Paulo
da Silva Neto Sobrinho
> A Reencarnação é um dogma dos espíritas?
Aí está um erro que prova, uma
vez mais, o perigo dos julgamentos apressados e sem exame. (KARDEC).
Julga-se sempre mal uma religião, tomando-se por ponto de partida
exclusivo suas crenças pessoais. Porque então é
difícil de se defender de um sentimento de parcialidade na
apreciação dos princípios.
(KARDEC).
[...] queríamos fazer do Espiritismo uma ciência de raciocínio
e não de credulidade.
(KARDEC).
Não se perseguiram senão as idéias as quais via-se
um futuro; as que julgavam sem consequência, se as deixaram
que morressem de morte natural.
(KARDEC)
A perseguição contra as idéias falsas, errôneas,
é inútil, porque estas se desacreditam e caem por si
mesmas; […]
(KARDEC)
É muito comum, entre os fundamentalistas,
especialmente os que se tornaram ferrenhos detratores do Espiritismo,
a tentativa de nos igualarem a eles, na questão de viver em meio
a dogmas, como resposta ao fato de sempre os estarmos denominando de
dogmáticos. Diante disso, eles se esforçam, e muito, em
demonstrar que também temos dogmas; para isso, apresentam como
“prova incontestável” o fato de Kardec ter, expressamente,
dito: “dogma da reencarnação”. Um bom exemplo
disso, vamos encontrar em René Guénon (1886-1951),
filósofo, metafísico e crítico social francês,
foi um antiespírita de carteirinha, que na sua obra O erro Espírita,
diz:
Na França mesmo, alguns
dos primeiros espíritas, como Piérart e Anatole Barthe,
separaram-se de Allan Kardec sobre este ponto; mas, hoje em dia, pode-se
dizer que o espiritismo francês todo inteiro tem feito
da reencarnação um verdadeiro “dogma”; Allan
Kardec mesmo, aliás, não tinha vacilado em chamá-la
com este nome. […] (GUÉNON,
2010, p. 197-198) (grifo nosso).
Geralmente as pessoas que agem assim, querendo nos imputar dogmas
(o que não temos), não têm argumentos lógicos
para nos combater, apelam para qualquer coisa; acham, ingenuamente,
que, com essa atitude de taxar a reencarnação de dogma,
conseguirão “acabar de vez” com ela e, consequentemente,
com o Espiritismo. Aliás, há um modo mais fácil
de acabar com o ele, basta destruir a sua base fundamental que é,
primeiro, Deus e depois a existência da alma (KARDEC,
1993d, p. 224). É
bem provável que Pascal esteja certo nesta fala: “É
uma doença natural ao homem crer que possui a verdade diretamente;
e daí vem que está sempre disposto a negar o que lhe é
incompreensível" (KARDEC,
1993e, p. 36). Ademais,
deviam ter lido, pelo menos, estes três pensamentos de Kardec:
[…] sempre temos dito
aos adversários do Espiritismo: o único meio de matá-lo,
é dar alguma coisa melhor, de mais consolador, que explique
mais e que satisfaça mais. E é o que ninguém
ainda fez. (KARDEC, 1993e, p. 7);
Quando se declara discípulo da ciência e campeão
da livre consciência, é irracional, em nossa opinião,
colocar em seguida como um dogma uma crença qualquer, impossível
de provar cientificamente.
(KARDEC, 1999, p. 34);
e
Jamais tivemos a pretensão de coordenar a liberdade de ninguém,
nem de impor nossas idéias a quem quer que seja, não
as considerando como devendo fazer lei.
(KARDEC, 1999, p. 79).
E, uma vez que mencionamos
isso, vejamos a lógica com que Kardec tratou aqueles que entendem
que essa idéia é contrária aos dogmas, nos quais
acreditam:
Algumas pessoas objetam à
doutrina da reencarnação que ela é contrária
aos dogmas da Igreja, e disso concluem que não deve existir;
que se pode responder-lhes?
A resposta é muito simples. A reencarnação
não é um sistema que dependa dos homens adotar ou rejeitar,
como se faz com um sistema político, econômico ou social.
Se ela existe, é que está na Natureza;
é uma lei inerente à Humanidade, como beber, comer e
dormir; uma alternativa da vida da alma, como a vigília e o
sono são alternativas da vida do corpo.
Se é uma lei da Natureza, não é uma opinião
que pode fazê-la prevalecer, nem uma opinião contrária
que pode impedi-la de ser. A Terra não gira ao redor do Sol
porque se crê que ela gira, mas porque obedece a uma lei e os
anátemas que se lançaram contra essa lei não
impediram a Terra de girar. Ocorre assim com a reencarnação;
não é a opinião de alguns homens que os impedirá
de renascer, se devem fazê-lo. Estando, pois, admitido
que a reencarnação não pode ser senão
uma lei da Natureza, suponhamos que ela não possa
concordar com um dogma, trata-se de saber quem tem razão, o
dogma ou a Lei. Ora, quem é o autor de uma lei da Natureza,
se não for Deus? Direi, neste caso, que não
é a lei que é contrária ao dogma, mas o dogma
que é contrário à lei, tendo em vista que uma
lei da Natureza qualquer é anterior ao dogma, e que os homens
renasciam antes que o dogma fosse estabelecido. Se havia incompatibilidade
absoluta entre um dogma e uma lei da Natureza, isso seria a prova
de que o dogma é obra dos homens que não conhecem a
lei, porque Deus não pode se contradizer, desfazendo
de um lado o que faz de outro; sustentar essa incompatibilidade é,
pois, condenar o dogma. Segue-se que o dogma seja falso? Não,
mas simplesmente que pode ser suscetível de uma interpretação,
como se interpretou a Gênese quando foi reconhecido que os seis
dias da criação não podiam concordar com a lei
da formação do globo. A religião nisso ganhará,
tendo em vista que achará menos incrédulos.
A questão é saber
se a lei da reencarnação existe ou não existe.
Para os Espíritas há mil provas por uma que é
inútil repetir aqui; direi somente que o Espiritismo demonstra
que a pluralidade das existências é não só
possível, mas necessária, indispensável, e dela
encontra a prova, sem falar da revelação dos Espíritos,
numa multidão inumerável de fenômenos de ordem
moral, psicológica e antropológica; esses fenômenos
são efeitos que têm uma causa, procurando essa causa,
não se a encontra senão na reencarnação
tornada evidente pela observação desses fenômenos,
como a presença do Sol, embora oculto pelas nuvens, torna-se
evidente pela luz do dia. Para provar que há erro, e que essa
lei não existe, seria preciso exprimir melhor do que se o faz,
e por outros meios, TUDO o que ele explica, e é o que ninguém
fez ainda.
(KARDEC, 1993b, p. 375-376) (grifo nosso).
Sendo os dogmas “obra dos homens”,
então não temos nenhuma obrigação moral
de acreditar neles; e, nos dias atuais, nem também precisamos
ter medo de falar assim, pois, certamente, já não mais
iremos parar numa fogueira, para sermos “consumidos” junto
com nossa crença.
Voltando a Kardec:
Assim foi a lógica,
a força do raciocínio, que os conduziu a essa doutrina,
e porque nela encontraram a única chave que podia resolver
os problemas até então insolúveis. No
entanto, nosso honroso correspondente se engana sobre um fato importante,
nos atribuindo a iniciativa desta doutrina, que chama
a filha de nosso pensamento. É uma honra que não nos
ocorre: a reencarnação foi ensinada
pelos Espíritos a outros senão a nós, antes da
publicação de O Livro dos Espíritos; além
disso, o princípio foi claramente colocado
em várias obras anteriores, não somente as nossas, mas
ao aparecimento das mesas girantes, entre outras, em Céu e
Terra, de Jean Raynaud, e num encantador livrinho de Louis Jourdan,
intitulado Preces de Ludowic, publicado em 1849, sem contar que esse
dogma era professado pelos Druidas, aos quais, certamente, não
ensinamos. Quando nos foi revelado, ficamos surpresos, e o acolhemos
com hesitação, com desconfiança: nós o
combatemos durante algum tempo, até que a evidência nos
foi demonstrada. Assim, esse dogma, nós o
ACEITAMOS e não INVENTAMOS, o que é muito diferente.
(KARDEC, 1993b, p. 51).
É puramente pela lógica que
não é preciso tomar a reencarnação como
dogma, a qual é vista por nós, os espíritas, como
um dos princípios fundamentais, ou seja, um dos pontos principais
que formam a base da Doutrina. Aliás, dentre todos os quinze
princípios fundamentais do Espiritismo, somente em relação
a esse, o da reencarnação, é que Kardec utiliza
a palavra dogma; pouquíssimas vezes, por sinal, o que, de antemão,
prova que não vivemos, como, às vezes, os nossos detratores
querem fazer crer, no meio de dogmas instituídos a torto e a
direito. Inclusive, ele considera a reencarnação como
o princípio mais importante da Doutrina Espírita: “Um
dos princípios mais importantes do Espiritismo, sem contradita,
é o da pluralidade das existências corpóreas; quer
dizer, da reencarnação, que os céticos confundem,
voluntariamente ou por ignorância, com o dogma da metempsicose”.
KARDEC, 2000b, p. 295-296). E, aqui, como na transcrição
acima, achamos que Kardec usa a palavra “princípio”
como sinônimo de dogma. Essa outra acepção, que
difere da que geralmente se usa, é, como veremos um pouco mais
à frente, uma das definições da palavra dogma constantes
nos léxicos.
Por outro lado, se não estivermos de todo enganados, na primeira
fala Kardec entende como dogma aquilo que os outros aceitavam como sendo
uma verdade imposta por aqueles que eram considerados como sendo os
de maior conhecimento, pelos demais do grupo, enquanto que, para o próprio
Kardec, a reencarnação, por integrar os fundamentos da
Doutrina Espírita, é a condição sine qua
non desta, o que o levou a adotá-la como princípio, o
seja, repetindo, fazendo parte dos fundamentos doutrinários do
Espiritismo, e não como uma coisa imposta de cima para baixo,
que é a característica de um dogma no sentido usual.
Veja o leitor o que diz Kardec sobre a reencarnação:
Também a linha que ela
segue traz seus frutos; os princípios que professa, baseados
sobre observações conscienciosas, servem hoje de regra
à imensa maioria dos Espíritas. Vistes sucessivamente
cair, diante da experiência, a maioria dos sistemas desabrochados
no início, e é com dificuldade se alguns conservam ainda
raros partidários; isto é incontestável. Quais
são, pois, as idéias que crescem, e quais são
as que declinam? É uma questão de fato. A doutrina
da reencarnação é o princípio que foi
mais controvertido, e seus adversários nada pouparam para atacá-la
vivamente, nem mesmo as injúrias e as grosserias, este argumento
supremo daqueles esgotados de boas razões; por isso
não caminhou menos porque se apóia por uma lógica
inflexível; que sem essa alavanca choca-se contra
dificuldades intransponíveis, e porque, enfim, nada
se encontrou de mais racional para colocar no lugar.
(KARDEC, 1993b, p. 163).
(grifo nosso).
Interessante é que dentre os princípios
da Doutrina o da reencarnação é o que mais se combate,
embora ninguém ainda tenha conseguido derrubá-lo, depois
de século e meio de doutrina.
