em 649. Embora seja uma parte do dogma católico solidamente estabelecida, nunca foi, no entanto, objeto de uma declaração de infalibilidade pela Igreja Católica Romana.

(4) Essa é a chamada visão elvídica, em homenagem a Elvídio, um escritor cristão do século IV, que Jerônimo procura refutar. Eusébio, o historiador da igreja do século IV, cita regularmente fontes antigas e refere-se a irmãos de Jesus “segundo a carne”, certamente concebendo-os como filhos de Maria e José. Consulte Eusébio, Churc History 2.23;3.19.
(TABOR, 2006, p. 90, grifo nosso)

Três pontos importantes podemos ressaltar em Tabor: 1º) que a virgindade perpétua de Maria não é encontrada no Novo Testamento; 2º) que os escritos cristãos primitivos anteriores ao século IV, aceitavam que Jesus tivesse outros irmãos; e 3º) que essa ideia constitui um dogma, cuja imposição se deu a partir de Concílios, iniciando-se, esse processo, no ano de 553.

A menção de se cumprir uma profecia é uma tentativa de se relacionar Jesus ao Antigo Testamento. Aqui se trata de uma suposta profecia de Isaías, cujo teor é:

Isaías 7,14: “Pois saibam que Javé lhes dará um sinal: A jovem concebeu e dará à luz um filho, e o chamará pelo nome de Emanuel”.

O grande problema é que esse passo de Isaías não é exatamente uma profecia, mas um fato acontecido em seu tempo. Para melhor compreendê-lo é necessário transcrevermos alguns versículos anteriores, iniciando pelo 10:

Isaías 7,10-13: Javé falou de novo a Acaz, dizendo: 'Pede para você um sinal a Javé seu Deus, nas profundezas da mansão dos mortos ou na sublimidade das alturas'. Acaz respondeu: 'Não vou pedir! Não vou tentar a Javé!' Disse-lhe Javé: 'Escute, herdeiro de Davi, será que não basta a vocês cansarem a paciência dos homens? Precisam cansar também a paciência do próprio Deus?'”

Dentro do contexto, o que vemos é que o sinal que Deus promete é ao rei Acaz, cuja mulher, uma jovem, estava grávida; o que corroboramos com:

O reino do Norte (Efraim), cujo rei era Faceia, se aliou a Rason, rei de Aram, numa tentativa de se libertar do perigo assírio. Como o reino do Sul (Judá) não participou da coalizão entre o reino do Norte e Aram, estes dois temeram que Judá se tornasse aliado da Assíria; resolveram então atacar o reino do Sul, para destronar o rei Acaz e colocar no seu lugar o filho de Tabeel, rei de Tiro. Acaz teme o cerco e verifica a reserva de água da cidade. Isaías vai ao seu encontro e o tranquiliza, mostrando que não haverá perigo, pois continua válida a promessa de que a dinastia de Davi será perene, desde que se coloque total confiança em Javé. O sinal prometido a Acaz é o seu próprio filho, do qual a rainha (a jovem) está grávida. Esse menino que está para nascer é o sinal de que Deus permanece no meio do seu povo (Emanuel = Deus conosco) (Bíblia Sagrada Pastoral, p. 954-955, grifo nosso).

Então concluímos que, pelo contexto bíblico e confirmado por essa explicação, se percebe que Deus, na realidade, promete um sinal ao rei Acaz, sinal esse que nada mais é que o filho por nascer do rei.

Na suposta profecia de Isaías está dito que a criança teria o nome de Emmanuel (=Deus está conosco), porém, o nome que foi dado ao filho de Maria foi Jesus, que significa “Deus é salvação”, o que não é a mesma coisa.

A explicação, no Dicionário Bíblico Universal, para o verbete Emanuel é:

É o nome dado por Isaías a uma futura criança cujo nascimento será, para o rei Acaz, o “sinal” da assistência divina (Is 7,14-17). A interpretação deste oráculo deve estar ligada ao significado do nome e ao alcance que terá na conjuntura daquele momento. O reino de Judá é ameaçado pelos sírios e efraimitas aliados, que querem acertar contas com a dinastia reinante, a mesma dinastia que se beneficia das promessas feitas a Davi. Em vez de recorrer a essas promessas, Acaz apela para a Assíria. Isaías condena este modo de agir e proclama: Deus está presente; ele está “conosco”.

Qual será a criança cujo nascimento será portador de uma mensagem como esta? Como é ao rei, contemporâneo de Isaías, que o sinal será dado, o nascimento anunciado deve ocorrer proximamente. Será Ezequias – afirma-se muitas vezes, e com boas razões. Mas esta criança é descrita numa linguagem poético-mítica, concretamente irrealizável. O oráculo abre portanto uma perspectiva que vai além do rei em questão. Graças a este oráculo, os crentes, insatisfeitos com os reis históricos, esperarão por uma personagem que finalmente satisfará a esperança deles. Mateus e os cristãos posteriores a ele reconhecem em Jesus aquele que realiza plenamente o anúncio de Isaías (Mt 1,23)(Dicionário Bíblico Universal, 1996, p. 226, grifo nosso).

Confirma-se, portanto, que a suposta profecia não se refere mesmo a Jesus, o que fica bem claro nessa explicação acima.

Há ainda um outro problema: é quanto ao significado da palavra almah usada em Isaías. Para os tradutores da Bíblia de Jerusalém “O termo hebraico 'almah' designa, quer a donzela, quer uma jovem casada recentemente, sem explicitar mais” (Bíblia de Jerusalém, p. 1265). Vários estudiosos confirmam isso, entre eles, citamos: Barrera, Rodríguez, Tabor, Armstrong, Harris e Pastorino, cujas obras faremos constar na referência bibliográfica, para possível comprovação de alguém que nos for ler.

Ademais, se Jesus foi concebido por obra do “Espírito Santo”, então Ele não é filho de Davi, pois a descendência biológica naquele tempo é que poderia dar esse status; consequentemente, Jesus não seria o Messias, anunciado e esperado pelo povo judeu.

Na Codificação tem-se algo?

Allan Kardec (1804-1869) não tratou especificamente do assunto, já que sua preocupação principal foi o ensino moral de Jesus, que se depreende dos Evangelhos. Entretanto, em duas de suas obras, ele menciona os irmãos de Jesus.

Em O Evangelho Segundo o Espiritismo, no cap. XIV, intitulado Honrar pai e mãe, discorrendo sobre a fala de Jesus “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?”, diz:

Causa admiração, e com fundamento, que, neste passo, mostrasse Jesus tanta indiferença para com seus parentes e, de certo modo, renegasse sua mãe. Pelo que concerne a seus irmãos, sabe-se que não o estimavam. Espíritos pouco adiantados, não lhe compreendiam a missão: tinham por excêntrico o seu proceder e seus ensinamentos não os tocavam, tanto que nenhum deles o seguiu como discípulo. Dir-se-ia mesmo que partilhavam, até certo ponto, das prevenções de seus inimigos. O que é fato, em suma, é que o acolhiam mais como um estranho do que como um irmão, quando aparecia à família. S. João diz, positivamente (cap. VII, v. 5), “que eles não lhe davam crédito”.

[…].

A hostilidade que lhe moviam seus irmãos se acha claramente expressa em a narração de São Marcos, que diz terem eles o propósito de se apoderarem do Mestre, sob o pretexto de que este perdera o espírito. Informado da chegada deles, conhecendo os sentimentos que nutriam a seu respeito, era natural que Jesus dissesse, referindo-se a seus discípulos, do ponto de vista espiritual: “Eis aqui meus verdadeiros irmãos.” Embora na companhia daqueles estives declarar que sua mãe segundo o corpo nada lhe era como Espírito, que só indiferença lhe merecia. Provou suficientemente o contrário em várias outras circunstâncias (KARDEC, 2007c, p. 251-253, grifo nosso).

