"O corpo passa.
A alma vive no infinito e na eternidade."
FLAMMARION, 1923
Introdução (1)
Dos ilustres freqüentadores da Sociedade Parisiense de Estudos
Espíritas, contemporâneos a Kardec, o mais polêmico
é o jovem astrônomo Camille Flammarion.
Sua obra e suas convicções
influenciaram a geração que sucedeu ao codificador,
na França e no Brasil, e tornaram-se a base da Metapsíquica
nascente.
As obras sobre a vida de Flammarion
são raras. Na nossa língua encontramos pequenas biografias
de poucas páginas, há algumas resenhas sobre seus
livros de temática espírita na "Revue Spirite"
publicada por Allan Kardec, seu discurso no túmulo de Allan
Kardec, publicado pela FEB em "Obras Póstumas"
e os dados biográficos inseridos nos três livros "Allan
Kardec" de Zêus Wantuil. As principais fontes deste trabalho,
entretanto, devemos à gentileza de Alexandre Rocha, e são
o livro autobiográfico "Memórias Biográficas
e Filosóficas de um Astrônomo", escrito no início
do século XX, onde Flammarion relata sua infância,
seu contato com o Espiritismo, suas atividades e produção
relativas à astronomia. Outro documento também relevante
foi um fragmento de um discurso pronunciado por Flammarion em 1923,
na British Society for Psychical Research.
Infância
Nicolas Camille Flammarion foi o filho primogênito de um casal
de comerciantes de tapeçarias que viviam em Montigni-Le-Roi,
região leste da França. Veio à luz aos vinte
e seis dias de fevereiro de 1842.
Desde o nascimento os pais (especialmente
a mãe) lhe reservaram um "destino intelectual".
A mãe não deixava que o pequeno Nicolas brincasse
com as crianças do povo. Aos quatro anos ele lia, aos quatro
anos e meio escrevia, aos cinco anos iniciava os estudos de gramática
e aritmética e aos seis iniciava-se na escola, onde escrevia
com penas de pato.
Os pais de Flammarion tiveram mais
três filhos, Berthe Martin, Ernest e Marie Valliant. Ernest
Flammarion tornou-se dono de uma livraria e editora que publicou
(e ainda publica) algumas das obras do irmão. A família
parece ter-se envolvido no projeto dos pais, visto que no centenário
da publicação do seu laureado "Astronomia Popular",
a editora de Ernest Flammarion lançou a público uma
edição comemorativa.
Etienne-Jules, pai de Flammarion,
era cético em assuntos de religião, mas sua mãe,
Françoise Lomou era católica praticante e levava os
filhos todos os domingos à igreja. Ela acreditava que o filho
pudesse se dedicar à vida eclesiástica. Certa feita,
Etienne Jules trouxe a seu filho um livro de Cosmografia que o pequeno
copiou, especialmente os sistemas de Ptolomeu, Copérnico
e Tycho-Brahe.
Aos nove anos de idade, Flammarion
iniciou seus estudos de latim. Realizou seus estudos clássicos
na cidade de Langres, em uma escola católica que foi responsável
por seus sólidos conhecimentos em humanidades.
Após uma epidemia de cólera,
seus pais passaram dificuldades financeiras e foram para Paris.
Flammarion mudou-se em setembro de 1856. Para se manter ele trabalhou
como auxiliar de gravador e passou a estudar na Associação
Politécnica de Paris em cursos gratuitos, onde aprendeu melhor
as matemáticas que eram pouco enfatizadas no seu curso clássico.
Ele trabalhava cerva de 15 a 16 horas diariamente. Aos domingos
Flammarion estudava as disciplinas que despertavam seu interesse,
como a frenologia, a fisiognomia e os sistemas de Laváter,
Gall e Spurzheim.
Seu interesse pelos livros veio
desde os tenros anos da infância. Aos oito anos Flammarion
já possuía uma biblioteca de 50 volumes.
Flammarion - Astrônomo
Aos 15 anos Flammarion escreveu um livro de cerca de 500 páginas,
que ele próprio ilustrou com 150 desenhos, intitulado "Cosmogonia
universal: estudo do mundo primitivo". Este trabalho seria
publicado mais tarde com o título: "O mundo antes da
aparição do homem."
Com este livro em mãos,
o jovem ganhou coragem e apresentou-se no Observatório de
Paris, à época dirigido por Le Verrier, o astrônomo
que houvera descoberto Netuno sem instrumentos, apenas usando cálculo.
Após ser entrevistado e avaliado foi aceito como aluno-astrônomo.