O motivo pelo qual achamos que Kardec assim pensava é que, para
ele, a reencarnação era um fato, e não propriamente
uma crença; a diferença entre os dois é que o primeiro
– o fato - é uma realidade, que se pode constatar, sendo,
portanto, uma verdade; já a segunda – a crença é
imposta de cima para baixo pelos líderes religiosos como uma
“verdade” a ser aceita pelos fiéis, sem qualquer
preocupação em se a cotejar com os fatos. E é isso
o que concluímos de vários argumentos de Kardec, incluindo
este:
Quanto à reencarnação,
de duas coisas uma: ou ela existe, ou ela não existe: não
há meio termo. Se ela existe, é que está nas
leis da Natureza. Se um dogma diz outra coisa, trata-se de saber quem
tem a razão, o dogma ou a Natureza, que é obra de Deus.
A reencarnação não é, pois, uma
opinião, um sistema, como uma opinião política
ou social, que se pode adotar ou recusar; é um fato ou não
o é; se é um fato, é inútil
não ser do gosto de todo o mundo, tudo o que se disser não
o impedirá de ser um fato. (KARDEC,
1993b, p. 266).
E Kardec explica, novamente, as razões por ter aceito
o princípio da reencarnação, para que tudo fique
bem definido, não deixando margem às dúvidas:
Há igualmente aí
um erro capital. O Espiritismo foi conduzido às suas
teorias pela observação dos fatos, e não
por um sistema preconcebido. O raciocínio do qual fala o autor
é racional, sem dúvida, mas não foi assim que
as coisas se passaram. Os Espíritas concluíram a existência
dos Espíritos, porque os Espíritos se manifestaram espontaneamente;
indicaram a lei que rege as relações do mundo visível
e do mundo invisível, porque observaram essas relações;
admitiram a hierarquia progressiva dos Espíritos, porque os
Espíritos se mostraram a eles em todos os graus de adiantamento;
adotaram o princípio da pluralidade das existências
não só porque os Espíritos lhes ensinaram, mas
porque esse princípio resulta, como lei da Natureza, da observação
dos fatos que temos sob os olhos. Em resumo, o Espiritismo
não admitiu nada a título de hipótese preliminar;
tudo na doutrina é um resultado da experiência. Eis tudo
o que temos muitas vezes repetido em nossas obras.
(KARDEC, 1993c, p. 64)
(grifo nosso).
Fica, portanto, claro que nada foi imposto a ele, razão
pela qual, também por coerência, Kardec não a impôs
aos adeptos do Espiritismo ou a qualquer outra pessoa, é bom
frisar. Inclusive, é o que ele argumenta:
O Espiritismo não
se impõe, aceita-se; ele dá suas razões e não
acha mau que as combata, uma vez que isso seja com armas leais,
e remete-se ao bom senso público para pronunciar-se. Se ele
repousa sobre a verdade, triunfará apesar de tudo; se seus
argumentos são falsos, a violência não os tornará
melhores. O Espiritismo não quer ser acreditado sob
palavra; ele quer o livre exame; sua propaganda se faz dizendo:
Vede o pró e o contra; julgai o que satisfaça melhor
vosso julgamento, o que responda melhor às vossas esperanças
e às vossas aspirações, o que toque mais vosso
coração, e decidi-vos em conhecimento de causa.
(KARDEC, 1993c, p. 84).
Por outro lado, o Espiritismo não dobra as inteligências
sobre seu jugo; não manda uma crença cega;
ele quer que a fé se apoie sobre a compreensão; […]
Ele deixa, pois, a cada um uma inteira liberdade de exame,
em virtude deste princípio, de que a verdade sendo una, deve,
cedo ou tarde, se impor sobre o que é falso, e que um princípio
fundado sobre o erro cai pela força das coisas. […]
(KARDEC, 2000c, p. 306).
(grifo nosso).
Assim, vê-se que a liberdade de questionamento existe,
o que é capital para concluir que a Doutrina não tem nenhum
dogma, uma vez que uma coisa é incompatível com a outra.
Léon Denis (1846-1927), filósofo espírita, contemporâneo
de Kardec, que, depois de sua morte, foi um dos principais continuadores
do Espiritismo, com vários livros publicados entre os quais O
problema do ser, do destino e da dor, publicado em 1905), o qual, sem
meias palavras, disse: “[…] no Espiritismo, nunca é
demais dizê-lo, não há dogmas e cada um dos seus
princípios pode e deve ser discutido, julgado, submetido ao exame
da razão”.
(DENIS, 1989, p. 50).
Dogma, no entendimento popular, é algo imposto, por quem o institui,
o que não ocorre com a reencarnação, conforme acabamos
de ver; e é o que ainda se percebe dessas falas de Kardec, inclusive,
onde se observa que ele não teve a menor preocupação
em fazer os outros acreditarem nela, reencarnação:
[...]. Repetiremos, pois, o
que dissemos a esse respeito, saber que, quando a doutrina
da reencarnação nos foi ensinada pelos Espíritos,
ela estava tão longe do nosso pensamento, que tínhamos
feito, sobre os antecedentes da alma um sistema diferente, de resto,
partilhado por muitas pessoas. A doutrina dos Espíritos, sob
esse assunto, portanto, nos surpreendeu; diremos mais, contrariou,
porque derrubou as nossas próprias idéias;
ela estava longe, como se vê, de ser-lhe o reflexo. Isso não
é tudo; não cedemos ao primeiro choque; combatemos,
defendemos a nossa opinião, levantamos objeções,
e não nos rendemos senão à evidência,
e quando vimos a insuficiência do nosso sistema para resolver
todas as questões que esse assunto levanta.
(KARDEC, 2001a, p. 295-296)
(grifo nosso).
Raciocinamos, como dissemos, abstração feita de todo
ensino espírita que, para certas pessoas não é
uma autoridade. Se nós, e tantos outros, adotamos a
opinião da pluralidade das existências, não foi
somente porque ela nos veio dos Espíritos, mas porque nos pareceu
a mais lógica, e que só ela resolve as questões
até agora insolúveis. Se viesse de um simples
mortal e a adotaríamos do mesmo modo, e não hesitaríamos
antes em renunciar às nossas próprias idéias;
do momento em que um erro é demonstrado, o amor-próprio
tem mais a perder do que a ganhar obstinando-se numa idéia
falsa. Do mesmo modo, teríamos repelido, embora vinda
dos Espíritos, se ela nos parecesse contrária à
razão, como as repelimos muitas outras, porque sabemos, por
experiência, que não é preciso aceitar cegamente
tudo o que vem de sua parte, não mais do que vem da
parte dos homens.
(KARDEC, 2001a, p. 301-302)
(grifo nosso).
Vejamos, agora, a opinião do jornalista,
filósofo, educador e escritor J. Herculano Pires (1914-1979),
“o melhor metro que mediu Kardec”, sobre dogmas de fé:
Os dogmas de fé, que
formam a estrutura conceptual das igrejas, são as pedras de
tropeço do seu caminho evolutivo. Partindo do princípio
de que a Revelação Divina é a própria
palavra de Deus dirigida aos homens, as igrejas se anquilosaram em
seus dogmas intocáveis, pois a exegese humana não poderia
alterar as ordenações ao próprio Deus. Na verdade,
a alteração se verificou em vários casos, apesar
disso, mas decisões conciliares puseram a última pá
de cimento nos erros cometidos. As estruturas eclesiásticas
tornaram-se rígidas e as igrejas confirmaram, no seu espírito,
a ossatura de pedra de suas catedrais. Vangloriam-se ainda hoje da
sua imutabilidade, num mundo em que tudo evolui sem cessar. Os resultados
dessa atitude ilusória e pretensiosa só poderiam ser
nefastos, como vemos atualmente no lento e doloroso processo de agonia
das religiões. Incidiram assim no pecado do apego, contra o
qual os Evangelhos advertiram os homens. Apegaram-se de tal maneira
à própria vida, que perderam a vida em abundância
que Jesus prometeu aos que se desapegassem. As liberalidades atuais
chegaram demasiado tarde.
A palavra dogma é grega e seu sentido original é
opinião. Adquiriu em filosofia e religião o sentido
de princípio doutrinário. Nas Escrituras religiosas
aparece algumas vezes com o sentido de édito ou decreto de
autoridades judaicas ou romanas. Entre o dogma religioso e
o filosófico há uma diferença fundamental. O
dogma religioso é de fé, princípio de fé
que não pode ser contraditado, pois provém da Revelação
de Deus. O dogma filosófico é racional, dogma de razão,
ou seja, princípio de uma doutrina racionalmente estruturada.
O sentido religioso superou os demais por motivo das consequências
muitas vezes desastrosas da sua rigidez e imutabilidade. Se falarmos,
por exemplo, em dogmática, esse termo é geralmente entendido
como designando a estrutura dos dogmas fundamentais de uma religião.
Por isso, a adjetivação de dogmática, que implica
também o masculino, como nas expressões: pessoa dogmática,
posição dogmática ou homem dogmático,
significa intransigência de opiniões. O mesmo acontece
com o substantivo dogmatismo, que designa um sistema de opiniões
intransigentes.
Estas influências religiosas na semântica revelam a intensidade
da rigidez a que as igrejas se entregaram, através dos séculos
e dos milênios, na defesa da suposta eternidade de seus princípios
básicos. Temos, portanto, no dogma de fé, um dos motivos
fundamentais da crise das religiões em nossos dias. No Espiritismo,
como em todas as doutrinas filosóficas, existem dogmas de razão,
como o da existência de Deus, o da reencarnação,
o da comunicabilidade dos espíritos após a morte. Muitos
adeptos estranham a presença dessa palavra nos textos de uma
doutrina que se afirma antidogmática, aberta ao livre exame
de todos, os seus princípios. São pessoas ainda apegadas
ao sentido religioso da palavra. Não há nenhuma razão
para essa estranheza, como já vimos, do ponto de vista cultural.
O problema da religião
no Espiritismo tem provocado discussões e controvérsias
infindáveis, porque essa doutrina não se apresenta como
religião no sentido comum do termo. Allan Kardec, discípulo
de Pestalozzi, adotava a posição de seu mestre no tocante
à classificação das religiões. Pestalozzi
admitia a existência de três tipos de religião:
a animal ou primitiva, a social e a espiritual. Mas recusava-se a
chamar esta última de religião, dando-lhe a designação
de moralidade. Isso porque a religião superior ou espiritual,
segundo ele, só era professada individualmente pela criatura
que superava o ser social e desenvolvia em si o ser moral. Kardec
recusou-se a falar em Religião Espírita, sustentando
que o Espiritismo é doutrina científica e filosófica,
de consequências morais. Mas deu a essas consequências
enorme importância ao considerar o Espiritismo como desenvolvimento
histórico do Cristianismo, destinado a restabelecer a verdade
dos princípios cristãos, deformados pelo processo natural
de sincretismo-religioso que originou as igrejas cristãs.
Essa posição espírita manteve a doutrina e o
movimento doutrinário em posição marginal no
campo religioso. Para os espíritas, entretanto, a posição
da doutrina não é marginal, mas superior, pois o Espiritismo
representaria o cumprimento da profecia evangélica da Religião
em espírito e verdade, que se desenvolveria sob a égide
do próprio Cristo. A religião espírita não
se organizou em forma de igreja, não admite sacramentos nem
admitiu nenhuma forma de autoridade religiosa de tipo sacerdotal.
Não há batismo, nem casamento religioso no Espiritismo,
nem confissões ou indulgências. Todos esses formalismos
são considerados como de origem pagã e judaica. Entende-se
o batismo como rito de iniciação, que Jesus substituiu
pelo batismo do espírito, sendo este considerado .como a iniciação
no conhecimento doutrinário, feita naturalmente pelo estudo
da doutrina, sem nenhum ato ritual. Admite-se também que o
batismo do espírito, segundo o texto do Livro de Atos dos Apóstolos
sobre a visita de Pedro à casa do centurião Cornélius,
no porto de Jope, pode completar-se, nos médiuns, quando se
verifica espontaneamente, com o desenvolvimento da mediunidade.