Em A Gênese, cap. XVII – Predições do Evangelho, lê-se o seguinte comentário:

Pode-se fazer ideia dos sentimentos que para com ele nutriam os que lhe eram aparentados, pelo fato de que seus próprios irmãos, acompanhados de sua mãe, foram a uma reunião onde ele se encontrava, para dele se apoderarem, dizendo que perdera o juízo. (S. Marcos, cap. III, vv. 20, 21 e 31 a 35. – O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XIV.) (KARDEC, 2007e, p. 424, grifo nosso).

Ao que nos parece, diante da forma com que Kardec fala dos irmãos de Jesus, ele aceitava tranquilamente este fato, sem maiores questionamentos; certamente, por achar algo natural, o que se pode depreender dessa outra sua fala:

A estada de Jesus na Terra apresenta dois períodos: o que precedeu e o que se seguiu à sua morte. No primeiro, desde o momento da concepção até o nascimento, tudo se passa, pelo que respeita à sua mãe, como nas condições ordinárias da vida. […] (KARDEC, 2007e, p. 401, grifo nosso).

Portanto, Kardec, segundo acreditava, não tinha o nascimento de Jesus como algo sobrenatural, pois Maria passou por todo o longo processo de gravidez e parto como ocorre com toda mulher encarnada na Terra; e até mesmo, pelo que deduzimos de suas falas, a possibilidade de ter outros filhos ele não a contestava, já que isso estaria “nas condições ordinárias da vida”.


Textos bíblicos

Mateus 12,46-50: “Jesus ainda estava falando às multidões. Sua mãe e seus irmãos ficaram do lado de fora, procurando falar com ele. Alguém disse a Jesus: 'Olha! Tua mãe e teus irmãos estão aí fora, e querem falar contigo'. Jesus perguntou àquele que tinha falado: 'Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?' E, estendendo a mão para os discípulos, Jesus disse: 'Aqui estão minha mãe e meus irmãos, pois todo aquele que faz a vontade do meu Pai que está no céu, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe'(ver tb Mc 3,31-32).

Mateus 13,53-57: “Quando Jesus terminou de contar essas parábolas, saiu desse lugar, e voltou para a sua terra. Ensinava as pessoas na sinagoga, de modo que ficavam admiradas. Diziam: 'De onde vêm essa sabedoria e esses milagres? Esse homem não é o filho do carpinteiro? Sua mãe não se chama Maria, e seus irmãos não são Tiago, José, Simão e Judas? E suas irmãs, não moram conosco? Então, de onde vem tudo isso?' E ficaram escandalizados por causa de Jesus. Mas Jesus disse: 'Um profeta só não é estimado em sua própria pátria e em sua família'. E Jesus não fez muitos milagres aí, por causa da falta de fé deles(ver Mc 6,1-3 e também Lc 8,19-21, que não cita as irmãs).

João 2,1-12: “No terceiro dia, houve uma festa de casamento em Caná da Galileia, e a mãe de Jesus estava aí. Jesus também tinha sido convidado para essa festa de casamento, junto com seus discípulos. […] Foi assim, em Caná da Galileia, que Jesus começou seus sinais. Ele manifestou a sua glória, e seus discípulos acreditaram nele. Depois disso, Jesus desceu para Cafarnaum com sua mãe, seus irmãos e seus discípulos. E aí ficaram apenas alguns dias”.

João 7,1-5: “[…] a festa judaica das Tendas estava próxima. Então os irmãos de Jesus lhe disseram: 'Tu deves sair daqui e ir para a Judeia, para que também teus discípulos possam ver as obras que fazes. Quem quer ter fama não faz nada às escondidas. Se fazes essas obras, mostra-te ao mundo”. Na verdade, nem mesmo os irmãos de Jesus acreditavam nele”.

Atos 1,12-14: “Os apóstolos voltaram para Jerusalém, pois se encontravam no chamado monte das Oliveiras, não muito longe de Jerusalém: uma caminhada de sábado. Entraram na cidade e subiram para a sala de cima, onde costumavam hospedar-se. Aí estavam Pedro e João, Tiago e André, Filipe e Tomé, Bartolomeu e Mateus, Tiago, filho de Alfeu, Simão Zelota e Judas, filho de Tiago. Todos eles tinham os mesmos sentimentos e eram assíduos na oração, junto com algumas mulheres, entre as quais Maria, mãe de Jesus, e com os irmãos de Jesus”.

1Coríntios 9,5: “Ou não temos direito de levar conosco nas viagens uma mulher cristã, como fazem os outros apóstolos e os irmãos do Senhor, e Pedro?”.

Gálatas 1,18-19: “Três anos mais tarde, fui a Jerusalém para conhecer Pedro, e fiquei com ele quinze dias. Entretanto, não vi nenhum outro apóstolo, a não ser Tiago, o irmão do Senhor”.

Observar que, nos três primeiros passos, a menção a Maria e aos irmãos de Jesus só pode se relacionar à sua própria família, pois não há razão alguma de Maria andar com os “primos” de Jesus, que não temos notícia que de, caso eles tenham mesmo existido, morassem com ela e não com a sua própria mãe. Então, o argumento de que “irmãos” significa “primos”, não têm razão de ser; tentam apenas, com isso, demonstrar que Jesus foi filho único. Sobre essa questão de “irmão” significar “primo” abordaremos um pouco mais à frente.

O passo Mateus 13,52-57 é ainda mais claro, porquanto, além da referência a Maria mencionam que Jesus era filho do carpinteiro. Ora, essas observações sendo ditas pelos que moravam na nesta cidade demonstram que eles, por serem concidadãos de Jesus, o conheciam bem e a toda a sua família.

Algumas pessoas justificam que Jesus não teve irmãos pelo fato dEle ter dito a João, supondo-o o “discípulo que ele amava(João 19,26), “Eis a sua mãe”. (João 19,27) e a Maria “Mulher, eis aí o seu filho”. (João 19,26), por esperarem que isso fosse dito a irmãos, caso Ele os tivessem. É exatamente essa a colocação de Huberto Rohden (1893-1981): “Se os tais irmãos de Jesus tivessem sido filhos de Maria, não se compreende por que Jesus, ao morrer, tenha entregue sua mãe aos cuidados de seu discípulo João; não se teriam esses filhos interessado por sua mãe? (ROHDEN, 4ª ed. s/d, p. 120). Embora reconheçamos no autor capacidade intelectual, milhares de vezes, acima da nossa, não vemos nisso um bom argumento, porquanto, o próprio Evangelho de João nos dá notícia que os irmãos de Jesus não acreditavam nele (João 7,5) e além disso o fato dEle ter sido crucificado poderia também ser outra causa de seus irmãos não estarem ao pé da cruz, certamente, tomados do medo de que destino semelhante lhes acontecessem. Se os próprios discípulos, ou seja, os que acreditavam em Jesus, o abandonaram, como esperar que seus irmãos que “não morriam de amores por Ele” manifestassem solidariedade ao Crucificado?

Ademais ainda temos uma outra razão para acreditar que, de fato, Jesus teve irmãos, que deixamos para citar agora o passo onde ela se encontra, visando destacá-la. Leiamos:

Lucas 2,4-7: “José era da família e descendência de Davi. Subiu da cidade de Nazaré, na Galileia, até a cidade de Davi, chamada Belém, na Judeia, para registrar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida. Enquanto estavam em Belém, se completaram os dias para o parto, e Maria deu à luz o seu filho primogênito. Ela o enfaixou, e o colocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles dentro da casa”.

Se, de fato, Lucas agiu como diz no início do Evangelho que “[…] após fazer um estudo cuidadoso de tudo o que aconteceu desde o princípio, também eu decidi escrever para você uma narração bem-ordenada, excelentíssimo Teófilo” (Lucas 1,3), a designação de Jesus como “filho primogênito” de Maria só pode ser por considerá-lo o “primeiro filho”, já que o relato foi feito tempos depois do nascimento de Jesus e até mesmo de Sua morte, quando já se poderia saber quantos faziam parte de sua família.

