O primeiro ponto a ressaltar é
que Kardec jamais usou a expressão “obras básicas”,
mas, sim, “obras fundamentais” (1).
Entretanto, seus seguidores acharam por bem criá-la; porém,
temos percebido que no Movimento Espírita há indefinição
do que vem a constituir as “obras básicas”. Quem,
por exemplo, tiver a curiosidade de pesquisar na Internet sobre isso,
verá que a confusão se instalou em nosso meio, tal qual
uma nova torre de Babel.
Inclusive, querem uns (e esses não são poucos) relacioná-las
ao vocábulo usado pelas correntes religiosas tradicionais para
designar um conjunto de livros sagrados, que acreditam conter as revelações
divinas, atribuindo-lhes o nome de “Pentateuco” da Codificação
Espírita. Vemos nessa atitude certa incoerência, mas
como, infelizmente, muitos não conseguem se desligar do que
aprenderam em suas religiões de origem, acabam, se não
intencionalmente, pelo menos de forma inconsciente, trazendo para
o nosso meio uma palavra nunca dita ou mencionada pelo Codificador.
Nem mesmo as Instituições, que se dizem representantes
do Movimento Espírita, falam a mesma língua, demonstrando,
a nosso ver, falta de unidade e coerência Doutrinária.
Elas deixam-nos sem amparo para definir quais livros, publicados por
Kardec, devem fazer parte do conjunto de livros que se convencionou
chamar de obras básicas.
Por estar assim, sem definição, é que há
gente, por exemplo, que só cita o livro O
que é o Espiritismo, como se nele estivesse todo o corpo
da Doutrina, apesar da clareza de Kardec em situá-lo como uma
obra que apenas “[...] contém
sumária exposição dos princípios da Doutrina
Espírita, um apanhado geral desta, permitindo ao leitor apreender-lhe
o conjunto dentro de um quadro restrito. [...]” (2).
Muito embora nós lhe reconheçamos a importância,
principalmente, para os que não têm noção
do Espiritismo, citar somente ele seria imaturo, pois, aos que querem
se informar da Doutrina, os outros livros também deverão
ser estudados para uma visão mais ampla e, ao mesmo tempo,
pormenorizada dos princípios Espíritas.
Geralmente vemos pessoas e Instituições Espíritas
citando como obras básicas: O Livro dos Espíritos,
O Livro dos Médiuns, Evangelho segundo
o Espiritismo, A Gênese e O
Céu e o Inferno. E, raras vezes, aparecem referências
às Obras Póstumas, à Revista
Espírita e ao O que é o Espiritismo?,
e quando isso ocorre dão uma importância relativa, como
se a leitura delas fosse de interesse secundário, colocando-as
como obras complementares, que não seria necessário,
mas apenas seria bom lê-las.
Pensando nisso resolvemos, como se diz, “beber água na
fonte” para ver se poderíamos encontrar essa definição
no que escreveu o Codificador. Vejamos, então, o que Kardec
nos fornece como roteiro para estudo.
Em julho de 1859 (3), Kardec recomenda,
aos que querem se esclarecer sobre o Espiritismo, que devem, primeiramente,
estudar o resumo contido no livro O que é Espiritismo?
(na edição francesa há
o ponto de interrogação), justificando:
[...] Nesta rápida exposição
esforçamo-nos por indicar os pontos sobre que particularmente
se deve fixar a atenção do observador. A ignorância
dos princípios fundamentais é a causa das falsas apreciações
da maioria daqueles que querem julgar o que não compreendem,
ou que se baseiam em ideias preconcebidas.
Na sequência, para os que desejam
saber mais, recomenda:
Se desta leitura nascer o desejo
de continuar, deve-se ler O Livro dos Espíritos,
onde os princípios da doutrina estão completamente
desenvolvidos; depois, O Livro dos Médiuns
para a parte experimental, destinado a servir de guia para
aqueles que querem operar por si mesmos, como para aqueles que querem
bem compreender os fenômenos. Vêm depois as diversas
obras onde estão desenvolvidas as aplicações
e as consequências da doutrina, como: O Evangelho
Segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno
Segundo o Espiritismo, etc.
Voltando ao assunto, em janeiro de
1861 (4), aconselha, aos que querem adquirir
as noções preliminares sobre o Espiritismo, que leiam,
nesta ordem:
1º - O
que é o Espiritismo?
Esta brochura, de uma centena de páginas
somente, contém sumária exposição dos
princípios da Doutrina Espírita, um apanhado geral
desta, permitindo ao leitor apreender-lhe o conjunto dentro de um
quatro restrito. Em poucas palavras ele lhe percebe o objetivo e
pode julgar do seu alcance. Aí se encontram, além
disso, respostas às principais questões ou objeções
que os novatos se sentem naturalmente propensos a fazer. Esta primeira
leitura, que muito pouco tempo consome, é uma introdução
que facilita um estudo aprofundado.
2º - O Livro dos Espíritos.
Contém a doutrina completa, como a ditaram os próprios
Espíritos, com toda a sua filosofia e todas as suas consequências
morais. É a revelação do destino do homem,
a iniciação no conhecimento da natureza dos Espíritos
e aos mistérios da vida de além-túmulo. Quem
o lê compreende que o Espiritismo objetiva um fim sério,
que não constitui frívolo passatempo.
3º - O Livro dos Médiuns.
Destina-se a guiar os que queiram entregar-se à prática
das manifestações, dando-lhes conhecimento dos meios
próprios para se comunicar com os Espíritos. É
um guia, tanto para os médiuns, como para os evocadores,
e o complemento de O Livro dos Espíritos.