Essa posição espírita no campo religioso causou
numerosas dificuldades aos espíritas no tocante às relações
de instituições doutrinárias com os poderes oficiais,
particularmente para a declaração de religião
em documentos oficiais, para o resguardo dos direitos escolares em
face do ensino religioso, para a declaração de religião
nos recenseamentos da população, até que medidas
oficiais reconheceram esses direitos.
Em compensação, o Espiritismo ficou livre das consequências
da crise religiosa, que não o atingiram. Demonstrarei nos capítulos
seguintes a posição da Religião Espírita
em face dessa crise, que é evidentemente uma posição
de vanguarda. Sua contribuição para a racionalização
dos princípios religiosos, para a reintegração
da Religião no plano cultural, particularmente no tocante aos
problemas científicos da atualidade, é realmente substancial.
No campo filosófico a posição espírita
é também vanguardeira, pois desde o século passado
sua filosofia se apresenta como livre dos prejuízos do espírito
de sistema, conservando-se aberta a todas as renovações
que decorrem de descobertas cientificamente comprovadas. Livre
da dogmática religiosa e da sistemática filosófica,
apoiada inteiramente na pesquisa científica, a doutrina está
de fato a cavaleiro nas crises da atualidade.
(PIRES, 2000, p. 26-30). (grifo nosso).
Não fugindo dos fatos, podemos confirmar que, realmente,
em O Livro dos Espíritos, sua primeira obra, se expressou Kardec,
dizendo “dogma da reencarnação”; porém,
para não perder o costume, cabe-nos questionar: o sentido que
ali ele empregou, para a palavra dogma, é o mesmo usado por aqueles
que querem que o que eles dizem seja aceito como uma verdade.
Oportuno colocarmos, antes das definições dos dicionários,
como Júlio Abreu Filho (1893-1971), tradutor do francês
para o português da "Revue Spirite", publicada por Allan
Kardec durante doze anos consecutivos, explica a palavra dogma.
Dogma –
do grego e latim dogma: opinião, crença, ponto de vista.
Antes da Era Cristã, o dogma era considerado como o conhecimento
das tradições ocultas, secretas, da Igreja, as quais
só podiam ser compreendidas misticamente por meio de símbolos
ou aqueles que derivassem de seitas secretas, como os discípulos
de Sócrates, Platão e Aristóteles, também
condenado à morte, mas graças a Deus conseguiu fugir
antes de dar a cidade de Atenas a chance de pecar novamente contra
a filosofia, como acontecera a Sócrates. Após os primeiros
Concílios o dogma ficou sendo considerado os pontos ou princípios
expostos e definidos pela Igreja, ou qualquer sistema ou doutrina
que seja, ou queira ser e ter a verdade absoluta do que prega ou ensina.
O dogma passou a ser utilizado pela Igreja para congelar as teorias
existentes que divergiam de seus ensinamentos. “O mundo muda,
os acontecimentos se sucedem e o homem dogmático permanece
petrificado nos conhecimentos dados de uma vez por todas”
(Aranha, M. L. A. e Martins, M. H. P.
Filosofando - Introdução a Filosofia, cap. 5 item 8).
Dogma Versão
Eclesiástica - Na linguagem eclesiástica, o
termo se aplica às doutrinas ou princípios ensinados
em nome de Deus. As fontes dos dogmas das Igrejas são as Escrituras
- Bíblia - e a Tradição. A Tradição
compreende: a) os decretos infalíveis e irrevogáveis
dos Concílios gerais e dos Papas, que falam ex-cathedra; b)
os símbolos da fé – sinal da cruz, batismos, exorcismo,
etc... c) escritos dos pais e doutores da Igreja - Cipriano, Eusébio,
Agostinho, Jerônimo, Tertuliano, Tomas de Aquino, Cirilo de
Alexandria e etc... d) a liturgia que consiste na ordem das cerimônias
e preces de que se compõe o serviço divino. Para a maioria
das Religiões, os dogmas são revelações
diretas de Deus, são imutáveis e inquestionáveis.
Segundo a “lógica” da teologia das Igrejas cristãs,
as revelações cessaram após a morte do último
apóstolo, ficando as Igrejas impedidas de fazerem novas revelações
e criar novos dogmas.
Dogma Versão
Grega - Dogmatikós, que se funda em princípios
ou é relativo a uma doutrina. Derivado de igual voz grega,
dogma significa opinião dada como certa e intangível,
ou seja, um Axioma. Por exemplo: a Terra gira em torno do Sol, independente
das pessoas aceitarem ou não, ela não deixará
de girar. É nessa acepção que Kardec deixou que
alguns Espíritos empregassem o termo dogma da reencarnação.
“Como quer que seja, não existem dogmas – na linguagem
eclesiástica - na Doutrina dos Espíritos, onde tudo
é demonstrado ou demonstrável e onde não se admite
manifestações direto de Deus”.
(Kardec, A. Revista Espírita -
1862, março, p. 86 (notas de rodapé do tradutor)
Portanto, aqui já temos o que o termo dogma, foi utilizado
por Kardec no sentido de “opinião dada como certa e intangível,
ou seja, um Axioma, tomando do sentido grego, pelo qual ele é
entendido como algo “que se funda em princípios ou é
relativo a uma doutrina”.
A definição usual é a que encontramos nos dicionários:
Aurélio:
[Do lat. dogma, atis < gr. dógma, atos, 'decisão'.]
S. m. 1. Ponto fundamental e indiscutível duma doutrina religiosa,
e, p. ext., de qualquer doutrina ou sistema. 2. Rel. Na Igreja Católica
Apostólica Romana, ponto de doutrina já por ela definido
como expressão legítima e necessária de sua fé.
Houaiss:
s.m. (a1710) 1 teol ponto fundamental de uma doutrina religiosa, apresentado
como certo e indiscutível <d. da santíssima trindade>
2 p.ext. qualquer doutrina (filosófica, política etc.)
de caráter indiscutível 3 p.ext. princípio
estabelecido; opinião firmada; preceito, máxima.
etim gr. dógma,atos 'o que nos parece bom', donde 'opinião,
decisão, decreto', adp. ao lat. dogma,àtis 'opinião,
preceito, dogma' col dogmática.
Michaelis:
dog.ma s. m. 1. Ponto ou princípio de fé definido pela
Igreja. 2. Fundamento de qualquer sistema ou doutrina.
3. O conjunto das doutrinas fundamentais do cristianismo.
É certo, portanto, que, usualmente,
ela é empregada para designar algo indiscutível relativo
a uma doutrina religiosa; porém, há um outro sentido que
é o “fundamento de qualquer sistema ou doutrina”
(Michaelis) ou “princípio estabelecido; opinião
firmada; preceito, máxima” (Houaiss), o que não
pode ser desprezado.
Russell Norman Champlim é quem vai nos explicar para que servem
os dogmas:
[…] os dogmas
são criados essencialmente para simplificarem as coisas e conferirem-nos
algum conforto mental. Pois, se já conhecemos tudo
quanto é essencial que seja conhecido, então podemos
descansar e olvidar qualquer inquirição que procure
por maiores luzes. O dogma pertence à essência mesma
da letra que mata. O seu propósito é impor organização
e ordem a um sistema de ideias, a fim de que esse sistema possa ser
mais facilmente apreendido e aplicado. Porém, torna-se
algo muito prejudicial quando começa a erguer muralhas que
aprisionam a mente e o espírito. E torna-se ainda
pior quando persegue aqueles que tentam escapar de seus estreitos
limites. Literalmente falando, os dogmas têm sido a causa de
morte de muitos corpos humanos. Têm sido a fonte de inúmeras
perseguições religiosas. Têm servido para embotar
muitas mentes. Os dogmas têm criado inimizades. São os
principais aliados dos preconceitos.
(CHAMPLIN, 1981(?), p. 159)
De forma bem resumida, mas bem interessante, Carl
Gustav Jung também deu sua definição: “um
dogma, isto é, uma profissão de fé indiscutível
surge apenas quando se pretende esmagar uma dúvida, de uma por
todas”. (JUNG, 1975,
p. 136) (grifo
nosso)
Entretanto, para entender em qual sentido Kardec a usou, devemos nos
basear na sua maneira de expressar-se; para isso vamos transcrever os
textos, nos quais ele utilizou essa palavra.
Em sua primeira obra, O Livro dos Espíritos (1857),
podemos encontrar:
171. Em que se funda o dogma
da reencarnação?
“Na justiça de Deus e na revelação, pois
incessantemente repetimos: o bom pai deixa sempre aberta a seus filhos
uma porta para o arrependimento. Não te diz a razão
que seria injusto privar para sempre da felicidade eterna todos aqueles
de quem não dependeu o melhorarem-se? Não são
filhos de Deus todos os homens? Só entre os egoístas
se encontram a iniquidade, o ódio implacável e os castigos
sem remissão.”
(KARDEC, 1995a, p. 121).
Kardec coloca, em complemento
a essa resposta, a seguinte explicação:
Todos os Espíritos tendem
para a perfeição e Deus lhes faculta os meios de alcançá-la,
proporcionando-lhes as provações da vida corporal. Sua
justiça, porém, lhes concede realizar, em novas existências,
o que não puderam fazer ou concluir numa primeira prova.
Não obraria Deus com equidade, nem de acordo com a Sua bondade,
se condenasse para sempre os que talvez hajam encontrado, oriundos
do próprio meio onde foram colocados e alheios à vontade
que os animava, obstáculos ao seu melhoramento. Se a sorte
do homem se fixasse irrevogavelmente depois da morte, não seria
uma única a balança em que Deus pesa as ações
de todas as criaturas e não haveria imparcialidade no tratamento
que a todas dispensa.
A doutrina da reencarnação, isto é,
a que consiste em admitir para o Espírito muitas existências
sucessivas, é a única que corresponde à idéia
que formamos da justiça de Deus para com os homens que se acham
em condição moral inferior; a única que pode
explicar o futuro e firmar as nossas esperanças, pois que nos
oferece os meios de resgatarmos os nossos erros por novas provações.
A razão no-la indica e os Espíritos
a ensinam.
O homem, que tem consciência da sua inferioridade, haure consoladora
esperança na doutrina da reencarnação.
Se crê na justiça de Deus, não pode contar que
venha a achar-se, para sempre, em pé de igualdade com os que
mais fizeram do que ele. Sustém-no, porém, e lhe reanima
a coragem a idéia de que aquela inferioridade não o
deserda eternamente do supremo bem e que, mediante novos esforços,
dado lhe será conquistá-lo. Quem é que, ao cabo
da sua carreira, não deplora haver tão tarde ganho uma
experiência de que já não mais pode tirar proveito?
Entretanto, essa experiência tardia não fica perdida;
o Espírito a utilizará em nova existência.