Em se pesquisando na Bíblia o termo “primogênito” encontramos 76 ocorrências no A.T e 7 no N.T, não há um deles sequer que tenha outro sentido que não o de “primeiro filho”. Por outro lado, se Jesus fosse filho único, então deveria ter sido empregado o termo “unigênito”; aliás termo que só aparece no N.T. e por apenas seis vezes; porém, não é empregado para estabelecer Sua relação com a família, mas tão somente a de colocá-lo como sendo o filho unigênito de Deus, como se ele fosse o filho único e nenhum outro mais existisse. Mas em relação a Deus e não no sentido de família carnal.

Ademais por achar bem estranho que somente Lucas tenha qualificado Jesus como “primogênito”, aprofundamos a pesquisa e descobrimos que também Mateus usa o termo (Mateus 1,25); entretanto isso vai depender da tradução que tenhamos em mãos. Vejamos estes dados:

MATEUS 1,25
Traduções bíblicas
Teor
Bíblia de Jerusalém “Mas não a conheceu até o dia em que ela deu à luz um filho. E ele o chamou com o nome de Jesus”.
Paulinas 1957; SBB, SBTB, Barsa “E não a conhecia, até que deu à luz seu filho primogênito; e pôs-lhe e nome de Jesus”.
Paulinas 1977 e 1980 “Não a conheceu até que deu à luz um filho, e pôs- lhe o nome de Jesus”.


Explica-nos o exegeta Russell Norman Champlin (1933- ):

“PRIMOGÊNITO” aparece em CDEKLMSUV, Gama, Delta, Fam PI (nas traduções KJ AC F M). A palavra é omitida em Aleph, B, Z, 1, 33a (vid), b, c, sah, cop, si e o pai Amb. Os melhores e mais antigos mss, juntamente com algumas traduções egípcias, latinas e siríacas, omitem “primogênito” aqui. A palavra foi tomada de empréstimo de Lucas 2:7 (onde é autêntica), por alguns escribas. Todas as traduções usadas para comparação, neste comentário, em número de catorze (nove em inglês e cinco em português), omitem-na em Mateus. Ex., KJ AC F M. (CHAMPLIN, 2005a, p. 277, grifo nosso).

Então, temos que Jesus foi o primogênito de Maria, o que nos faz concluir que Ele foi o primeiro a nascer dos filhos e filhas de Maria e José.

Como os tradutores bíblicos católicos e protestantes explicam

Aqui, perceber-se-á quase que uma “acirrada guerra”; os católicos defendendo que Maria jamais teve outros filhos e os protestantes contra-atacam dizendo que os teve, sim.

a) católicos

1. Dicionário Barsa (ao final da obra):

Irmãos. Propriamente indica o parentesco entre os filhos do mesmo pai e mesma mãe. Na Bíblia, algumas vezes, é aplicado o termo aos filhos do mesmo pai mas de mães diferentes, ou da mesma mãe de pais diferentes. No Gen 42,15 Benjamin é chamado irmão de Ruben e dos outros filhos de Jacó, embora tenha mãe diferentes, ao menos da de alguns deles. O termo é usado, na Bíblia, também para parentes mais distantes que os meios-irmãos, como sobrinhos, tios e primos de vários graus de parentesco (Gen 14,14; Lev 10,4; I Par 9,6). Até mesmo os membros duma mesma tribo são, algumas vezes, chamados de irmãos (2Sam 19,12; I Par 12,2), ou membros duma mesma nação (Gen 16,12; Ex 2,11; Dt 2,4.8). O termo é também aplicado aos amigos ou de algum modo associados (Jos 14,8; I Sm 30,23; 2 Sam 1,26; Am 1,9; etc.). Finalmente, por causa da descendência de todos os homens de Adão e Eva, qualquer homem pode chamar a outro de irmão (Gen 9,5; Mt 5,22; 7,3; Hebr 2,11).

No Novo Testamento, há referências aos “irmãos do Senhor” (Mc 3,31; Jo 2,12; 1 Cor 9,5; etc.). À luz do constante ensinamento da Igreja, Nossa Senhora permaneceu sempre virgem e, de fato, Cristo não teve pai carnal donde se conclui que essa expressão não indica que essas pessoas chamadas de “irmãos do Senhor” tivessem com Cristo, o mesmo pai e a mesma mãe. Diante de tantos exemplos citados acima (e de muitos outros), é claro que a palavra irmãos é empregada no seu significado mais amplo. Deste modo, esses “irmãos do Senhor” eram primos ou mesmo alguns parentes mais distantes de Nosso Senhor (Dicionário Barsa, p. 137, grifo nosso).

2. Bíblia Vozes:

Mt 12,46-50: Em hebraico o termo “irmão” (ah) podia indicar qualquer parentesco, inclusive primo e sobrinho. As palavras de Jesus sobre a nova fraternidade servem para o evangelista concluir a secção […]. (Bíblia Vozes, p. 1192, grifo nosso).

3. Bíblia de Jerusalém:

Mt 12,46: Há diversas menções de “irmãos” (e “irmãs”) de Jesus (13,44; Jo 7,3; At 1,14); 1Cor 9,5; Gl 1,19). Embora tendo o sentido primeiro de “irmão de sangue”, a palavra grega usada (adelphos), assim como a palavra correspondente em hebraico e aramaico, pode designar relações de parentesco mais amplas (cf. Gn 13,8; 29,15; Lv 10,4), e principalmente um primo-irmão (1Cr 23,22). O grego possui outro termo para “primo” anèpsios, ver Cl 4,10, único emprego deste termo no NT. Mas o livro de Tobias atesta que ambas as palavras podem ser indiferentemente usadas para falar da mesma pessoa: cf. 7,2 “nosso irmão Tobit” (adelphos ou anèpsios conforme os manuscritos. Desde os Padres da Igreja, a interpretação predominante viu nesses “irmãos” de Jesus “primos”, de acordo com a crença na virgindade perpétua de Maria. Além disso, isto concorda com Jo 19,26-27 o qual deixa supor que, na morte de Jesus, Maria estava sozinha(Bíblia de Jerusalém, p. 1726, grifo nosso).

Não filhos de Maria, mas parentes próximos, por exemplo, primos, que o hebraico e o aramaico também chamavam de “irmãos” (Cf. Gn 13,8; 14,16; 29,15; Lv 10,4; ICr 23,22s). Veja também Mt 13,55p; Jo 7,3s; At 1,14; 1Cor 9,5; Gl 1,19. (Bíblia de Jerusalém, p. 1862, grifo nosso).

b) protestantes

1. Dicionário da Bíblia Almeida

IRMÃOS DE JESUS: Os irmãos de Jesus por parte de mãe, filhos de José e Maria (Mt 13.55-56). Eles passaram a crer em Jesus depois de sua ascensão (Jo 7.1-5; At 1.14). (KASCHER e ZIMMER, 1999, p. 169, grifo nosso).

