Temos visto alguns companheiros
tomarem as obras de Kardec como se, por elas, a Doutrina Espírita
estivesse pronta e acabada, enquanto outros acham que pode, sim, haver
novas instruções; porém, advogam que essas só
poderiam vir de Espíritos Superiores, entendidos os da segunda
classe da Escala Espírita. A nosso ver, ambos os grupos laboram
em erro, sem que tenhamos a intenção de denegrir ou
desdenhar ninguém, até mesmo porque comungávamos
com as ideias do segundo grupo.
Sobre a Doutrina Espírita estar ponta e acabada, relembramos
o que já apontamos alhures, baseando-nos nas considerações
do próprio Codificador:
Mas, dir-se-á, ao lado
destes fatos [referindo-se às manifestações
espíritas] tendes uma teoria, uma doutrina; quem
vos diz que essa teoria não sofrerá variações;
que a de hoje será a mesma em alguns anos?
Sem dúvida, ela pode sofrer modificações
em seus detalhes, em consequência de novas observações.
Mas estando o princípio doravante adquirido, não pode
variar e ainda menos ser anulado; aí está o essencial.
Desde Copérnico e Galileu, calculou-se melhor o movimento
da Terra e dos astros, mas o fato do movimento permaneceu com o
princípio.
KARDEC, 2000c, p. 40, grifo nosso.
[…] As lacunas que a teoria atual pode ainda encerrar se encherão
do mesmo modo. O Espiritismo está longe de ter dito
a última palavra, quanto às suas consequências,
mas é inabalável em sua base, porque esta base se
assenta sobre os fatos.
KARDEC, 2000c, p. 41, grifo nosso.
O Livro dos Espíritos não é
um tratado completo do Espiritismo; não faz senão
colocar-lhe as bases e os pontos fundamentais, que devem se desenvolver
sucessivamente pelo estudo e pela observação.
KARDEC, 1993j, p. 223, grifo nosso.
Se bem que o Espiritismo não haja dito ainda a sua última
palavra sobre todos os pontos, ele se aproxima de seu complemento,
e o momento não está longe em que lhe será
necessário dar uma base forte e durável, suscetível,
no entanto, de receber todos os desenvolvimentos que as circunstâncias
ulteriores comportarem, e dando toda segurança àqueles
que se perguntam quem lhe tomará as rédeas depois
de nós.
KARDEC, 1993j, p. 370, grifo nosso.
O programa da Doutrina não será, pois, invariável
senão sobre os princípios passados ao estado de verdades
constatadas; para os outros, ela não os admitirá,
como sempre o fez, senão a título de hipóteses
até a confirmação. Se lhe for demonstrado
que ela está no erro sobre um ponto, ela se modificará
sobre esse ponto.
KARDEC, 1993j, p. 377, grifo nosso.
Além disso, convém notar que em parte alguma
o ensino espírita foi dado integralmente; ele diz
respeito a tão grande número de observações,
a assuntos tão diferentes, exigindo conhecimentos e aptidões
mediúnicas especiais, que impossível era acharem-se
reunidas num mesmo ponto todas as condições necessárias.
[…].
A revelação faz-se assim parcialmente em diversos
lugares e por uma multidão de intermediários e é
dessa maneira que prossegue ainda, pois que nem tudo foi revelado.
KARDEC, 2007e, p. 49, grifo nosso.
[…] Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo
jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe
demonstrarem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificará
nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará.
KARDEC, 2007e, p. 54, grifo nosso.
Portanto, por essas considerações
de Kardec, fica bem claro que o Espiritismo não é uma
Doutrina pronta e acabada e nem tão pouco fechada como alguns
confrades pensam.
Do capítulo I –
Caráter da Revelação Espírita
de A Gênese, merecem destaque, para
esse nosso estudo, estes dois trechos, os quais também já
os mencionamos em outro artigo:[…] a doutrina não foi
ditada completa, nem imposta à crença cega;
porque é deduzida, pelo trabalho do homem, da observação
dos fatos que os Espíritos lhe põem sob os olhos
e das instruções que lhe dão, instruções
que ele estuda, comenta, compara, a fim de tirar ele próprio
as ilações e aplicações. […].
KARDEC, 2007e, p. 28, grifo nosso.
15. – Citemos um exemplo. Passa-se no mundo dos Espíritos
um fato muito singular, de que seguramente ninguém houvera
suspeitado: o de haver Espíritos que se não consideram
mortos. Pois bem, os Espíritos superiores, que conhecem
perfeitamente esse fato, não vieram dizer antecipadamente:
"Há Espíritos que julgam viver ainda a vida
terrestre, que conservam seus gostos, costumes e instintos."