(KARDEC, 1995a, p. 121-122)
Como se vê da pergunta, Kardec utiliza o termo dogma como
uma forma de dar o mesmo sentido que alguns seguimentos religiosos atribuem
aos princípios doutrinários que servem de base à
sua religião. E, nesse caso, o termo reencarnação
não poderia ter outro tratamento que não o de “dogma”,
para demonstrar que a reencarnação integra os princípios
básicos da Doutrina Espírita. Veja que, na visão
de um codificador, como Kardec foi do Espiritismo, ele já faz
uso da palavra “doutrina”, dizendo incisivamente: “Ele
[Espiritismo] repousa, por conseguinte, em princípios independentes
das questões dogmáticas” (KARDEC,
2001b, p. 130). Ou seja,
ele parte do princípio de que a reencarnação é
imanente à Doutrina Espírita, isto é, ambas estão
intrinsecamente ligadas, mas com uma característica: a Doutrina
Espírita não existe sem a reencarnação,
enquanto a reencarnação independe da existência
de qualquer doutrina, ou religião. Já o dogma, pelo que
consta dos dicionários, tem o conceito de que é algo imposto
de “cima para baixo”, ou seja, decorre de imposição,
partindo de quem o institui.
Não podemos deixar de citar, por oportuno, a nota do editor,
relacionada à pergunta acima, constante da edição
Petit dessa mesma obra:
1 - Dogma:
essa palavra adquiriu de forma genérica o significado de um
princípio, um ponto de doutrina infalível e indiscutível.
Porém, o seu verdadeiro sentido não é esse. A
Doutrina Espírita não é dogmática no sentido
que se conhece em alguns credos religiosos que adotam o princípio
de filosofia em que a fé se sobrepõe à razão
(fideísmo) para acomodar e justificar suas posições
de crença.
A palavra dogma está aqui com o seu significado, isto
é, a união de um fundamento, um princípio divino,
com a experiência humana. Allan Kardec a emprega aqui
e nas demais obras da Codificação Espírita com
esse sentido, e igualmente os Espíritos se referiram ao dogma
da reencarnação com essa significação,
como se vê na resposta e à frente, na Parte Segunda,
cap. 5, desta obra (N. E.). (KARDEC,
s/d, p. 96) (grifo nosso).
Explicações que, certamente, ajudarão no
entendimento do real significado que a palavra dogma, empregada por
Kardec, deve ter para nós, os espíritas.
205. A algumas pessoas a
doutrina da reencarnação se afigura destruidora
dos laços de família, com o fazê-los anteriores
à existência atual.
“Ela os distende; não os destrói. Fundando-se
o parentesco em afeições anteriores, menos precários
são os laços existentes entre os membros de uma mesma
família. Essa doutrina amplia os deveres da
fraternidade, porquanto, no vosso vizinho, ou no vosso servo, pode
achar-se um Espírito a quem tenhais estado presos pelos laços
da consanguinidade. (KARDEC, 1995a, 135-136).
222. Não é novo, dizem alguns, o dogma da reencarnação;
ressuscitaram-no da doutrina de Pitágoras. Nunca dissemos ser
de invenção moderna a Doutrina Espírita. Constituindo
uma lei da Natureza, o Espiritismo há de ter existido desde
a origem dos tempos e sempre nos esforçamos por demonstrar
que dele se descobrem sinais na antiguidade mais remota. Pitágoras,
como se sabe, não foi o autor do sistema da metempsicose; ele
o colheu dos filósofos indianos e dos egípcios, que
o tinham desde tempos imemoriais. A idéia da transmigração
das almas formava, pois, uma crença vulgar, aceita pelos homens
mais eminentes. De que modo a adquiriram? Por uma revelação,
ou por intuição? Ignoramo-lo. Seja, porém, como
for, o que não padece dúvida é que uma idéia
não atravessa séculos e séculos, nem consegue
impor-se a inteligências de escol, se não contiver algo
de sério. Assim, a ancianidade desta doutrina, em vez de ser
uma objeção, seria prova a seu favor. Contudo, entre
a metempsicose dos antigos e a moderna doutrina da reencarnação,
há, como também se sabe, profunda diferença,
assinalada pelo fato de os Espíritos rejeitarem, de maneira
absoluta, a transmigração da alma do homem para os animais
e reciprocamente.
Portanto, ensinando
o dogma da pluralidade das existências corporais, os Espíritos
renovam uma doutrina que teve origem nas primeiras idades
do mundo e que se conservou no íntimo de muitas pessoas, até
aos nossos dias. Simplesmente, eles a apresentam de um ponto de vista
mais racional, mais acorde com as leis progressivas da Natureza e
mais de conformidade com a sabedoria do Criador, despindo-a de todos
os acessórios da superstição. Circunstância
digna de nota é que não só neste livro os Espíritos
a ensinaram no decurso dos últimos tempos: já antes
da sua publicação, numerosas comunicações
da mesma natureza se obtiveram em vários países, multiplicando-se
depois, consideravelmente. Talvez fosse aqui o caso de examinarmos
por que os Espíritos não parecem todos de acordo sobre
esta questão. Mais tarde, porém, voltaremos a este assunto.
[...]
Essas questões facilmente
se multiplicariam ao infinito, porquanto inúmeros são
os problemas psicológicos e morais que só na pluralidade
das existências encontram solução. Limitamo-nos
a formular as de ordem mais geral. Como quer que seja, alegar-se-á
talvez que a Igreja não admite a doutrina da reencarnação;
que ela subverteria a religião. Não temos o intuito
de tratar dessa questão neste momento. Basta-nos o havermos
demonstrado que aquela doutrina é eminentemente moral e racional.
Ora, o que é moral e racional não pode estar em oposição
a uma religião que proclama ser Deus a bondade e a razão
por excelência. Que teria sido da religião, se, contra
a opinião universal e o testemunho da ciência, se houvesse
obstinadamente recusado a render-se à evidência e expulsado
de seu seio todos os que não acreditassem no movimento do Sol
ou nos seis dias da criação? Que crédito houvera
merecido e que autoridade teria tido, entre povos cultos, uma religião
fundada em erros manifestos e que os impusesse como artigos de fé?
Logo que a evidência se patenteou, a Igreja, criteriosamente,
se colocou do lado da evidência. Uma vez provado que certas
coisas existentes seriam impossíveis sem a reencarnação,
que, a não ser por esse meio, não se consegue explicar
alguns pontos do dogma, cumpre admiti-lo e reconhecer meramente aparente
o antagonismo entre esta doutrina e a dogmática. Mais adiante
mostraremos que talvez seja muito menor do que se pensa a distância
que, da doutrina das vidas sucessivas, separa a religião
e que a esta não faria aquela doutrina maior mal do que lhe
fizeram as descobertas do movimento da Terra e dos períodos
geológicos, as quais, à primeira vista, pareceram desmentir
os textos sagrados. Demais, o princípio da reencarnação
ressalta de muitas passagens das Escrituras, achando-se especialmente
formulado, de modo explícito, no Evangelho:
“Quando desciam da montanha
(depois da transfiguração), Jesus lhes fez esta recomendação:
Não faleis a ninguém do que acabastes de ver, até
que o Filho do homem tenha ressuscitado, dentre os mortos. Perguntaram-lhe
então seus discípulos: Por que dizem os escribas ser
preciso que primeiro venha Elias? Respondeu-lhes Jesus: É certo
que Elias há de vir e que restabelecerá todas as coisas.
Mas, eu vos declaro que Elias já veio, e eles não o
conheceram e o fizeram sofrer como entenderam. Do mesmo modo darão
a morte ao Filho do homem. Compreenderam então seus discípulos
que era de João Batista que ele lhes falava.” (São
Mateus, cap. XVII.)
Pois que João Batista fora Elias, houve reencarnação
do Espírito ou da alma de Elias no corpo de João Batista.
Em suma, como quer que opinemos acerca da reencarnação,
quer a aceitemos, quer não, isso não constituirá
motivo para que deixemos de sofrê-la, desde que ela exista,
mau grado a todas as crenças em contrário. O essencial
está em que o ensino dos Espíritos é eminentemente
cristão; apoia-se na imortalidade da alma, nas penas e recompensas
futuras, na justiça de Deus, no livre-arbítrio do homem,
na moral do Cristo. Logo, não é antirreligioso (KARDEC,
1995a, p. 143-152).
613. Embora de todo errônea, a idéia ligada à
metempsicose não terá resultado do sentimento intuitivo
que o homem possui de suas diferentes existências?
“Nessa, como em muitas outras crenças, se depara esse
sentimento intuitivo. O homem, porém, o desnaturou, como costuma
fazer com a maioria de suas idéias intuitivas.”
Seria verdadeira a metempsicose,
se indicasse a progressão da alma, passando de um estado a
outro superior, onde adquirisse desenvolvimentos que lhe transformassem
a natureza. É, porém, falsa no sentido de transmigração
direta da alma do animal para o homem e reciprocamente, o que implicaria
a idéia de uma retrogradação, ou de fusão.
Ora, o fato de não poder semelhante fusão operar-se,
entre os seres corporais das duas espécies, mostra que estas
são de graus inassimiláveis, devendo dar-se o mesmo
com relação aos Espíritos que as animam. Se um
mesmo Espírito as pudesse animar alternativamente, haveria,
como consequência, uma identidade de natureza, traduzindo-se
pela possibilidade da reprodução material.
A reencarnação, como os Espíritos a ensinam,
se funda, ao contrário, na marcha ascendente da Natureza e
na progressão do homem, dentro da sua própria espécie,
o que em nada lhe diminui a dignidade. O que o rebaixa é o
mau uso que ele faz das faculdades que Deus lhe outorgou para que
progrida. Seja como for, a ancianidade e a universalidade da doutrina
da metempsicose e, bem assim, a circunstância de a
terem professado homens eminentes provam que o princípio
da reencarnação se radica na própria
Natureza.
(KARDEC, 1995a, p. 302).
1010a - Assim, pelo dogma da ressurreição
da carne, a própria Igreja ensina a doutrina da reencarnação?
“É evidente. Demais essa doutrina decorre
de muitas coisas que têm passado despercebidas e que dentro
em pouco se compreenderão neste sentido. Reconhecer-se-á
em breve que o Espiritismo ressalta a cada passo do texto mesmo das
Escrituras sagradas. Os Espíritos, portanto, não vêm
subverter a religião, como alguns o pretendem. Vêm, ao
contrário, confirmá-la, sancioná-la por provas
irrecusáveis. Como, porém, são chegados os tempos
de não mais empregarem linguagem figurada, eles se exprimem
sem alegorias e dão às coisas sentido claro e preciso,
que não possa estar sujeito a qualquer interpretação
falsa. Eis por que, daqui a algum tempo, muito maior será do
que é hoje o número de pessoas sinceramente religiosas
e crentes.”
(KARDEC, 1995a, p. 471).
Vê-se que Kardec nessa obra [O Livro dos Espíritos]
emprega as palavras dogma, doutrina e princípio para falar da
reencarnação; por conseguinte, deve-se ter que as duas
últimas - doutrina e princípio - só podem significar
o que ele entende por dogma, que é totalmente fora do conceito
usual. É quase que somente nesse livro, ressaltamos, que Kardec
usa a palavra dogma; e, assim mesmo, somente por três vezes; nas
outras ocasiões ele emprega os outros dois termos citados.
Pode-se ver que também na obra O Evangelho segundo o Espiritismo
(1864) é esse o termo que encontramos:
Não somente o princípio
da reencarnação se acha aí claramente
expresso, mas também o estado das almas que se mantêm
sob o jugo da matéria é descrito qual o mostra o Espiritismo
nas evocações. Mais ainda: no tópico acima se
diz que a reencarnação num corpo material é consequência
da impureza da alma, enquanto as almas purificadas se encontram isentas
de reencarnar. Outra coisa não diz o Espiritismo, acrescentando
apenas que a alma? que boas resoluções tomou na erraticidade
e que possui conhecimentos adquiridos, traz, ao renascer, menos defeitos,
mais virtudes e idéias intuitivas do que tinha na sua existência
precedente. Assim, cada existência lhe marca um progresso intelectual
e moral. (O Céu e o Inferno, 2.ª
Parte: Exemplos.)