2. Dicionário Bíblico Universal – Buckland

IRMÃOS DO SENHOR. Aqueles de quem se fala em Mt 12.36 e 13.55, e outros lugares, como irmãos de Jesus, seriam os filhos de José e Maria? Segundo uma opinião que vem do segundo século pelo menos esses “irmãos de Jesus” era filhos de um primeiro matrimônio de José. Mais tarde foram, por alguns críticos, considerados primos do nosso Salvador. Podem, contudo, ter sido filho de José e Maria. Em todas as passagens, menos uma, em que esses irmãos de Jesus são mencionados nos Evangelhos, acham-se associados com Maria. Se era eles filhos mais velhos de José, não seria então Jesus o herdeiro do trono de Davi, segundo as nossas noções de primogenitura: Eles não acreditavam em Jesus no princípio de Sua missão, e até, segundo parece (Jo 7.5), depois que os apóstolos foram escolhidos; e por essa eles não puderam ser do número dos Doze, dos quais, na verdade, eles particularmente se distinguem, quando num período posterior são vistos na companhia deles (At 1.14). Não devem, portanto, ser confundidos com os filhos de Alfeu, embora tenham os mesmos nomes. (V. Tiago, Epístola de). Além disso, as palavras “filho” e “mãe”, sendo empregadas nesta passagem (Mt 13,44) no seu natural e principal sentido, semelhantemente devem ser tomados os nomes “irmão” e “irmã”, pelo menos, até ao ponto de excluir o termo “primo”. O fato de terem os filhos de Alfeu, bem como os irmãos do Senhor, os nomes de Tiago, José, e Judas, nada prova, visto que esses nomes eram muito vulgares nas famílias judaicas. Estranha-se que não fossem lembrados estes irmãos, quando Jesus confiou a sua mãe ao cuidado de João; mas isso explica-se pela razão de que a esse tempo ainda eles não criam Nele. A conversão deles parece ter sido quando se realizou a aparição de Jesus a Tiago, depois da Sua ressurreição (1Co 15.7) (BUCKLAND e WILLIAMS, 1999, p. 199-200, grifo nosso).

3. Bíblia Shedd

Mt 12.46-50: Jesus tinha quatro irmãos (mencionados pelo nome em Mc 6,3), além de um número de irmãs não especificadas. Sem base histórica, já tem sido negado serem, estes, filhos de José e Maria. As alternativas apresentadas são: estes poderiam ser primos de Jesus, filhos de Alfeu e de outra Maria, irmã da mãe de Jesus. Podiam, também, segundo, tais teólogos, ser filhos de José antes do casamento com Maria, Jo 7.5 e At 1,14 distingue-os dos filhos de Alfeu. Nota-se, também, que nas dez ocasiões em que sua presença se registra, estão sempre com Maria, mãe de Jesus. […] (Bíblia Shedd, p. 1348, grifo nosso).

4. Bíblia Anotada

Mt 13.44. seus irmãos. Estes eram os filhos de José e Maria, nascidos depois de Jesus, que nascera só de Maria. Vê-los como filhos de um primeiro casamento de José ou como primos de Jesus contraria o uso normal do termo “irmãos” (Bíblia Anotada, p. 1204, grifo nosso).

Certamente, que o motivo que move os católicos a defenderem a não existência de irmãos de Jesus é, como já dito, o fato de se verem obrigados a defenderem o dogma de sua igreja sobre “virgindade de Maria”, antes, durante e depois do casamento (ou do parto), coisa, que à época, em que os Evangelhos foram escritos, não fazia o menor sentido. A base, como vimos, é uma passagem de Isaías que não é uma profecia e nem se relaciona a Jesus, o que faz, com que os protestantes, a nosso ver, estejam mais próximos da verdade.


Estudiosos

1) Russell Norman Champlin e João Marques Bentes (1932- )

Marcos menciona por nome quatro irmãos de Jesus (6:3), bem como um número indeterminado de irmãs. Muitos discutem a questão dos irmãos de Cristo, aqui mencionados. Alguns, pretendendo preservar a doutrina da perpétua virgindade de Maria, inventada pelos homens, apresentam as seguintes explicações: 1. Esses “irmãos” de Jesus eram seus primos, e não irmãos no sentido literal, como podem indicar as palavras gregas e hebraica para “irmãos”. Alguns sugerem que eram filhos de Alfeu e de Maria, a irmã de Jesus. 2. Seriam filhos de José mediante um casamento anterior; 3. Seriam filhos de José mediante um casamento posterior; e José teria contraído essas núpcias a fim de criar os filhos de um irmão seu, já falecido. Todas essas ideias tiveram início bem cedo na história eclesiástica, e até hoje perduram.

Os argumentos enumerados abaixo favorecem a ideia de que os irmãos e as irmãs de Jesus eram filhos de José e Maria, em seu sentido literal.

1. João 7:5 parece excluir “seus irmãos” do número dos “doze”, mesmo porque não eram realmente filhos de Alfeu, pai de Tiago, o apóstolo. Atos 1:14 também os menciona em separado dos doze. Portanto, esses homens (os irmãos) não poderiam, realmente, ser primos de Jesus e estar no número dos doze apóstolos. Os nomes Tiago, Judas e Simão eram nomes muito comuns, e é provável que alguns dos primos de Jesus tivessem os mesmos nomes de seus irmãos literais. As Escrituras também indicam que seus irmãos não tiveram fé nele senão após a sua ressurreição (João 7:5).

2. Das quinze vezes em que esses irmãos são mencionados (dez nos evangelhos, uma em Atos e algumas vezes nos escritos de Paulo) quase sempre são mencionadas em companhia de Maria, mãe de Jesus. É estranho que os primos de Jesus andassem sempre em companhia de sua tia, que nesse caso seria Maria, mãe de Jesus, em vez de andarem em companhia de sua própria família.

3. Em nenhuma porção das Escrituras é indicado que eles fossem primos de Jesus ou filhos somente de José, e não de Maria. Tais suposições são especulações humanas para estabelecer e firmar uma teologia humana.

4. A não ser por motivo de preconceito teológico, não há razão para não acolhermos essas palavras em seu sentido mais natural, isto é, eram filhos de José e Maria, em seu sentido natural, isto é, eram filhos de José e Maria, em sentido literal. A elevação de Maria à estatura de deusa é uma tradição romanista, contrária ao próprio tratamento de Jesus à sua mãe (Mat. 12:47), onde ele não reconhece qualquer relação especial, devido à sua ligação física) e contrária à ideia que diz que Jesus era o único de sua espécie entre os homens, posição essa que ele jamais dividiu com sua mãe. Finalmente, devemos notar que a doutrina da perpétua virgindade de Maria não é apoiada nas Escrituras. A preservação dessa doutrina forma a base dos argumentos que explicam erroneamente esses “irmãos”, como se não fossem irmãos literais de Jesus; e também não goza de base alguma nas Escrituras. Parece ser razoável que uma doutrina dessa natureza, caso tivesse tanta importância como alguns afirmam, pelo menos fosse apoiada por uma pequena afirmação bíblica nesse sentido (CHANPLIN e BENTES, 1995b, p. 683-684, grifo nosso).

3) Ernest Renan (1823-1892)

Mat., I,25 (texto recebido); XII,45 e seg.; XIII,55 e seg.; Marc. III,31 e seg.; VI, 3; Luc., II,7; VIII,19 e seg.; João, II,12; VII, 3,5,10; Atos, I,14: Hegésipa, em Eusébio H.E., III,20. A assertiva de que a palavra ah (irmão) teria um sentido mais amplo em hebraico do que em francês é totalmente falsa. O significado da palavra ah é idêntico ao da palavra “frère” (irmão). Os empregos metafóricos, ou abusivos, ou errôneos, nada provam contra o sentido próprio. Quando um pregador chama a audiência “meus irmãos” poder-se-á concluir que a palavra “irmão” não tem sentido bem preciso? Logo, é evidente que nas passagens anteriormente citadas a palavra “irmão” não aparece no sentido figurado. Note, em particular, Mat., XII,46 e seg., que exclui igualmente o sentido abusivo de “primo” (RENAN, 2004b, p. 102, grifo nosso).

2) Carlos Torres Pastorino (1910-1980)

Quando seus “parentes” chegam, é que ficamos sabendo de quem se tratava: “sua mãe, seus irmãos e suas irmãs”.