4º - A
Revue Spirite. Variada coletânea de fatos,
de explicações teóricas e de trechos isolados,
que completam o que se encontra nas duas obras precedentes, formando-lhes,
de certo modo, a aplicação. Sua leitura pode fazer-se
simultaneamente com a daquelas obras, porém, mais proveitosa
será, e, sobretudo, mais inteligível, se for feita
depois de O Livro dos Espíritos.
Isto pelo que nos diz respeito.
Os que desejam tudo conhecer de uma ciência devem necessariamente
ler tudo o que se ache escrito sobre a matéria, ou, pelo
menos, o que haja de principal, não se limitando a um único
autor. Devem mesmo ler o pró e o contra, as críticas
como as apologias, inteirar-se dos diferentes sistemas, a fim de
poderem julgar por comparação.
No mês seguinte (5)
(fevereiro de 1861), há uma importante fala de Kardec, sobre
as publicações das comunicações espontâneas
na Revista Espirita, que vem, com certeza, justificar o porquê
da recomendação de sua leitura. Leiamos:
[…] O que lhe dá essa
opinião é que a grande quantidade de matérias,
e a necessidade de coordená-las, permitem muito raramente
publicar todas essas questões no número da Revista
onde elas são mencionadas no boletim; mas, cedo ou tarde,
nela encontram o seu lugar. Aliás, elas constituem um dos
elementos essenciais das obras sobre o Espiritismo; foram aproveitadas
em O Livro dos Espíritos e em O
Livro dos Médiuns onde estão classificadas
segundo o seu objeto, e nenhuma daquelas que são essenciais
foi omitida. [...].
Ressaltamos que, segundo o próprio
Kardec, as comunicações espontâneas que foram
publicadas na Revista Espírita “constituem
um dos elementos essenciais das obras sobre o Espiritismo”,
citando os dois livros em que elas foram aproveitadas.
Em janeiro de 1868 (6), cerca de pouco
mais de um ano antes de sua morte, Kardec reafirma, que se encontra
na Revista Espírita:
“[...] em forma de esboços,
a maioria das ideias desenvolvidas aqui nesta obra, conforme o fizemos,
com relação às anteriores. [...]”, conclui
dizendo que “A Revue, muita vez, representa
para nós um terreno de ensaio, destinado a sondar a opinião
dos homens e dos Espíritos sobre alguns princípios,
antes de os admitir como partes constitutivas da doutrina”.
Kardec, desde a primeira edição
de A Gênese, 06 janeiro de 1868, também
cita a coleção da Revista Espírita
como parte integrante das obras fundamentais da Doutrina. De igual
modo, em março de 1869, ele, novamente, a cita dentro deste
contexto, quando da publicação do Catálogo
racional: obras para se fundar uma biblioteca espírita.
Vale a pena lembrar o conselho de Herculano Pires (7)
que estendia a necessidade de estudo também à Revista
Espírita:
[...] Precisamos de estudar Kardec
intensamente, de assimilar os ensinos das obras básicas,
de mergulhar nas páginas de outro da “Revista
Espírita”, não apenas lendo-as, mas
meditando-as, aprofundando-as, redescobrindo nelas todo o tesouro
de experiências, exemplos, ensinos e moralidade que Kardec
nos deixou. [...]
Concluímos que se básico
significa “que ou o que serve de base, de fundamento; basilar,
fundamental” (Houaiss), então, pelo que pudemos perceber
das próprias recomendações de Kardec, teremos
que discriminá-las assim: O
que é o Espiritismo, O Livro dos Espíritos, O Livro
dos Médiuns, A Gênese, O Evangelho Segundo o Espiritismo,
O Céu e o Inferno, A Revista Espírita.
As essas acrescentaríamos, por nossa conta, o livro
Obras Póstumas,
por ser uma publicação de escritos inéditos de
Kardec. Se daí quiserem dividi-las em “de iniciação”,
“importantes” e “complementares”, não
faz a menor diferença, desde que se as tenham como OBRAS
FUNDAMENTAIS e que, obviamente, a leitura de todas elas seja
recomendada e não como se faz atualmente, restringindo em apenas
cinco delas.
Na revista Reformador, de setembro de 1977, publicação
da FEB – Federação Espírita Brasileira
(8), encontramos algo que, talvez, possa
justificar essa forma de enquadrar as obras da Codificação:
“DOUTRINA ESPÍRITA
É O CONJUNTO DE PRINCÍPIOS básicos, codificados
por Allan Kardec, que constituem o Espiritismo. Estes princípios
estão contidos nas obras fundamentais, que são:
“O Livro dos Espíritos”,
“O Livro dos Médiuns”, “O Evangelho segundo
o Espiritismo”, “O Céu e o Inferno”, “A
Gênese”. Todas as demais obras espíritas,
por mais preciosas que sejam ou venham a ser, são e serão
obras complementares, sem que isso diminua o extraordinário
valor de muitas delas, pois a Doutrina Espírita é,
como a definiu o próprio Codificador, “essencialmente
progressiva”.
Reformador, nº 1782, setembro de 1977,
p. 258
(grifo nosso)
Embora as nomeiem de obras fundamentais, listam somente as cinco,
que, provavelmente, com o tempo passaram a ser denominadas de obras
básicas, numa corruptela da citação “princípios
básicos”.
E aos que somente leem a primeira obra doutrinária publicada,
achando que tudo está nela, transcrevemos essa esclarecedora
fala de Kardec (9): “[...] O Livro dos Espíritos
não é um tratado completo do Espiritismo; não
faz senão colocar-lhe as bases e os pontos fundamentais, que
devem se desenvolver sucessivamente pelo estudo e pela observação
[...]”.