(KARDEC, 1996, p. 46)
11. Se o princípio da reencarnação,
conforme se acha expresso em S. João, podia, a rigor, ser interpretado
em sentido puramente místico, o mesmo já não
acontece com esta passagem de S. Mateus, que não permite equívoco:
ELE MESMO é o Elias que há de vir. Não há
aí figura, nem alegoria: é uma afirmação
positiva. -"Desde o tempo de João Batista até o
presente o reino dos céus é tomado pela violência."
(KARDEC, 1996, p. 87)
16. Não há, pois, duvidar de que, sob o nome de ressurreição,
o princípio da reencarnação
era ponto de uma das crenças fundamentais dos judeus, ponto
que Jesus e os profetas confirmaram de modo formal; donde se segue
que negar a reencarnação é negar as palavras
do Cristo. Um dia, porém, suas palavras, quando forem meditadas
sem idéias preconcebidas, reconhecer-se-ão autorizadas
quanto a esse ponto, bem como em relação a muitos outros.
(KARDEC, 1996, p. 89)
E para se ver que Kardec não tinha a menor preocupação
de fazer com que as pessoas pensassem igual a ele (o que isso seria
um contrassenso se ele utilizasse dogmas para sustentar suas idéias),
transcrevemos da Introdução dessa obra, que acabamos de
citar:”
Essa a base em que nos apoiamos, quando
formulamos um principio da doutrina. Não é
porque esteja de acordo com as nossas idéias que o temos por
verdadeiro. Não nos arvoramos, absolutamente, em árbitro
supremo da verdade e a ninguém dizemos: "Crede em tal
coisa, porque somos nós que vo-lo dizemos." A nossa opinião
não passa, aos nossos próprios olhos, de uma opinião
pessoal, que pode ser verdadeira ou falsa, visto não nos considerarmos
mais infalível do que qualquer outro. Também
não é porque um princípio nos foi ensinado que,
para nós, ele exprime a verdade, mas porque recebeu a sanção
da concordância.
(KARDEC, 1996, p. 32) (grifo
nosso).
Em A Gênese (1868), última obra publicada,
enquanto Kardec se encontrava no plano físico, vemos que ele
mantém a mesma linguagem:
14. - Como meio de elaboração,
o Espiritismo procede exatamente da mesma forma que as ciências
positivas, aplicando o método experimental. Fatos novos se
apresentam, que não podem ser explicados pelas leis conhecidas;
ele os observa, compara, analisa e, remontando dos efeitos às
causas, chega à lei que os rege; depois, deduz-lhes as consequências
e busca as aplicações úteis. Não estabeleceu
nenhuma teoria preconcebida; assim, não apresentou como hipóteses
a existência e a intervenção dos Espíritos,
nem o perispírito, nem a reencarnação,
nem qualquer dos princípios da doutrina; concluiu
pela existência dos Espíritos, quando essa existência
ressaltou evidente da observação dos fatos, procedendo
de igual maneira quanto aos outros princípios. Não foram
os fatos que vieram a posteriori confirmar a teoria: a teoria é
que veio subsequentemente explicar e resumir os fatos. É, pois,
rigorosamente exato dizer-se que o Espiritismo é uma ciência
de observação e não produto da imaginação.
As ciências só fizeram progressos importantes depois
que seus estudos se basearam sobre o método experimental; até
então, acreditou-se que esse método também só
era aplicável à matéria, ao passo que o é
também às coisas metafísicas.
(KARDEC, 1995b, p. 20)
34. - A pluralidade das existências, cujo princípio
o Cristo estabeleceu no Evangelho, sem todavia defini-lo como a muitos
outros, é uma das mais importantes leis reveladas pelo Espiritismo,
pois que lhe demonstra a realidade e a necessidade para o progresso.
Com esta lei, o homem explica todas as aparentes anomalias da vida
humana; as diferenças de posição social; as mortes
prematuras que, sem a reencarnação, tornariam inúteis
à alma as existências breves; a desigualdade de aptidões
intelectuais e morais, pela ancianidade do Espírito que mais
ou menos aprendeu e progrediu, e traz, nascendo, o que adquiriu em
suas existências anteriores (nº. 5) (KARDEC,
1995b, p. 30).
33. - O princípio da reencarnação
é uma consequência necessária da lei de progresso.
Sem a reencarnação, como se explicaria a diferença
que existe entre o presente estado social e o dos tempos de barbárie?
Se as almas são criadas ao mesmo tempo que os corpos, as que
nascem hoje são tão novas, tão primitivas, quanto
as que viviam há mil anos; acrescentemos que nenhuma conexão
haveria entre elas, nenhuma relação necessária;
seriam de todo estranhas umas às outras. Por que, então,
as de hoje haviam de ser melhor dotadas por Deus, do que as que as
precederam? Por que têm aquelas melhor compreensão? Por
que possuem instintos mais apurados, costumes mais brandos? Por que
têm a intuição de certas coisas, sem as haverem
aprendido? Duvidamos de que alguém saia desses dilemas, a menos
admita que Deus cria almas de diversas qualidades, de acordo com os
tempos e lugares, proposição inconciliável com
a idéia de uma justiça soberana.
(Cap. II, nº. 10.) (KARDEC, 1995b, p. 222).
Na Revista Espírita 1864, falando sobre a Escola Espírita
Americana, Kardec argumenta:
De todos os princípios
da Doutrina, aquele que encontrou mais oposição
na América, e pela América é preciso entender
exclusivamente os Estados Unidos, foi o da reencarnação;
pode-se mesmo dizer que é a única divergência
capital, as outras prendendo-se antes à forma do que ao fundo,
e isso, porque os Espíritos não o ensinaram ali; disso
explicamos os motivos. Os Espíritos procedem por toda a parte
com sabedoria e prudência; para fazer-se aceitar, evitam chocar
muito bruscamente as idéias recebidas; não irão
dizer inconsideradamente a um muçulmano que Maomé é
um impostor. Nos Estados Unidos, o dogma da reencarnação
viria se chocar contra os preconceitos de cor, tão profundamente
enraizados nesse país; o essencial era fazer aceitar o princípio
fundamental da comunicação do mundo visível e
do mundo invisível; as questões de detalhe deveriam
vir em outro tempo. Ora, não é duvidoso que esse obstáculo
acabará por desaparecer, e que um dos resultados da guerra
atual será o enfraquecimento gradual dos preconceitos que são
uma anomalia numa nação tão liberal.
(KARDEC, 1993c, p. 148-149).
Kardec continua usando os termos doutrina e princípio para qualificar
a reencarnação. Será até interessante fazermos
aqui uma quantificação em relação a todos
os trechos em que aparecem esses termos em suas obras – O
Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, O Evangelho
Segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno, A Gênese e Revista
Espírita –, que sejam dele próprio:
Termo |
Quantidade |
Percentual |
Dogma |
03 |
8,1% |
Doutrina |
19 |
51,4% |
Princípio |
15 |
40,5% |
Total |
37 |
100% |
Assim, vê-se que em 91,9% das vezes
Kardec utiliza os termos doutrina ou princípio, o que prova,
indiscutivelmente, que, para ele, a reencarnação não
era um dogma no sentido que as teologias tradicionais dão a esse
termo, porquanto a considerava como um dos princípios fundamentais
da Doutrina Espírita, razão pela qual utilizou, na esmagadora
maioria das vezes, esses dois termos. A primeira vez que aparece a palavra
dogma é na pergunta 171 de O Livro dos Espíritos;
porém, é importante ressaltar que os comentários
que Kardec faz à resposta dada pelos espíritos, ele usa
somente o termo doutrina.
E para ficar bem claro que não é mesmo dogma, uma vez
que esse é sempre imposto e não se pode questionar, vejamos
algumas de suas colocações constantes da Revista Espírita
(1858-1869).
Vós estáveis,
sem dúvida, dizem também alguns contraditores, imbuídos
dessas idéias, e eis porque os Espíritos se aterraram
à vossa maneira de ver. Aí está um erro que prova,
uma vez mais, o perigo dos julgamentos apressados e sem exame. Se
essas pessoas tivessem se dado ao trabalho de lerem o que escrevemos
sobre o Espiritismo, teriam se poupado apenas de uma objeção
feita muito levianamente. Repetiremos, pois, o que dissemos
a esse respeito, saber que, quando a doutrina da reencarnação
nos foi ensinada pelos Espíritos, ela estava tão longe
do nosso pensamento, que tínhamos feito, sobre os antecedentes
da alma um sistema diferente, de resto, partilhado por muitas pessoas.
A doutrina dos Espíritos, sob esse assunto, portanto, nos surpreendeu;
diremos mais, contrariou, porque derrubou as nossas próprias
idéias; ela estava longe, como se vê, de ser-lhe o reflexo.
Isso não é tudo; não cedemos ao primeiro choque;
combatemos, defendemos a nossa opinião, levantamos objeções,
e não nos rendemos senão à evidência, e
quando vimos a insuficiência do nosso sistema para resolver
todas as questões que esse assunto levanta (KARDEC,
2001a, p. 295) (grifo nosso).
Temos, pois, como se vê, muitos motivos para não aceitarmos,
levianamente, todas as teorias dadas pelos Espíritos. Quando
uma nos surge, nos limitamos ao papel de observador; fazemos abstração
de sua origem espírita, sem nos deslumbrarmos pela imponência
de nomes pomposos; nós a examinamos como se ela emanasse de
um simples mortal, e vemos se é racional, se dá conta
de tudo, se resolve todas as dificuldades. Foi assim que procedemos
com a doutrina da reencarnação que não adotamos,
embora vinda dos Espíritos, senão depois de reconhecer
que só ela, mas só ela, podia resolver o que nenhuma
filosofia ainda não resolvera, e isso abstração
feita das provas materiais que dela são dadas, cada dia, a
nós e a muitos outros. Pouco nos importa, pois, os
contraditores, fossem eles mesmo Espíritos; desde que ela é
lógica, conforme a justiça de Deus; que eles não
podem substituí-la por algo mais satisfatório, não
nos inquietamos mais com eles do que com aqueles que afirmam que a
Terra não gira ao redor do Sol. - porque há Espíritos
dessa força e que se dão por sábios - ou que
pretendem que o homem tenha vindo inteiramente formado de um outro
mundo, carregado nas costas de um elefante alado.
(KARDEC, 2000a, p. 108-109)
(grifo nosso).
O próprio princípio
da reencarnação que tinha, no primeiro momento, encontrado
mais contraditores, porque não era compreendido, hoje é
aceito pela força da evidência, e porque todo homem que
pensa nele reconhece a única solução possível
dos maiores problemas da filosofia moral e religiosa. Sem
a reencarnação, para-se a cada passo, tudo é
caos e confusão; com a reencarnação tudo se esclarece,
tudo se explica da maneira mais racional; se ela encontra ainda alguns
adversários, mais sistemáticos do que lógicos,
o número deles é muito restrito; ora, quem a inventou?