A expressão “suas irmãs” está nos códices A, D, E, F, H, M, S, U, V, Gama, e na maior parte das antigas versões latinas; é aceita por Soden e Merck; Vogel e Nestle a colocam entre colchetes. Não aparece nos códices Aleph, E, C, G, K, Delta, Pi, 1, 13, 33 e 69 e na Vulgata, sendo recusada por Westcott-Hort, Souter, Swete, Lagrange e Pirot.

[…].

Quanto aos quatro irmãos de Jesus (Tiago, Judas Tadeu, Simão e José) e às duas irmãs (Maria e Salomé), já apresentamos o problema do parentesco no vol. 2.º, pág. 111-112. [é a transcrição que se segue] (PASTORINO, 964c. p. 58).

[…] observamos a cena da entrega de Maria, Sua Mãe, ao discípulo amado, a fim de que ele cuidasse de Maria em lugar do próprio filho Jesus.

Anotemos, de passagem, que se Maria tivesse tido outros filhos, ou mesmo enteados (filhos do primeiro matrimônio de José), esse gesto de Jesus tem ensanchas de magoá-los profundamente. Daí termos aceitado, desde o início, a hipótese da expressão “irmãos de Jesus”, como sendo seus “primos-irmãos”. (1)

_______
(1) A palavra grega adelphós, “irmão”, referia-se também a “primos”, como lemos em muitos autores profanos (cfr. Herodoto. 1.65; 4.147; 6.94. etc.; Thucidides. 2.101, etc.; Strabão, 10.5.6, etc.), dando-se o mesmo com a palavra latina frater. Lemos em Cícero (De Fin; 5.1. 1): L. Cícero frater noster, cognatione patruelis, amore germanus, ou seja, “Lúcio Cícero nosso irmão, pelo parentesco primo, pelo amor, irmão”. E a definição do Digesto (38. 10. 1, § 6): item fratres patrueles, sorores patrueles, id est qui quaeve ex duobus fratribus progenerantur, “da mesma forma, primos-irmãos, primas-irmãs, os que e as que são gerados de dois irmãos”. Não esqueçamos que a palavra portuguesa “irmão”, assim como a castelhana “hermano”, são derivadas do latim germanus (proveniente de gérmen) e exprime aqueles que são da mesma origem, do mesmo germe, conforme já lemos mesmo em Plauto (Menaechmi, 1102): spes mihi est vos inventuros fratres germanos duos geminos una matre natos et patre uno uno die, isto é: “minha esperança é de que vos descobrireis irmãos autênticos gêmeos nascidos de uma mãe e de um pai, no mesmo dia”.

(PASTORINO, 1971, p. 155, grifo nosso)

Vê-se que nem mesmo os estudiosos se entendem sobre o assunto; alguns deles agem como defensores de suas crenças, coisa fácil de se aceitar de pessoas comuns, não de eruditos.

A suposição de que os “irmãos de Jesus” tenham sido filhos de José de um casamento anterior, como vimos citar aqui e no tópico anterior, tem, segundo acreditamos, como base os livros chamados Apócrifos, que o Aurélio define como: “Diz-se de obra sem autenticidade, ou cuja autenticidade não se provou”.

No Proto-Evangelho de Tiago, tem-se que José teria dito quando supostamente foi o escolhido, por ser de viúvo, para desposar a virgem Maria: “Tenho filhos e sou velho, enquanto que ela é uma menina; não gostaria de ser objeto de zombarias por parte dos filhos de Israel” (TRICCA, 1995a, p. 111).

No A história do carpinteiro José, obra “escrita em grego – talvez no Egito – em fins do século IV” (TRICCA, 1995a, p. 195), Jesus conta a história de seu pai, José, de onde transcrevemos, do cap. II:

3. Este homem, José, uniu-se em santo matrimônio com uma mulher que lhe deu filhos e filhas: quatro homens e duas mulheres, cujos nomes eram: Judas e Josetos, Tiago e Simão, suas filhas chamavam-se Lísia e Lídia. 4. E a esposa de José morreu, como está determinado que aconteça a todo homem, deixando seu filho Tiago ainda menino de pouca Idade. 5. José era um homem justo e dava graças a Deus em todos os seus atos. Costumava viajar para fora da cidade com frequência para exercer o ofício de carpinteiro em companhia de seus dois filhos, já que vivia do trabalho de suas mãos conforme o que estabelecia a lei de Moisés. 6. Este homem justo, de quem estou falando, é José, meu pai segundo a carne, com quem se casou na qualidade de consorte, minha mãe, Maria. (TRICCA, 1995a, p. 198, grifo nosso).

O interessante é que nessa narrativa Jesus afirma que José é seu pai “segundo a carne”; como, então, tê-lo como gerado de forma sobrenatural? Note-se, também, que ele exercia o ofício de carpinteiro com “dois filhos”, dando a entender que tinha esses dois, não nominados, e Tiago, menino de pouca idade.

Então, possivelmente essa crença de José ter outros filhos vem dessas duas obras apócrifas, o que é algo inusitado, pois tomam de uma obra não inspirada para considerar como “irmãos de Jesus”, os filhos de José de um suposto casamento anterior. Será que não perceberam essa contradição?


A “irmã de Maria”

É óbvio que se Jesus teve primos estes teriam que ser filhos de um tio ou tia, ou seja, Maria, sua mãe, teria, pelo menos, um irmão ou irmã. Excluímos José dessa possibilidade visto, conforme os textos bíblicos, ele não ser o pai biológico de Jesus. A nossa surpresa é que encontramos no Evangelho de João (19,25) algo a respeito, embora estranhemos o completo silêncio dos autores dos Evangelhos sinópticos sobre este importante fato. Para os que acreditam em “primos”, em vez de “irmãos de Jesus”, João torna-se o “salvador da pátria” ao apresentar uma mulher como sendo irmã de Maria.

A novidade veio-nos pela Bíblia Barsa, quando, no Novo Testamento, se explica a questão dos irmãos de Jesus:

Mt 12.46. Irmãos, i.e. primos, de acordo com o valor da palavra nas línguas semitas. Aliás o próprio Evangelho chama a Tiago e José de irmãos de Jesus e indica o nome de sua mãe, Maria de Cleofas, irmã (ou prima) da Virgem Maria. (Cf. Mt 13,55; 27,56; Mc 15,40,47; Jo 19,25). (Bíblia Barsa, p. 12 do NT, grifo nosso).

Vejamos algumas das passagens citadas nessa explicação, nas quais se citam as mulheres que estavam ao pé da cruz:

Mateus 27,56: “Entre elas estavam Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago e de José, e a mãe dos filhos de Zebedeu”.

Marcos 15,40: “Aí estavam também algumas mulheres, olhando de longe. Entre elas estavam Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, o menor, e de Joset, e Salomé”.

João 19,25: “A mãe de Jesus, a irmã da mãe dele, Maria de Cléofas, e Maria Madalena estavam junto à cruz”.

Os autores Champlin e Bentes argumentam que a comparação entre os trechos Mateus e Marcos, identifica Salomé (Marcos 15,40) como a mãe dos filhos de Zebedeu (Mateus 27,56) (CHAMPLIN e BENTES, 1995f, p. 74). Aliás, estes dois Evangelhos só têm Maria de Madalena em comum com o autor de João, que, como sabemos, é o Evangelho mais tardio, em que a visão que nos traz de Jesus é mais divinizada, provavelmente, produto de influências culturais de outros povos.

Deve-se levar em conta que o versículo João 19,25 não está presente em 28 manuscritos, incluindo alguns do século III (P5 P22 P39 P45 P75); consta de apenas 6, em que os dois mais antigos (01 e 03) pertencem ao século IV, conforme se vê no Novo Testamento em grego, publicado pelo site - http://nttranscripts.unimuenster.de/AnaServer?NTtranscripts+0+start.anv [1]. E diante disso ficamos na dúvida se esse versículo não foi um acréscimo feito por uma “alma piedosa” visando criar as condições para que os “irmãos de Jesus” se tornassem “primos”. Essa hipótese nos parece razoável, pois foi exatamente no século IV, mais precisamente no ano de 325, quando do Concílio de Niceia, que se iniciou o processo de divinização de Jesus, até desembocar na instituição da Trindade cristã, que, na verdade, é também uma cópia de crença pagã.