Provocaram a manifestação de Espíritos desta
categoria para que os observássemos. Tendo-se visto
Espíritos incertos quanto ao seu estado, ou afirmando ainda
serem deste mundo, julgando-se aplicados às suas ocupações
ordinárias, deduziu-se a regra. A multiplicidade de fatos
análogos demonstrou que o caso não era excepcional,
que constituía uma das fases da vida espírita; pode-se
então estudar todas as variedades e as causas de tão
singular ilusão, reconhecer que tal situação
é sobretudo própria de Espíritos pouco adiantados
moralmente e peculiar a certos gêneros de morte; que é
temporária, podendo, todavia, durar semanas, meses e anos.
Foi assim que a teoria nasceu da observação. O
mesmo se deu com relação a todos os outros princípios
da doutrina.
KARDEC, 2007e, p. 29, grifo nosso.
Observamos que, por essas transcrições,
se confirma que a Doutrina não veio pronta, o que muito bem
poderiam trazê-la os Espíritos Superiores, mas, ao invés
disso, eles nos colocaram diante dos fenômenos espirituais –
os de efeitos inteligentes e os de efeitos físicos –
para que, deles, nós deduzíssemos os ensinamentos e
suas causas. Evidencia-se, também, a participação
efetiva de Espíritos de outras ordens que não a dos
Superiores. Ademais, ainda podemos relembrar algo que S. Vicente de
Paulo disse, num outro contexto, mas que vem a calhar, pois torna
essa questão de superior um pouco relativa: "Jamais vos
esqueçais de que o Espírito, seja qual for
o seu grau de adiantamento e a sua situação, como reencarnado
ou na erraticidade, está sempre colocado entre um superior,
que o guia e aperfeiçoa, e um inferior, perante o qual tem
os mesmos deveres a cumprir." KARDEC,
s/d, p. 502-503, grifo nosso.
Em Obras Póstumas, veremos
novamente essa participação, no caso, de Kardec no processo
de elaboração do corpo doutrinário:
Foi nessas
reuniões que comecei os meus estudos sérios de Espiritismo,
menos, ainda, por meio de revelações, do que de observações.
Apliquei a essa nova ciência, como o fizera até
então, o método experimental; nunca elaborei
teorias preconcebidas; observava cuidadosamente, comparava,
deduzia consequências; dos efeitos procurava remontar às
causas, por dedução e pelo encadeamento lógico
dos fatos, não admitindo por válida uma explicação,
senão quando resolvia todas as dificuldades da questão.
Foi assim que procedi sempre em meus trabalhos anteriores, desde
a idade de 15 a 16 anos. […].
KARDEC, 2006a, p. 299, grifo nosso.
Nada de graça, muito menos
teria "caído de paraquedas"; tudo foi fruto de dedicação
e suor humano; aliás, sabe-se que Kardec comprometeu sua saúde
de tanto trabalhar.
Pensar que somente os Espíritos Superiores é que nos
trazem instruções, parece-nos que é não
levar em conta essas observações de Kardec:
58. –
Mas, nem só os Espíritos superiores se manifestam;
fazem-no igualmente os de todas as categorias e preciso era que
assim acontecesse, para nos iniciarmos no que respeita ao verdadeiro
caráter do mundo espiritual, apresentando-se-nos
este por todas as suas faces. Daí resulta serem mais íntimas
as relações entre o mundo visível e o mundo
invisível e mais evidente a conexidade entre os dois. Vemos
assim mais claramente donde procedemos e para onde iremos. Esse
o objeto essencial das manifestações. Todos
os Espíritos, pois, qualquer que seja o grau de elevação
em que se encontrem, alguma coisa nos ensinam; cabe-nos,
porém, a nós, visto que eles são mais ou menos
esclarecidos, discernir o que há de bom ou de mau no que
nos digam e tirar, do ensino que nos deem, o proveito possível.
Ora, todos, quaisquer que sejam, nos podem ensinar ou revelar
coisas que ignoramos e que sem eles nunca saberíamos.
KARDEC, 2007e, p. 57, grifo nosso.
Aliás, é bom lembrar
que toda a segunda parte da obra O Céu e o Inferno
contém mensagens sobre a situação no mundo espiritual
de Espíritos de diversas categorias, das quais surgiram alguns
pontos doutrinários.
E que haverá novas instruções é, também,
um fato:
O Espiritismo,
hoje, projeta luz sobre uma imensidade de pontos obscuros; não
a lança, porém, inconsideradamente. Com admirável
prudência se conduzem os Espíritos, ao darem
suas instruções. Só gradual e sucessivamente
consideraram as diversas partes já conhecidas da
Doutrina, deixando as outras partes para serem reveladas
à medida que se for tornando oportuno fazê-las sair
da obscuridade. Se a houvessem apresentado completa desde
o primeiro momento, somente a reduzido número de pessoas
se teria ela mostrado acessível; houvera mesmo assustado
as que não se achassem preparadas para recebê-la, do
que resultaria ficar prejudicada a sua propagação.