Não foi, seguramente, nem vós e nem eu; ela nos foi
ensinada, nós a aceitamos, eis tudo o que fizemos. De todos
os sistemas que surgiram no princípio, bem poucos sobrevivem
hoje, e pode-se dizer que os seus raros partidários estão,
sobretudo, entre as pessoas que julgam sob um primeiro aspecto, e,
frequentemente, segundo idéias preconcebidas ou preconceitos;
mas é evidente agora que, quem se dá ao trabalho de
aprofundar todas as questões e julga friamente, sem prevenção,
sem hostilidade sistemática, sobretudo, é invencivelmente
conduzido, pelo raciocínio quanto pelos fatos, à teoria
fundamental que prevalece hoje, pode-se dizer, em todos os países
do mundo.
(KARDEC, 1993a, p. 135-136) (grifo nosso).
Especialmente, pelo que consta na Revista
Espírita, em relação ao que aconteceu com o próprio
Kardec, que teve plena liberdade de aceitar o princípio da reencarnação,
é que não a vemos como um dogma, que, implicitamente,
traz a idéia de algo imposto, tipo: “aceita ou morre”.
E dentro desse conceito não cabe aplicá-lo a qualquer
um dos princípios da Doutrina Espírita, porquanto não
nos apoiamos na fé cega, mas na razão como base para uma
fé raciocinada; daí dizer: “Fé inabalável
só o é a que pode encarar frente a frente a razão,
em todas as épocas da Humanidade”. (KARDEC,
1996, p. 303), que coloca como epígrafe
na obra O Evangelho Segundo o Espiritismo.
Sobre a fé cega, tinha este pensamento:
O erro da maioria das religiões
é de haver erigido em dogma absoluto o princípio da
fé cega, e de haver, em favor desse princípio, que anula
a ação da inteligência, feito aceitar, durante
um tempo, as crenças que os progressos ulteriores da ciência
vieram contradizer. (KARDEC, 1999, p.
42)
Kardec, inclusive, faz uma ligação de fé raciocinada
com livre pensamento, que entendia como “liberdade absoluta de
escolha das crenças” (KARDEC,
1999, p. 38), argumenta:
O livre pensamento, na sua acepção
mais ampla, significa: livre exame, liberdade de consciência,
fé raciocinada; ele simboliza a emancipação intelectual,
a independência moral, complemento da independência física;
ele não quer mais escravos do pensamento do que escravos
do corpo, porque o que caracteriza o livre pensador é que ele
pensa por si mesmo e não pelos outros, em outras palavras,
que sua opinião lhe pertence particularmente. Pode,
pois, haver livres pensadores em todas as opiniões e em todas
as crenças. Neste sentido, o livre pensamento eleva a dignidade
do homem; dele faz um ser ativo, inteligente, em lugar de uma máquina
de crer.
(KARDEC, 1999, p. 39). (grifo nosso).
Para Kardec “os Espíritas
são também livres pensadores” (KARDEC, 1999, p.
6), expressão que assim definiu:
Os livres pensadores, nova denominação
pela qual se designam aqueles que não se sujeitam à
opinião de ninguém em matéria de religião
e de espiritualidade, que não se crêem ligados
pelo culto onde o nascimento os coloca sem seu consentimento, nem
obrigados à observação de quaisquer práticas
religiosas.
(KARDEC, 1999, p. 6) (grifo nosso).
Por outro lado, não sendo a reencarnação
uma questão religiosa, pois trata-se, antes de tudo, de uma lei
natural, nós, como espíritas, não fazemos questão
alguma de abrigá-la sob o manto de uma visão teológica,
em atendimento ao que Kardec disse:
Desde que o Espiritismo não
se declara nem estacionário nem imutável, ele assimilará
todas as verdades que forem demonstradas, de qualquer parte
que venham, fosse da de seus antagonistas, e não permanecerá
jamais atrás do progresso real. Ele assimilará essas
verdades, dizemos nós, mas somente quando forem claramente
demonstradas, e não porque agradaria de dar por elas, ou seus
desejos pessoais ou os produtos da imaginação.
(KARDEC, 1993e, p. 9) (grifo
nosso)
O Espiritismo, pois, não estabelece como princípio
absoluto senão o que se acha evidentemente demonstrado, ou
o que ressalta logicamente da observação. Entendendo
com todos os ramos da economia social, aos quais dá o apoio
das suas próprias descobertas, assimilará sempre todas
as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que
hajam assumido o estado de verdades práticas e abandonado o
domínio da utopia, sem o que ele se suicidaria. Deixando de
ser o que é, mentiria à sua origem e ao seu fim providencial.
Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será
ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem
estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria
nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará.
(KARDEC, 1995b, p. 44-45) (grifo nosso).
Dessa forma, Kardec busca apoiar-se na Ciência, que só
revela leis criadas por Deus, e não na teologia, pois desta resultam
interpretações ao sabor de cada teólogo que, na
maioria das vezes, são tão divergentes que nos causam
estranheza quando ouvimos atribuí-las como de fossem provenientes
da própria divindade. Mil teólogos, milhares de interpretações!!!
Talvez alguns dos que são contrários ao nosso entendimento
não saibam que, no início, Kardec fez de tudo para não
vincular o Espiritismo como uma religião. Sobre isso, vejamos
o que Herculano Pires, disse:
Kardec sabia o que fazia, quando
evitava a confusão do Espiritismo com as religiões dogmáticas
e formalistas, sem entretanto negar ao Espiritismo o seu aspecto religioso.
Teve mesmo o cuidado de não cortar em excesso as ligações
da doutrina com a tradição religiosa, pois sabia que
a evolução não pode sofrer, sem graves perigos
de solução de continuidade. O princípio espírita
do encadeamento de todas as coisas no Universo estava presente em
sua mente. Poucas obras revelam uma compreensão tão
clara e profunda da natureza orgânica do Universo, como a Codificação.
É por isso, e não por sectarismo ou fanatismo, que não
podemos fazer concessões ao passado no campo das atividades
doutrinárias. Avançamos para um novo mundo que só
o Espiritismo pode modelar, pois só ele revela condições
para isso em sua estrutura doutrinária. Mas se não procurarmos
compreendê-lo em toda a sua grandeza, é certo que o reduziremos
a uma seita fanática de crentes obscurantistas. Evitemos essa
queda no passado, para nós mesmos e para o mundo. Tenhamos
a coragem de avançar sem muletas e sem temor para a Civilização
do Espírito. (PIRES, 2000, p. 113)
Geralmente o fanatismo religioso
só prospera em meio a dogmas, pela simples razão de que
“Os crentes dispensam em regra as provas. Contentam-se com a presunção
de boa-fé”(Canuto Abreu).
Esperamos ter conseguido demonstrar que, de fato, no Espiritismo não
existe nenhum tipo de dogma, porquanto nada é imposto e nem a
pessoa tem que acreditar naquilo que contrarie a lógica e a razão,
pelo simples motivo de que o que se impõe, impõe-se justamente
por não ter nenhuma base lógica e nem tampouco apoio na
razão.
Vale a pena vermos algumas considerações que Kardec tece
quando do diálogo com o Padre, constante da obra O que é
o Espiritismo:
Tal é, senhor abade, a linha
de conduta que tenho seguido com os ministros dos diversos cultos
que a mim se hão dirigido. Quando eles me interpelaram sobre
alguns pontos da Doutrina, dei-lhes as explicações necessárias,
abstendo-me de discutir certos dogmas de que o Espiritismo
não se quer ocupar, por serem todos os homens livres
em suas apreciações; nunca, porém, fui procurá-los
no propósito de lhes abalar a fé por meio de qualquer
pressão (KARDEC, 2001b, p. 123).
(grifo nosso).
Padre. — Não podeis, entretanto, contestar
que o Espiritismo não está, em todos os pontos, de acordo
com a religião.
A. K. — Ora, senhor abade, todas as
religiões dirão a mesma coisa: os protestantes,
os judeus, os muçulmanos, tanto quanto os católicos.
Se o Espiritismo negasse a existência de Deus, da alma, da sua
individualidade e imortalidade, das penas e recompensas futuras, do
livre-arbítrio do homem; se ele ensinasse que cada um só
deve viver para si, não pensar senão em si, não
só seria contrário à religião católica,
como a todas as religiões do mundo; ele seria ainda a negação
de todas as leis morais, base das sociedades humanas.
Longe disso: os Espíritos proclamam um Deus único, soberanamente
justo e bom; eles dizem que o homem é livre e responsável
por seus atos, recompensado ou punido pelo bem ou pelo mal que houver
feito; colocam acima de todas as virtudes a caridade evangélica
e a seguinte regra sublime ensinada pelo Cristo: fazer aos outros
como queremos que nos seja feito.
Não são estes os fundamentos da religião?
Essa certeza do futuro, de se ir encontrar aqueles a quem se amou,
não será uma consolação?
Essa grandiosidade da vida espiritual, que é a nossa essência,
comparada às mesquinhas preocupações da vida
terrena, não será própria a elevar a nossa alma
e a fortalecermos na prática do bem?
Padre. — Concordo
que, nas questões gerais, o Espiritismo é conforme às
grandes verdades do Cristianismo; dar-se-á, porém, o
mesmo em relação aos dogmas? Não contradiz ele
alguns princípios que a Igreja nos ensina?
A. K. — O Espiritismo é, antes de tudo,
uma ciência, não cogita de questões dogmáticas.
Esta ciência tem consequências morais como todas as ciências
filosóficas; essas consequências são boas ou más?
Pode-se julgá-las pelos princípios gerais que acabo
de expor.
Algumas pessoas se iludem sobre o verdadeiro caráter do Espiritismo.
A questão é de grande importância e merece alguns
desenvolvimentos. Façamos primeiro um termo de comparação:
a eletricidade, estando na Natureza, existiu em todo tempo e produziu
sempre os efeitos que hoje observamos e muitos outros que ainda não
conhecemos. Na ignorância da sua verdadeira causa, os homens
explicavam esses efeitos de um modo mais ou menos extravagante. A
descoberta da eletricidade e de suas propriedades veio lançar
por terra um punhado de teorias absurdas, espargindo a luz por sobre
mais de um mistério da Natureza. O que fizeram a eletricidade
e as ciências físicas para certos fenômenos, o
Espiritismo o fez para outros de ordem diferente.
O Espiritismo funda-se na existência de um mundo invisível,
formado pelos seres incorpóreos que povoam o espaço
e que não são mais que as almas daqueles que viveram
na Terra, ou em outros globos, nos quais deixaram seus invólucros
materiais. São os seres a que chamamos Espíritos, seres
que nos cercam e incessantemente exercem sobre os homens, sem que
estes o percebam, uma grande influência, e desempenham papel
muito ativo no mundo moral, e mesmo, até certo ponto, no físico.
O Espiritismo está, pois, em a Natureza e podemos dizer que,
numa certa ordem de idéias, é ele uma potência,
como a eletricidade o é sob outro ponto de vista, e como ainda
a gravitação é uma outra. Os fenômenos,
de que o mundo invisível é a fonte, produziram-se em
todos os tempos; eis aí por que a história de todos
os povos faz deles menção. Somente, em sua ignorância,
como se deu com a eletricidade, os homens os atribuíam a causas
mais ou menos racionais, e deram, nesse ponto de vista, livre curso
à sua imaginação.
Mais bem observado depois que se vulgarizou, o Espiritismo vem derramar
luz sobre grande número de questões, até hoje
insolúveis ou mal compreendidas. Seu verdadeiro caráter
é, pois, o de uma ciência e não de uma religião;
e a prova disso é que ele conta entre os seus aderentes homens
de todas as crenças, que por esse fato não renunciaram
às suas convicções: católicos fervorosos
que não deixam de praticar todos os deveres do seu culto, quando
a Igreja os não repele; protestantes de todas as seitas, israelitas,
muçulmanos e mesmo budistas e bramanistas.