Sabemos que causa espécie a alguns falar de acréscimos nos textos bíblicos, mas em O que Jesus disse? O que Jesus não disse? o autor Bart D. Ehrman apresenta uma prova (p. 54):

O texto de João, ora em exame, induz a considerar Maria de Cléofas (ou Clopas, ou Alfeu) como sendo a irmã de Maria; mas aqui o que temos é mais um problema de tradução:

JOÃO 19,25
Bíblias
Teor
Barsa, Paulinas 1957 e SBB “Entretanto estavam em pé junto à crua de Jesus sua mãe, e a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Cléofas, e Maria Madalena”.
Shedd, NTLH e Anotada “E junto à cruz estavam a mãe de Jesus, e a irmã dela, e Maria, mulher de Clopas, e Maria Madalena”.


Observa-se que com a colocação de um “e”, antes da “Maria, mulher de Clopas”, muda-se todo o sentido, pois, de três mulheres, passaremos a ter quatro.


Explicações de Champlin e Bentes:

Diversas interpretações têm sido dadas a este versículo, quando o mesmo é comparado aos seus paralelos nos evangelhos sinópticos, no que diz respeito à identificação das mulheres citadas. Em primeiro lugar, devemos observar que a tradução portuguesa que usamos como base neste comentário (a tradução IV), conforme é citada acima, dá a impressão de terem estado presentes à cena da crucificação nada menos de quatro mulheres. Em segundo lugar, ela não identifica “Maria, mulher de Clopas” com a irmã de Maria, mãe de Jesus, pelo contrário, distingue as duas mulheres, inserindo a conjunção “e” antes da palavra “Maria”. E assim temos: “…a irmã dela (e não diz de quem) e Maria…”.

O motivo desse artifício de tradução é que os revisores devem ter pensado que seria extremamente difícil que, numa única família, houvesse duas irmãs com o mesmo nome – Maria. E, posto que nos manuscritos originais não foram usados sinais de pontuação, bastaria ser posta uma vírgula (que no caso agiria como substituta da conjunção “e”) antes de Maria, mulher de Clopas, para que houvesse o mesmo efeito de distinção. Assim se poderia distinguir a irmã de Maria de “Maria, mulher de Clopas”. A bem da verdade, é necessário que se diga que a primitiva versão siríaca “peshito” mostra-nos que desde bem cedo, na história da interpretação do texto sagrado, essa passagem era aceita como a indicar a presença de quatro mulheres, e não de três somente, ao pé da cruz.

Outras traduções e interpretações fazem com que pareça terem sido mencionadas apenas três mulheres neste trecho, sem falarmos no fato de que essa “Maria, mulher de Clopas”, aparece como irmã de Maria; ou, ainda em outros casos, como cunhada ou meio-irmã de Maria. Por isso é que a tradução portuguesa AC diz: “…estava sua mãe e a irmã de sua mãe, Maria de Cléopas…”.

No que tange ao problema que dificilmente duas irmãs, numa mesma família, tenham recebido o nome de “Maria”, podemos responder que a outra Maria era, na realidade, meio-irmã de Maria, mãe de Jesus, ou então, sua cunhada. Eusébio, tomando por empréstimo uma ideia de Hegesipo, em sua História Eclesiástica (I,3, cap. 11), supõe que Clopas seria irmão de José, marido de Maria, mãe de Jesus, o que faz com que esta “Maria” seja cunhada de Maria, mãe de Jesus. Mas outros estudiosos têm pensado que essa Maria fosse irmã de José, e que assim é que ela vinha a ser cunhada de Maria não há maneira de evitarmos as meras conjecturas. A tradução portuguesa IB concorda neste caso com a tradução portuguesa AA, indicando a presença de quatro mulheres ao pé da cruz de Cristo.

Se reconhecermos a presença de quatro mulheres, na cena da crucificação de Cristo, então podemos fazer as seguintes observações:

A irmã de Maria, cujo nome não é dado (pois se quatro mulheres são realmente mencionadas neste texto, então Maria, mulher de Clopas, não pode ser irmã de Maria), muito provavelmente era Salomé. E isso é até certo ponto confirmado na narrativa dos evangelhos sinópticos, que igualmente fornecem uma lista das mulheres que se fizeram presentes à crucificação. A diferença é que nos evangelhos sinópticos todos os nomes são mencionados, ao passo que, neste quarto evangelho, não é fornecido o nome da irmã de Maria (Ver Marc. 15:40 e Mat. 27:56). A mulher que é identificada como “mãe dos filhos de Zebedeu” (Mat. 27,56), dessa maneira, é evidentemente chamada de “Salomé”, na narrativa paralela de Marc. 15:40. Salomé, assim sendo, seria a mãe de João e Tiago. E isso, por sua vez, significa que tanto o apóstolo João como sua mãe estiveram ao pé da cruz de Cristo, em companhia de Maria Madalena e de Maria, mãe de Jesus, além de uma outra Maria, “mulher de Clopas”. Isso, finalmente, significa que os apóstolos João e Tiago eram primos de Jesus.

A outra Maria, pois, era ao mesmo tempo mulher de Clopas e mãe de um outro Tiago, que no trecho de Marc. 15:40 é chamado de “o Menor”, por ser de menor estatura que o outro Tiago, filho de Zebedeu, ou por ser mais jovem. Voltando a nossa atenção para essa outra Maria, averiguamos que ela era esposa de Clopas, que também é chamado “Alfeu”, porquanto esses dois apelativos parecem ser meras variações de um único nome hebraico. O trecho de Mat. 10:3 diz-nos que Tiago era filho de Alfeu, sendo provável que se trate do mesmo Tiago, filho de Clopas. Por isso é que os nomes Alfeu e Clopas têm sido confundidos e aceitos como nomes de uma única pessoa, pelo menos por parte de muitos intérpretes.

Entretanto, há estudiosos bíblicos que negam a possibilidade dessa identificação, os quais pensam que, afinal de contas, “Maria, mulher de Clopas”, não é a mesma Maria, mãe de Tiago e Joses. Todavia, durante toda a cena da crucificação de Jesus, essa Maria parece ser a mesma pessoa que aquela Maria, não havendo nenhuma razão sólida para duvidarmos disso:

Se essa “Maria, mulher de Clopas” ou Alfeu, era irmã de Maria, então Tiago, o Menor, e Joses, eram também primos de Jesus. Entretanto, tudo isso está na dependência da identificação dessa “Maria” (do trecho de João 19:25) com aquela outra “Maria”, mãe de Tiago e Joses, que aparece nos evangelhos sinópticos. Alguns eruditos, todavia, duvidam da validade dessa identificação. Outrossim, a menos que a passagem de João 19:25 fale definidamente apenas de três mulheres, então essa Maria não é apresentada como irmã de Maria, por isso mesmo, não era parenta de Jesus em qualquer sentido; e, consequentemente, nem os seus dois filhos seriam parentes carnais do Senhor.

Os intérpretes que pensam que este versículo menciona apenas três mulheres, os quais também vinculam essa Maria (irmã da mãe de Jesus) com “Maria, mulher de Clopas” e mãe de Tiago, o Menor e Joses, pensam que esses homens eram primos do Senhor Jesus.

ESSE problema se complica ainda mais pelo fato de que o original grego não declara, de forma peremptoriamente clara que essa Maria era “mulher” de Clopas; pelo contrário, segundo era costumeiro no grego, nesses casos de relações familiares, diz simplesmente “de Clopas”, o que poderia ser “mãe”, “irmã” ou “filha” de Clopas. E neste caso não estaríamos tratando do caso da mesma Maria, mulher de Alfeu. Não obstante, a tradução “mulher”, neste versículo, é a que goza de maiores probabilidades.