Se, pois, os Espíritos ainda não dizem tudo
ostensivamente, não é porque haja na Doutrina
mistérios em que só alguns privilegiados possam penetrar,
nem porque eles coloquem a lâmpada debaixo do alqueire; é
porque cada coisa tem de vir no momento oportuno. Eles
dão a cada ideia tempo para amadurecer e propagar-se, antes
que apresentem outra, e aos acontecimentos o de preparar a aceitação
dessa outra.
KARDEC, 2007c, p. 370-371, grifo nosso.
Claro que não devemos acreditar
em alguma novidade, simplesmente porque um Espírito a apresenta,
pois é preciso seguir as orientações de Kardec
sobre a necessidade de passar tudo pelo filtro do Controle Universal
do Ensino dos Espíritos, uma vez que a opinião de um
Espírito é apenas uma opinião pessoal, que, por
ser individual, não fará corpo Doutrinário.
Kardec seguia fielmente essa orientação de Erasto, publicada
na Revista Espírita 1861:
Na dúvida,
abstém-te, diz um de vossos antigos provérbios; não
admitais, pois, senão o que vos é de uma evidência
certa. Desde que uma opinião nova surge, por pouco
que ela vos pareça duvidosa, passai-a pelo crivo da razão
e da lógica; o que a razão e o bom senso reprovam,
rejeitai-o ousadamente; mais vale repelir dez verdades,
do que admitir uma única mentira, uma única teoria
falsa. […].
KARDEC, 1993f, p. 242, grifo nosso.
Sobre a opinião de um Espírito,
ser individual, esse foi um ponto que Kardec insistia sempre, como,
por exemplo, neste trecho que encontramos na Revista Espírita
1865:
O Espiritismo
não é mais a obra de um único Espírito
como não é a de um único homem; é
a obra dos Espíritos em geral. Segue-se que a opinião
de um Espírito sobre um princípio qualquer
não é considerada pelos Espíritos senão
como uma opinião individual, que pode ser justa ou falsa,
e não tem valor senão quando é sancionada
pelo ensino da maioria, dado sobre os diversos pontos do globo.
Foi esse ensino universal que fez o que ele é, e que fará
o que será. Diante desse poderoso critério,
caem necessariamente todas as teorias particulares que sejam o produto
de ideias sistemáticas, seja de um homem, seja de um Espírito
isolado. Uma ideia falsa pode, sem dúvida, agrupar
ao seu redor alguns partidários, mas não prevalecerá
jamais contra aquela que é ensinada por toda a parte.
KARDEC, 2000c, p. 307, grifo nosso.
No início, Kardec afirma que
o Espiritismo "é obra dos Espíritos em geral",
o que acreditarmos; não coadunaria caso fosse revelado somente
por Espíritos Superiores. Aliás, é oportuno transcrevermos
uma parte da segunda conversa com o Espírito Pierre Le Flamand,
publicado na Revista Espírita 1859,
mês de maio:
47. Voltemos ao senhor Allan Kardec.
– R. Fui à sua casa anteontem à noite; estava
ocupado escrevendo em seu escritório…, trabalhava numa
nova obra que prepara… Ah! ele nos melhora bem.
A nós outros, pobres Espíritos; se não nos
conhecerem não será por culpa sua.
48. Estava só? – R. Só, sim, quer dizer que
não havia ninguém com ele; mas havia, ao redor
dele, uma vintena de Espíritos que murmuravam acima de sua
cabeça.
49. Ele os ouvia? – R. Ouvia-os, se bem que olhasse por todos
os lados para ver de onde vinha esse ruído, para ver se não
eram milhares de moscas; depois, abriu a janela para ver se não
fora o vento ou a chuva.
Nota. – O fato era perfeitamente exato.
[…].
51. Esses Espíritos pareciam se interessar pelo que ele escrevia?
– R. Eu o creio muito! Sobretudo, havia dois ou três
que lhe sopravam o que ele escrevia e que tinham o ar de se aconselharem
com outros; ele, ele acreditava ingenuamente que as ideias eram
dele, e com isso parecia contente.
KARDEC, 1993e, p. 119-120, grifo nosso.
Aqui também não há nenhuma especificação
de que os Espíritos que "sopravam" aos ouvidos de
Kardec, eram todos eles Espíritos Superiores. Não podemos
deixar de registrar a condição
de médium que possuía o Codificador; provavelmente médium
de intuição.
Esperamos que este estudo possa provocar questionamentos sobre o que
abordamos nele, que seja visto como uma contribuição,
ainda que mínima, para o esclarecimento de muitos que ainda
transitam pela estrada da dúvida.