Ele repousa, por conseguinte, em princípios
independentes das questões dogmáticas. Suas consequências
morais são todas no sentido do Cristianismo, porque de todas
as doutrinas é esta a mais esclarecida e pura; razão
pela qual, de todas as seitas religiosas do mundo, os cristãos
são os mais aptos para compreendê-lo em sua verdadeira
essência.
Podemos exprobrá-lo por isso?
Cada um pode formar de suas opiniões uma religião e
interpretar à vontade as religiões conhecidas; mas daí
a constituir nova Igreja, a distância é grande.
(KARDEC, 2001b, p. 128-130) (grifo
nosso).
Padre. — Dissestes
que o Espiritismo não discute os dogmas, e, entretanto,
ele admite certos pontos combatidos pela Igreja, tais como, por exemplo,
a reencarnação, a aparição do homem na
Terra, antes de Adão; nega a eternidade das penas, a existência
dos demônios, o purgatório e o fogo do inferno.
A. K. — Já de há muito que esses
pontos estão sendo discutidos; não foi o Espiritismo
quem os pôs em litígio; são pontos sobre alguns
dos quais há controvérsia, mesmo entre os teólogos,
e que só o futuro julgará. Um grande princípio
domina a todos: a prática do bem, que é a lei superior,
a condição sine qua non do nosso futuro, como no-lo
prova o estado dos Espíritos que conosco se comunicam.
Enquanto a luz não se faz para vós sobre essas questões,
crede, se o quiserdes, nas chamas e torturas materiais, se julgais
que isso impede que pratiqueis o mal; essa crença, porém,
não as tornará mais reais se elas não existirem.
Acreditais que não temos mais de uma existência corporal,
mas isto não impede de renascerdes aqui ou em outra parte,
se assim tiver de ser, apesar de o não quererdes; credes que
o mundo todo foi criado em seis vezes vinte e quatro horas, mas, apesar
disso, a Terra nos apresenta a prova do contrário, escrita
em suas camadas geológicas; estais convencido de haver Josué
feito parar o Sol, o que não dá lugar a que deixe de
ser a Terra que gira; dizeis que a data da vinda do homem à
Terra não vai além de 6.000 anos: isto, porém,
não priva que os fatos vos contradigam. E que direis se um
dia a Geologia demonstrar, por traços patentes, a anterioridade
do homem, como já tem demonstrado tantas outras coisas?
Crede, pois, em tudo que vos aprouver,
mesmo na existência do diabo, se tal crença vos puder
tornar bom, humano e caridoso para com os vossos semelhantes. O
Espiritismo, como doutrina moral, só impõe uma coisa:
a necessidade de fazer o bem e evitar o mal. É uma
ciência de observação que, repito, tem consequências
morais, que são a confirmação e a prova dos grandes
princípios da religião; quanto às questões
secundárias, ele as abandona à consciência de
cada um.
Notai bem, reverendo, que alguns dos pontos divergentes de que acabastes
de falar, não são, em princípio, contestados
pelo Espiritismo. Se tivésseis lido tudo quanto tenho escrito
a respeito, teríeis visto que ele se limita a dar-lhes uma
interpretação mais lógica e racional do que a
que vulgarmente se lhes dá.
É assim, por exemplo, que ele não nega o purgatório;
antes, pelo contrário, demonstra sua necessidade e justiça;
vai mesmo além: ele o define. O inferno foi descrito como imensa
fornalha, mas ele será assim também compreendido pela
alta teologia? Evidentemente, não; ela diz muito bem que isto
é uma simples figura; que o fogo que ali se consome é
um fogo moral, símbolo das maiores dores. Quanto à eternidade
das penas, se fosse possível pôr-se a votos tal questão,
para se conhecer a opinião íntima de todos os homens
que raciocinam e se acham no caso de compreendê-la, mesmo entre
os mais religiosos se veria para que lado penderia a maioria, porque
a idéia de uma eternidade de suplícios é a negação
da infinita misericórdia de Deus.
Eis, demais, o que avança a Doutrina Espírita a tal
respeito:
A duração do castigo
é subordinada ao melhoramento do Espírito culpado. Nenhuma
condenação por tempo determinado é pronunciada
contra ele. O que Deus exige, para pôr um termo aos sofrimentos,
é o arrependimento, a expiação e a reparação;
em uma palavra, um melhoramento sério e efetivo, uma volta
sincera ao bem. O Espírito é assim o árbitro
de sua própria sorte; sua pertinácia no mal prolonga-lhe
os sofrimentos; seus esforços para fazer o bem os minoram ou
abreviam. Sendo a duração da pena subordinada ao arrependimento,
o Espírito culpado, que não se arrependesse e nunca
se melhorasse, sofreria sempre, e para ele então a pena seria
eterna. Essa eternidade de penas deve ser entendida no sentido relativo
e não no absoluto. Uma condição inerente à
inferioridade do Espírito é não ver o termo da
sua situação e crer que há de sofrer sempre —
o que é para ele um castigo.
Desde que, porém, sua alma se abra ao arrependimento, Deus
lhe faz entrever um raio de esperança.
Esta doutrina é, por certo, mais conforme à justiça
de Deus, que pune, enquanto o culpado persiste no mal, e concede-lhe
graça desde que ele volte ao bom caminho. Quem imaginou essa
teoria? Seríamos nós?
Não; são os Espíritos que a ensinam e provam,
pelos exemplos que diariamente nos fornecem. Os Espíritos não
negam, pois, as penas futuras, pois que são eles mesmos que
nos vêm descrever seus próprios sofrimentos; e este quadro
nos toca mais que o das chamas perpétuas, porque tudo nele
é perfeitamente lógico. Compreende-se que isto é
possível, que assim deve ser, que essa situação
é uma consequência natural das coisas; o pensador filósofo
pode aceitá-lo, porque nele nada repugna à razão.
Eis por que as crenças espíritas têm conduzido
ao bem muita gente, mesmo entre os materialistas, aos quais não
fazia mossa o medo do inferno, como lhes era pintado. (KARDEC,
2001b, p. 133-136) (grifo nosso).
Padre. — Deixemos
a questão dos demônios; bem sei que ela é diversamente
interpretada pelos teólogos; porém o sistema da reencarnação
parece-me mais difícil de conciliar com os dogmas, pois que
ele não é mais que a renovação da metempsicose
de Pitágoras.
A. K. — Não é esta a ocasião
própria de discutir uma questão que exige tão
longos desenvolvimentos: vós a encontrareis tratada em O
Livro dos Espíritos e no Evangelho segundo o Espiritismo
(vede O Livro dos Espíritos, n.° 166 e
seg., 222 e seg. e 1.010; O Evangelho, caps. IV e
V); não acrescentarei senão duas palavras.
A metempsicose dos antigos consistia na transmigração
da alma do homem nos animais, o que implica uma degradação.
Demais, essa doutrina não era o que vulgarmente se crê.
A transmigração pelos corpos dos animais não
era considerada como condição inerente à natureza
da alma humana, mas como punição temporária;
é assim que se admitia que as almas dos assassinos iam habitar
os corpos dos animais ferozes, para neles receberem castigos; as dos
impudicos, os porcos e javalis; as dos inconstantes e estouvados,
os das aves; as dos preguiçosos e ignorantes, os dos animais
aquáticos. Depois de alguns milhares de anos, mais ou menos,
conforme a culpabilidade, a alma, saindo dessa espécie de prisão,
voltava à humanidade. A encarnação animal não
era, pois, uma condição absoluta; ela, como se vê,
aliava-se à encarnação humana, e a prova é
que a punição dos homens tímidos consistia em
passar a corpos de mulheres, expostas ao desprezo e às injúrias.
(Vede Pluralidade das existências da alma, por Pezzani.) Era
uma espécie de espantalho para os simples, antes que um artigo
de fé para os filósofos. Assim como dizemos às
crianças: “Se fordes más, o lobo vos comerá”,
os antigos diziam aos criminosos: “Vós vos tornareis
em lobos”, e hoje se diz: “O diabo vos agarrará
e levará para o inferno.”
A pluralidade das existências,
segundo o Espiritismo, difere essencialmente da metempsicose, em não
admitir aquele a encarnação da alma humana nos corpos
de animais, mesmo como castigo. Os Espíritos ensinam
que a alma não retrograda, mas progride sempre. Suas diferentes
existências corpóreas se cumprem na humanidade, sendo
cada uma um passo que a alma dá na senda do progresso intelectual
e moral; o que é coisa muito diversa da metempsicose.
Não podendo adquirir um desenvolvimento completo em uma só
existência, muitas vezes abreviada por causas acidentais, Deus
lhe permite continuar, em nova encarnação, o que ela
não pôde acabar em outra, ou recomeçar o que fez
errado. A expiação na vida corporal consiste nas tribulações
que nela sofremos.
Quanto à questão de saber se a pluralidade das
existências da alma é ou não contrária
a certos dogmas da Igreja, limito-me a dizer o seguinte:
Ou a reencarnação existe, ou não; se
existe, é uma lei da Natureza. Para provar que ela não
existe, seria necessário demonstrar que vai de encontro, não
aos dogmas, mas a essas leis, e que há outra mais clara e logicamente
melhor que ela, explicando as questões que só ela pode
resolver. Além disso, é fácil demonstrar
que certos dogmas encontram nela sanção racional, hoje
aceitos por aqueles que os repeliam outrora, por falta de compreensão.
Não se trata, pois, de destruir, mas de interpretar; é
o que pela força das coisas será feito mais tarde.
Aqueles que não queiram aceitar a interpretação
ficam perfeitamente livres, como ainda hoje o são, de crer
que é o Sol que gira ao redor da Terra. A idéia da pluralidade
das existências se vulgariza com pasmosa rapidez, em razão
de sua extrema lógica e conformidade com a justiça de
Deus. Quando ela for reconhecida como verdade natural e aceita por
todos, que fará a Igreja?
Em resumo: a reencarnação
não é um sistema imaginado para satisfação
das necessidades de um ideal, nem uma opinião pessoal; é
ou não um fato. Se está demonstrado que certos efeitos
existentes são materialmente impossíveis sem a reencarnação,
é preciso admitirmos que eles são a consequência
desta; logo, se está em a Natureza, não pode ser anulada
por uma opinião contrária. (KARDEC,
2001b, p. 141-143) (grifo nosso).
Kardec, em várias ocasiões,
assim se expressou, quanto à liberdade de se crer ou não
em alguma coisa, incluindo aí a reencarnação e
no próprio Espiritismo:
Em resumo, senhor, todos têm
completa liberdade de aprovar ou censurar os princípios do
Espiritismo, de deduzir deles as consequências boas
ou más que lhes aprouver, porém a consciência
impõe ao crítico a obrigação de não
dizer o contrário do que ele sabe que é; ora, para isso,
a primeira condição é não falar do que
não conhece. (KARDEC, 2001b, p. 59-60)
(grifo nosso).
A liberdade de consciência é consequência
da liberdade de pensar, que é um dos atributos do
homem; e o Espiritismo, se não a respeitasse, estaria
em contradição com os seus princípios de liberdade
e tolerância.
(KARDEC, 2001b, p. 123) (grifo
nosso).
O Espiritismo não se
impõe, porque, como vo-lo disse — respeita a
liberdade de consciência; ele sabe também que
toda crença imposta é superficial e não
desperta senão as aparências da fé; nunca, porém,
a fé sincera. Ele expõe seus princípios
aos olhos de todos, de modo a cada um poder formar opinião
segura.