Posto que o nome “Maria” era extremamente comum nos tempos de Jesus, visto que Clopas talvez não seja Alfeu e em face do fato de que várias narrativas se derivam de fontes informativas separadas, podendo identificar diferentes pessoas por nomes similares ou mesmo iguais, é-nos impossível asseverar, com absoluta certeza, quem era exatamente essa “Maria”, ou se era ou não irmã de Maria, mãe de Jesus, ou se Tiago, o Menor e Joses eram ou não primos do Senhor Jesus. Por essa razão é que encontramos bons eruditos defendendo um ou outro lado da questão. A posição deste comentário, embora apenas na forma de tentativa, é que a “Maria” aqui aludida é a mesma “Maria” mencionada nos evangelhos sinópticos, onde aparece como mãe de Tiago, o Menor e Joses, e mui provavelmente, trata-se da mesma Maria esposa de Alfeu (Alfeu e Clopas seriam a mesma pessoa); mas que Tiago, o Menor e Joses não eram primos de Jesus, porquanto a narrativa de João alista quatro mulheres ao pé da cruz, e esta Maria não é irmã de Maria, mãe de Jesus, mas antes, Salomé, a qual, apesar de não ser chamada por nome no evangelho de João, é identificada por nome nos evangelhos sinópticos (ver Mat. 27.56 e Marc. 15:40). (CHAMPLIN, 2005b, p. 618-619, grifo nosso).

James D. Tabor faz algumas considerações, que trazendo mais lenha para a fogueira; vejamo-las;

[…] Mas João reconhece explicitamente a presença de Maria, mãe de Jesus, o que nos permite identificar, com uma boa margem de segurança, a mulher a quem Marcos se refere como “Maria, mãe de Tiago e Joses” como sendo Maria, mãe de Jesus. Quem é então a “nova” terceira Maria – mulher de Cléofas? Quem é Cléofas? Essa Maria é identificada como a “irmã” de Maria, mãe de Jesus – mas qual é a probabilidade de que duas irmãs, da mesma família, tenham o mesmo nome?

Comecemos por Cléofas, já que sabemos alguma coisa sobre ele. Como explicaremos em detalhe mais tarde, quando Jesus morreu, deixou a seu irmão Tiago o encargo de seus discípulos. Tiago foi assassinado em 62 d.C., e nossos primeiros registros falam que ele foi sucedido por um homem idoso, conhecido como “Simão, filho de Cléofas”. Sabe-se ainda que esse Cléofas era irmão de José, marido de Maria. (9) Nesse caso, é inteiramente possível que nossa misteriosa Maria, mulher de Cleófas, mãe de “Tiago e Joses”, fosse a cunhada de Maria, casada com o irmão de seu marido José. Essa foi a solução adotada pela Igreja há alguns séculos. Mas reparem, nesse caso, há alguma coisa estranha:

COMPARAÇÃO ENTRE AS DUAS “MARIAS”
Maria casada com José
Maria casada com Cléofas, irmão de José
Tiago-Joses-Simão
Tiago-Joses-Simão

Quais são as probabilidades reais de que essas duas mulheres, ambas chamadas Maria, fossem elas irmãs ou cunhadas, casadas com irmãos, tivessem filhos com os mesmos nomes, nascidos na mesma ordem: Tiago, Joses e Simão?

O que mais parece plausível é que a “Maria, mãe de Tiago e Joses”, de Marcos, fosse a mesma Maria que era mãe de Jesus, e que o evangelho de João (ou quem o editou) tenha criado uma terceira Maria, mulher de Cléofas, na verdade, a mesma mulher – para ocultar o fato de que a mãe de Jesus, Maria, depois da morte de José se casou com Cléofas, o irmão dele. Uma versão de João escrita claramente diria

Ao pé da cruz, havia sua mãe, Maria, mulher de Cleófas, e Maria Madalena.

Isso estaria perfeitamente de acordo com Marcos e não criaria esse absurdo de cunhadas com o mesmo nome, tendo filhos como nomes idênticos e até com o mesmo apelido, “Joses”, nascidos na mesma ordem. Segundo essa reconstrução, as três mulheres ao pé da cruz seriam provavelmente:

1. Maria Madalena
2. Maria, a viúva de José, que se casou com Cléofas, seu irmão
3. Salomé, que pode ser tanto a irmã de Jesus quanto a mãe dos filhos de Zebedeu

Um detalhe sobre Cléofas apoia essa interpretação. Seu nome vem da raiz hebraica chalaph, que significa “mudar” ou “substituir”. Ela está na origem do termo “califado”, que se refere a uma sucessão dinástica de governantes. Provavelmente, esse não é seu primeiro nome, mas uma espécie de apelido. Ele é quem deveria substituir seu irmão José, que morreu sem filhos. Cléofas é ainda mencionado em outra parte, sob a forma grega de seu nome – Alfeu. Seu primogênito é comumente conhecido como “Tiago, filho de Alfeu” ou “Tiago, o jovem”, para diferenciá-lo do Tiago, filho de Zebedeu, o pescador, irmão do apóstolo João(10).

A partir dessa informação, começa a emergir uma imagem inteiramente diferente, mas historicamente coerente. Jesus nasceu de um pai desconhecido, mas não era filho de José. José morreu sem filhos, de modo que, segundo as leis judaicas, “Cléofas” ou “Alfeu” se tornou seu “substituto” e se casou com sua viúva, Maria, mãe de Jesus. Seu filho primogênito, Tiago, o irmão que sucedeu a Jesus, tornou-se legalmente conhecido como “filho de José”, tendo adotado o nome de seu falecido irmão, de maneira a perpetuá-lo. Isso significa que Jesus tinha quatro meio-irmãos e pelo menos duas meio-irmãs, todos nascidos de Maria, mas com outro pai.

Essa é uma maneira plausível de reconstruir os fatos. Há certas coisas que jamais conheceremos com certeza absoluta. Cléofas é mencionado uma só vez em todo o Novo Testamento (João 19:25). (11) Se ele e seu irmão José eram muito mais velhos do que Maria, é bem provável que nenhum deles estivesse vivo quando Jesus se tornou adulto. Isso pode ainda ser constatado no evangelho de João quando Jesus, o filho mais velho da família, pouco antes de sua morte, entrega a mãe aos cuidados de um misterioso “discípulo a quem ele amava”, cujo nome João prefere calar (João 19:26). Mais adiante, darei provas de que essa pessoa é provavelmente Tiago, seu irmão, o mais velho da família depois de Jesus. Seja ele quem for, o fato de que Jesus entregou sua mãe aos cuidados de outra pessoa significa que ela era viúva. Temos de lembrar que os evangelhos são, antes de tudo, relatos teológicos da história de Jesus, escritos uma geração ou mais depois de sua morte. Quando se trata da família de Jesus, há coisas que eles não explicam e outras que parecem suprimir deliberadamente. […].

O que podemos afirmar com algum grau de certeza é o seguinte: José não é o pai de Jesus, e a gravidez de Maria por um homem desconhecido foi “ilegítima”, segundo as leis sociais. Jesus tinha quatro meio-irmãos e duas meio-irmãs, todos filhos de Maria, mas de outro pai – fosse ele José ou seu irmão Cléofas. […].

_______
(9) Isso é do escritor do século II Hegésipo, que preserva para nós algumas das mais valiosas tradições primitivas sobre a família de Jesus (Eusébio, Church History 3.11).
(10) Consulte Marcos 3:18 d 15:40.
(11) Um Cléopas é mencionado em Lucas 24:18, mas ele não parece ser a mesma pessoa, e os nomes em grego são diferentes.