Não nos deteremos em sua
carreira de astrônomo, já que temos por objetivo focalizar
sua trajetória e pensamento espíritas. Algumas informações,
entretanto, se fazem úteis para que se avalie suas realizações
profissionais.
Entre os tipos de atividades que
realizou, Flammarion mediu estrelas duplas e realizou cálculo
de suas órbitas, estudou a direção das correntes
aéreas, fez estudos higrométricos do ar, analisou
a rotação de corpos celestes, confeccionou mapas de
Marte e escreveu trabalhos sobre a constituição física
da Lua.
Analisemos suas publicações
científicas e jornalísticas. Seu primeiro livro publicado
foi "Pluralidade dos Mundos Habitados" (1861), seguido-se
"Viagem extática às regiões lunares",
"Os mundos imaginários e os mundos reais" (1865),
"As maravilhas celestes" (obra popular de divulgação
da astronomia), "Estudos e leituras sobre astronomia"
(1867), "Viagens aéreas" (1867), "Galerie
Astronomique" (1867), "Contemplações científicas"
(coletânea de escritos publicados nas revistas "Siècle",
"Magasin pittoresque" e "Cosmos" - 1870), "A
atmosfera" (1871), "Astronomia Popular" (1880), "O
mundo antes da criação do homem" (1885), "Os
cometas, as estrelas e os planetas" (1886), "Astronomia
para amadores" (1904) e "Raio e trovão" (1906).
Em "Pluralidade dos Mundos
Habitados" trata do sistema solar, realiza um estudo comparativo
dos planetas, discute a fisiologia dos seres a fim de abordar a
questão da habitabilidade, trata de habitantes de outros
mundos e da pluralidade dos mundos ante o dogma cristão.
Kardec resenha este livro na Revista Espírita, ressalvando
que apesar de não se tratar de livro espírita, trata
de assunto que envolve uma temática tratada pelos espíritos
e de um autor que então era membro da Sociedade Espírita
de Paris.
São muitas as revistas que
receberam suas contribuições. Em Junho de 1863, tornou-se
redator científico da revista "Cosmos", contribui
nas revistas "Siècle", "Magasin Pittoresque"
e funda, em 1882, a revista "L"Astronomie". Esta
última revista continua sendo editada até os dias
de hoje
O Observatório de Juvisy
foi fundado por Flammarion em 1883, onde passou a realizar seus
trabalhos nas áreas de astronomia, climatologia e meteorologia.
Ele é visto pelos astrônomos contemporâneos como
um astrônomo amador que realizou um trabalho de vulgarização
da astronomia (no seu sentido de divulgação, e não
no pejorativo de banalização)(2). Esta qualificação
possivelmente se deve ao fato de ele não fazer parte de nenhuma
academia ou centro de pesquisa oficial, mas, certamente, não
se pode qualificá-lo de amador por não publicar seus
trabalhos regularmente em periódicos científicos.
Quatro anos depois, ele tornou-se
o fundador da Sociedade Astronômica da França (Société
Astronomique de France), com o objetivo de "difundir as Ciências
do Universo e fazer os amadores participarem do seu progresso",
que continua vigente até os dias de hoje. Entre outras honrarias
e prêmios, a Sociedade concede anualmente a "Plaquette
du centenaire de Camille Flammarion", que é uma medalha
de prata e o prêmio "Gabrielle et Camille Flammarion"
para trabalhos e pesquisadores que se destacam.
A Academia Francesa concedeu a
Flammarion o prêmio Montyon, em 1880, por seu livro "Astronomia
Popular". Este foi um entre muitos. Nas suas memórias,
o astrônomo enumera o prêmio "Ruban Violet"
de oficial da instrução pública, a Grande Ordem
da Cruz de Isabella Católica e a "Cruz da Grande Ordem
de Carlos III", oferecidos pelo governo espanhol. D. Pedro
II, imperador do Brasil, foi pessoalmente ao observatório
de Juvisy entregar-lhe a comenda da "Ordem da Rosa" e
Flammarion recebeu das mãos do rei e da rainha da Romênia
o título de "Grande Oficial da Estrela da Romênia".
Os títulos e honrarias parecem estender-se bastante, e são
entendidos pelo beneficiário como marcos de estima e nunca
como pagamentos de préstimos políticos.