Os que lhe aceitam os princípios,
sacerdotes ou leigos, o fazem livremente e pelos achar racionais;
mas nós não ficamos querendo mal aos que se afastam
da nossa opinião.
(KARDEC, 2001b, p. 124) (grifo
nosso).
O Espiritismo, como doutrina
moral, só impõe uma coisa: a necessidade de fazer o
bem e evitar o mal. (KARDEC,
2001b, p. 134) (grifo nosso).
O Espiritismo é uma
filosofia como outra que se aceita livremente se ela convém,
e que se rejeita se não convém; que
repousa sobre uma fé inalterável em Deus e no futuro,
e que não obriga moralmente seus adeptos senão
a uma coisa: considerar todos os homens como irmãos,
sem exceção de crença, e fazer o bem, mesmo àqueles
que nos fazem mal.
(KARDEC, 1993e, p. 77) (grifo
nosso).
[…] o Espiritismo, proclamando
a liberdade absoluta de consciência, não admite
nenhum constrangimento em matéria de crença, e que jamais
contestou a ninguém, o direito de crer à sua maneira
em matéria de Espiritismo como em toda outra coisa.
(KARDEC, 1993e, p. 111-112) (grifo
nosso).
[...] a lealdade quer se se coloque
em frente os argumentos pró e contra, a fim de que o público
julgue de seu valor recíproco; [...]"
(KARDEC, 1993c, p. 154).
O Espiritismo se dirige aos que não
crêem ou que duvidam, e não aos que têm fé
e a quem essa fé é suficiente; ele não diz a
ninguém que renuncie às suas crenças para adotar
as nossas, e nisto é consequente com os princípios
de tolerância e de liberdade de consciência que professa.
(KARDEC, 2001b, p. 36) (grifo
nosso).
O Espiritismo não se
impõe, aceita-se; ele dá suas razões
e não acha mau que as combata, uma vez que isso seja com armas
leais, e remete-se ao bom senso público para pronunciar-se.
(KARDEC, 1993c, p. 84) (grifo nosso).
O Espiritismo não quer
ser acreditado sob palavra; ele quer o livre exame; sua propaganda
se faz dizendo: Vede o pró e o contra; julgai o que satisfaça
melhor vosso julgamento, o que responda melhor às vossas esperanças
e às vossas aspirações, o que toque mais vosso
coração, e decidi-vos em conhecimento de causa".
(KARDEC, 1993c, p. 84) (grifo
nosso).
Se o Espiritismo ainda não
disse tudo, ele é, no entanto, uma certa soma de verdades adquiridas
pela observação e que constituem a opinião da
maioria dos adeptos; e se essas verdades passaram hoje ao
estado de artigos de fé, para nos servir de uma expressão
empregada ironicamente por alguns, isto não é nem por
nós, nem por ninguém, nem mesmo por nossos Espíritos
instrutores e elas foram assim colocadas e ainda menos impostas,
mas pela adesão de todo mundo, cada um estando em condições
de constatá-las.
(KARDEC, 1993e, p. 9) (grifo
nosso).
Cada um é livre para
encarar as coisas à sua maneira, e nós, que
reclamamos essa liberdade para nós, não podemos recusá-la
aos outros.
(KARDEC, 1993e, p. 5) (grifo nosso)
O Espiritismo, que censura aos outros
por se imporem, não deve incorrer numa mesma censura; ele
não se impõe jamais: espera que se venha a
ele.
(KARDEC, 1993e, p. 13)
Ele não diz: Fora do Espiritismo
não há salvação, mas com o Cristo:
Fora da caridade não há salvação, princípio
de união, de tolerância, que unirá os homens num
comum sentimento de fraternidade, em lugar de dividi-los em seitas
inimigas. Por este outro princípio: Não há fé
inabalável senão aquela que pode olhara razão
face a face em todas as épocas da Humanidade, destrói
o império da fé cega que anula a razão, da obediência
passiva que embrutece; ele emancipa a inteligência do homem
e levanta seu moral.
Consequentemente, com ele
não se impõe; ele diz o que é, o que
quer, o que dá, e espera que se venha a ele livremente, voluntariamente;
quer ser aceito pela razão e não pela força.
Ele respeita todas as crenças sinceras, e
não combate senão a incredulidade, o egoísmo,
o orgulho e a hipocrisia, que são as chagas da sociedade, e
os mais sérios obstáculos ao progresso moral; mas não
lança anátema a ninguém, nem mesmo aos seus inimigos,
porque está convencido de que o caminho do bem está
aberto aos mais imperfeitos, e que, cedo ou tarde, nele entrarão.
(KARDEC, 1993e, p. 299) (grifo
nosso)
E que fez para conduzi-los a ele [o
Espiritismo]? Foi à força de reclames? Foi indo
pregara Doutrina nas praças públicas? Foi violentando
as consciência? De nenhum modo, porque esses meios são
os da fraqueza, e, se os tivesse usado, teria mostrado que duvidava
de sua força moral. Ele tem por regra invariável,
conforme à lei de caridade ensinada pelo Cristo, de não
constranger ninguém, de respeitar todas as convicções;
ele contentou-se em anunciar os seus princípios, de desenvolverem
seus escritos as bases sobre as quais estão assentadas as suas
crenças, e deixou vir a ele aqueles que quisessem;
se vieram muitos, é que convenceu a muitos, e que muitos encontraram
nele o que não tinham encontrado em outra parte. [...]
(KARDEC, 1993d, p. 11) (grifo
nosso)
Em virtude de seus princípios,
ele não é agressivo; não se impõe; não
subjuga; não pede para si senão a liberdade
de pensar à sua maneira.
(KARDEC, 1993d, p. 242) (grifo
nosso)
Somos adeptos do livre-arbítrio, que permite a cada um exercer
o seu direito de ter plena liberdade de acreditar ou não em qualquer
coisa.
Aos detratores sistemáticos o aviso de Kardec:
[Todo mundo] Certamente, é
livre para agir como o entende; mas se quer a liberdade para
si, deve querê-la para os outros; uma vez que defende
suas idéias e critica a dos outros, se for consequente consigo
mesmo, não deverá achar mau que os outros defendam as
deles e critiquem as suas. (KARDEC,
1993e, p. 112) (grifo nosso).
Levando-se em conta a maneira com a qual Kardec foi estudando
os princípios do Espiritismo, isso fez com que ele tivesse uma
convicção forte, conforme daqui se depreende:
O que faz a principal autoridade da
Doutrina é que não há um único de seus
princípios que seja o produto de uma idéia
preconcebida ou de uma opinião pessoal; todos, sem
exceção, são o resultado da observação
dos fatos; foi unicamente pelos fatos que o Espiritismo chegou
a conhecer a situação e as atribuições
dos Espíritos, assim como as leis, ou melhor uma parte das
leis que regem suas relações com o mundo invisível;
este é um ponto capital.
(KARDEC, 1993e, p. 8) (grifo nosso).
Seu pensamento era de que “Os fatos são argumentos sem
réplicas, dos quais é preciso cedo ou tarde aceitar as
consequências quando são constatados”. (KARDEC,
2000c, p. 276), portanto, tudo para ele era verdade, por fazer
parte das leis naturais, que, como sabemos, emanam de Deus, embora,
como demonstrado, não tenha se preocupado em impô-la a
quem quer que seja.
Oportuno também colocarmos o que Kardec disse na obra Catálogo
racional: obras para se fundar uma biblioteca espírita,
no capítulo dedicado a “Obras contra o Espiritismo”:
Proibir um livro é sinal de
que o teme. O Espiritismo, longe de temer a divulgação
dos escritos publicados contra si e proibir-lhes a leitura a seus
adeptos, chama a atenção destes e do público
para tais obras, a fim de que possam julgar por comparação.
[…]
(KARDEC, 2004, p. 85).
Desconhecemos uma só das religiões tradicionais
que dá esse tipo de recomendação a seus adeptos,
porquanto, todas elas temem os pensamentos divergentes e que lhes são
contrários. E dentro dessa visão, podemos, mais uma vez
argumentar que Kardec nunca foi partidário do “crê
ou morre”, fundamento de todas as crenças dogmáticas.
Para encerrar, voltaremos a mais uma opinião de Herculano Pires:
A Ciência Espírita apresenta-se
hoje como a pedra enjeitada da parábola evangélica,
que teve de ser colocada como a pedra angular da cultura do nosso
tempo. Sua abertura generosa, jamais se fechando em dogmas
e sistemas fechados, é um desafio constante ao mundo
convencional da cultura que tenta desprezá-la e não
consegue libertar-se dos rumos teóricos e metodológicos
por ela traçados, sem outra imposição de sua
realidade do que a própria realidade dos fatos em que se fundamenta.
Cassirer, filósofo alemão contemporâneo, condenou
os sistemas, considerando-os como leito de Procusto, em que os fatos
empíricos das pesquisas têm de adaptar-se, deformados,
a uma sistemática prévia. Ao elaborar a Ciência
Espírita, Kardec, muito antes dessa opinião
do filósofo, declarou que o Espiritismo oferecia, ao mesmo
tempo, uma filosofia e uma ciência livres dos prejuízos
do espírito de sistema. A palavra grega dogma
equivale apenas a opinião, mas as religiões lhe deram
o sentido de veredicto intocável. Kardec se refere
ao dogma da reencarnação, mas não com o sentido
religioso, esclarecendo que não se trata de dogma de fé,
mas de razão. Todos os princípios da doutrina estão
sujeitos à crítica e à reformulação,
desde que uma prova científica, prova comprovada, seja reconhecida
como tal pelo consenso universal dos sábios.
(PIRES, 2005, p. 37-38)
Aqui temos tudo quanto poderia ter sido dito; porém,
preferimos estender a nossa pesquisa afim de provar, com dados consistentes,
o que Herculano Pires conclui acima.
Paulo da Silva Neto Sobrinho
Fev/2011.
Referências
bibliográficas:
ABREU FILHO, J. e PIRES, J. H. O verbo e a carne.
São Paulo: Edições Caibar, 1973.
CHAMPLIN, R. N. Evidências científicas demonstram que você
vive depois da morte. São Paulo: Nova Época, 1981(?).
DENIS, L. O problema do ser, do destino e da dor. Rio de Janeiro: FEB,
1989.
JUNG, C. G. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1975.
GUÉNON, R. O erro Espírita. São Paulo: Instituto
René Guénon, 2010.
KARDEC, A. A Gênese. Rio de Janeiro: FEB, 1995b.
KARDEC, A. Catálogo racional: obras para se fundar uma biblioteca
espírita. São Paulo: Madras, 2004.
KARDEC, A. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 1996.
KARDEC, A. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 1995a.
KARDEC, A. O que é o Espiritismo, Rio de Janeiro: FEB, 2001b.
KARDEC, A. Revista Espírita 1858. Araras, SP: IDE, 2001a.
KARDEC, A. Revista Espírita 1860. Araras, SP: IDE, 2000a.
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KARDEC, A. Revista Espírita 1862. Araras, SP: IDE, 1993b.
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KARDEC, A. Revista Espírita 1867. Araras, SP: IDE, 1999.
KARDEC, A. Revista Espírita 1868. Araras, SP: IDE, 1993d.
PIRES, J. H. Agonia das religiões. São
Paulo: Paideia, 2000.
PIRES, J. H. A evolução espiritual do homem (na perspectiva
da doutrina espírita). São Paulo: Paideia, 2005.
Fonte:
http://www.aeradoespirito.net/ArtigosPN/A_REENCARN_EH_UM_DOGMA_DOS_ESP_PN.html
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