(TABOR, 2006, p. 94-97).

Pastorino tinha como certo que Tiago, filho de Alfeu e de Maria, era irmão de José, de Simão e de Judas Tadeu, e que todos eram chamados “irmãos de Jesus” (Pastorino, (PASTORINO, 1964b, p. 81). Não conseguimos saber qual fonte em que se baseou para dizer que José, Simão e Judas Tadeu eram irmãos de Tiago. O que conseguimos, com base nos textos bíblicos, é que:

– Judas, afirma ser irmão de Tiago, (Jd 1);

– Tiago (o Menor) é filho de Alfeu (Mt 10,3; Mc 2,14; Lc 6,15; At 1,13);

– Levi (Mateus) é filho de Alfeu (Mc 2,14).

Então os filhos de Alfeu e Maria são: Tiago, Judas e Levi, codinome de Mateus.

Existiram ainda, pelo menos, mais dois personagens com o nome de Tiago:

– Tiago, irmão do Senhor (Gl 1,19) - Na carta de Tiago “o mesmo se apresenta como Tiago, o irmão do senhor (cf Mc 6,3), que dirigia a igreja de Jerusalém” (Pastoral, p. 1561);

– Tiago (o Maior), filho de Zebedeu, irmão de João (Mt 4,1).


Novamente, recorrendo a Pastorino, transcrevemos:

Agora as confusões.

Em João (19:25) esse mesmo Tiago é dito “filho de Maria, a esposa de Clopas”. Seria Clopas o mesmo nome que Alfeu, como supõem alguns? ou teria ele um nome hebraico Halphai e um nome grego Klopas (abreviatura de Kleópatra – donde a variante Kleópas, o que o identificaria com um dos “discípulos de Emaús”, Luc. 24:18)? Esta parece a hipótese mais razoável, pois era muito comum na época a duplicidade de nomes (João se tornava Jasão, Phaltiel se tornava Filipe, Levi era Mateus, etc.). Esse Clopas, citado em João, é dito “irmão de José” (esposo de Maria) por Hegesipo, pelos meados do 2.º século (a cerca de 100 anos dos acontecimentos) conforme testemunho de Eusébio (Hist. Ecles. 3, 11, in Patrol. Graeca, vol. 20, col. 248) e segundo Epifânio (Haeres. 78, 7, in Patrol. Graeca, vol.42, col. 708).

Pensam alguns que Maria, esposa de Clopas, era irmã de Maria mãe de Jesus. Mas como se explicaria o caso de duas irmãs com o mesmo nome? Além disso, a enumeração de João (19:25) é bem clara: “estavam ao pé da cruz de Jesus” 1) a mãe dele; 2) a irmã da mãe dele; 3) Maria, esposa de Clopas; e 4) Maria Madalena. Pela construção e pelo andamento da frase grega, “Maria esposa de Clopas” não pode ser aposto de “a irmã da mãe dele”: são duas pessoas distintas. Curiosidade: quem seria essa “tia” de Jesus, irmã de Maria? Teria sido (simples hipótese!) Joana, a esposa de Cusa, o oficial de Herodes, que foi buscar Jesus em Caná para curar-lhe o filho (conhecendo-o bem familiarmente, portanto, antes mesmo de sua “vida pública”)? Além disso, a intimidade constante de Joana de Cusa com Jesus e com o colégio apostólico é suficiente para dar justificativa a essa hipótese, não de todo infundada, se bem que nova.

Neste caso, os quatro (Tiago, José, Simão e Judas) seriam primos-irmãos de Jesus, parentesco que costumava ser abreviado com a simples palavra “irmão”.

A afirmativa de alguns apócrifos e dos “pais” da igreja Orígenes, Epifânio, Gregório de Nissa, Hilário, Ambrósio e Eusébio, de que eles teriam sido filhos de José, num primeiro matrimônio (contra o que protestou energicamente Jerônimo), não pode ser aceita; pois não se compreenderia que José tivesse casado com Maria, enquanto sua primeira esposa estava ainda viva (tanto assim que estava ao pé da cruz de Jesus) e sobretudo seria inconcebível essa promiscuidade das duas esposas. Isso explica também que as “irmãs de Jesus” (Mat 13:55-56), que segundo Teofilacto se chamavam Maria e Salomé, deviam ser filhas ou de Alfeu-Clopas, ou de Joana de Cusa (em nossa hipótese). Talvez essa Salomé, irmã (prima) de Jesus, fosse a esposa de Zebedeu (Mr. 15:40) e então Tiago Maior e João seriam seus sobrinhos e por isso estavam sempre a seu lado e o tratavam com tanta familiaridade, retribuída por Jesus que os apelidou com fina ironia “filhos do trovão” (PASTORINO, 1964b, p. 81-82, grifo nosso, exceto os termos que também estão sublinhados).

Na relação dos doze apóstolos conforme os Sinópticos encontramos um deles com o nome de Simão:

Em Mateus: Simão, chamado Pedro e seu irmão André; Tiago e seu irmão João, filhos de Zebedeu; Felipe e Bartolomeu; Tomé e Mateus; Tiago, filho de Alfeu e Tadeu; Simão, o Cananeu e Judas Iscariotes (Mateus 10.1-4).

Em Marcos: Simão, a quem pôs o nome de Pedro; Tiago, filho de Zebedeu, e João, irmão de Tiago; André, Filipe, Bartolomeu, Mateus, Tomé, Tiago, filho de Alfeu, Tadeu, Simão, o cananeu, e Judas Iscariotes (Maros 3,16-19).

Em Lucas: Simão, ao qual também chamou Pedro, e André, seu irmão; Tiago e João; Filipe e Bartolomeu; Mateus e Tomé; Tiago, filho de Alfeu, e Simão, chamado Zelote; Judas, filho de Tiago; e Judas Iscariotes (Lucas 6,13-16).

A nossa impressão é de que ao citar o nome Simão após o de Tiago, que está relacionado a “filho de Alfeu”, confundiu-se esse personagem como também sendo filho de Alfeu. Dos mencionados irmãos de Jesus – Tiago, José, Simão e Judas – somente o nome de José não aparece na lista dos apóstolos, uma prova de que esses nomes eram mesmo bem comuns, fácil, portanto, de se fazer confusão entre quem seriam os seus pais.


Conclusão

Acreditamos ter apresentado dados suficientes para que você, caro leitor, possa fazer um juízo do assunto, ao qual não se pode deixar de levar em conta esse pensamento de Orígenes de Alexandria (185-254):

“[…] O rigor da crítica exige uma busca longa e precisa, um exame de cada ponto, depois dos quais, com vagar e precaução, podemos afirmar que estes autores dizem a verdade e aqueles outros mentem sobre os prodígios que narram. […]”(Orígenes, 2004, p. 440).

A nossa opinião, percebida ao longo desse estudo, é que não vemos razão alguma para que Maria e José não tivessem outros filhos, pois isso era bem comum àquele época, em que se considerava uma mulher como boa esposa se ela gerasse muitos filhos ao marido. Pobres das estéreis!

As razões que nos apresentam são sempre de ordem teológicas, nas quais claramente se vê o atavismo humano, sempre querendo perpetuar (ainda que neguem isso), crenças pagãs como se fossem verdades novas e exclusivas de sua fileira religiosa.


[1] John 19,25: Not Present in P2 P5 P6 P22 P28 P36 P39 P44 P45 P52 P55 P59 P63 P75 P76 P80 P84 P90 P93 P95 P106 P107 P108 P109 P119 P120 P122 P128; Present in P60 P66 P121 01 02 03.

Paulo da Silva Neto Sobrinho
Jul/2014

 

 

Referência bibliográfica

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Fonte:
http://www.aeradoespirito.net/ArtigosPN/JESUS_TEVE_OU_NAO_IRMAOS.html

 


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