Primeiros Contatos de Camille Flammarion
com o Espiritismo
O primeiro contato de Flammarion com a doutrina dos espíritos
se deu em uma livraria, onde ele teve acesso a "O Livro dos
Espíritos" (1861). Ao folhear o livro o astrônomo
constatou que ele tratava, entre outros, do assunto do livro que
ele estava escrevendo: Pluralidade dos Mundos Habitados. O que mais
o intrigava é que a origem das informações
esta atribuída a espíritos, o que ele resolveu verificar.
Procurou Allan Kardec e passou
a assistir as reuniões da Sociedade Parisiense de Estudos
Espíritas, onde exercitava-se semanalmente na "escrita
automática" juntamente com outros médiuns, entre
eles, o jovem Theóphile Gautier. Na Sociedade ele obteve
diversas mensagens assinadas por Galileu, algumas das quais Kardec
inseriu em "A Gênese".
Flammarion frequentou, também,
as sessões de uma médium de efeitos físicos,
Mme. Huet, onde também iam pessoas famosas como Victorien
Sardou e o livreiro Didier. Em suas memórias ele registra
que viu a mesa erguer-se inteiramente, sem causa aparente. Observou
ditados que "não podem ser explicados por atos voluntários
das pessoas presentes". FLAMMARION, 1911.
p. 225
Outro grupo importante com que
o jovem Flammarion parece ter tido contato, por via literária
e pessoalmente, é o grupo de Victor Hugo.
Suas publicações
foram sendo resenhadas por Kardec na "Revue", geralmente
bem acolhidas e elogiadas por ele. A impressão que Flammarion
transmite ao leitor em sua biografia é a de uma certa predileção
de Kardec por ele. Na página 239 de suas Memórias
ele transcreve uma carta de um espírita que houvera assistido
a uma das conferências do codificador em Bordeaux onde Kardec
teria feito elogios públicos a um jovem de pouco mais de
dezoito anos (que seria ele próprio).
Outro fato que marca o apreço
de Kardec é o convite feito pelo Comitê Central da
Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, com o endosso
da Sra. Allan Kardec para que Flammarion fizesse um discurso junto
ao túmulo do codificador. Ressalvamos, entretanto, que Flammarion
não foi o único a realizar um discurso, como pode
parecer.
Dúvidas com Relação
à sua Própria Mediunidade
Após algum tempo, que Flammarion não precisa bem em
seus registros, ele passa a ter dúvidas acerca da própria
mediunidade e dos fenômenos de escrita automática.
Esta dúvida o perseguiria durante toda a sua vida. O que
nos aparenta, dada a leitura de suas publicações,
não é que o astrônomo francês houvesse
negado a existência dos espíritos e a sua comunicabilidade,
mas suas dúvidas diziam respeito à identificação
entre comunicações predominantemente anímicas
das comunicações mediúnicas.
"Eu
não demorei a observar que as nossas comunicações
mediúnicas(3) refletiam simplesmente nossas idéias
pessoais, e que Galileu por mim, e que os habitantes de Júpiter
por Sardou, são estranhos a estas produções
inconscientes dos nossos espíritos"
FLAMMARION, 1923
Durante a época em que redigia
suas memórias, Flammarion se apresenta como uma pessoa ressentida
com o movimento espírita da época, especialmente com
os que adotam a postura de crédulos e que parece terem se
voltado contra suas idéias de parcimônia científica
para com as pesquisas espíritas. Mesmo assim, ele admite
a existência de "forças desconhecidas e faculdades
da alma ainda inexplicadas". FLAMMARION,
1911. p. 225
"Há
espíritas de uma fé cega, que estão certos
de estar em comunicação com os espíritos.
Não há argumentação entre eles. Estes
não me perdoam de não partilhar de forma alguma
de suas certezas, que se tornam crenças religiosas em suas
casas. Mas há entre estes, outros que compreendem que apenas
o método científico nos pode conduzir ao conhecimento
da verdade. Estes se tornaram meus amigos"
FLAMMARION, 1911. p. 239
Em algumas de suas publicações persegue tão
tenazmente as hipóteses anímicas que deixa a impressão
de estar negando a existência do espírito. Léon
Denis, segundo a pena dedicada de Zêus Wantuil, tece alguns
comentários que transcrevemos abaixo:
"E também
Camille Flammarion teve suas horas de incertezas. Nos fizeram
notar que na última edição do seu livro -
As Forças Naturais Desconhecidas - publicada em 1917, mostra
uma tendência a explicar todos os fenômenos apenas
pela exteriorização do médium".
DENIS, 1918. p. 135
O ilustre Carlos Imbassahy (1951, p. 111-112)
considera que Flammarion eleva a ciência a uma posição
ímpar, procurando com seus métodos equacionar as questões
do espírito.
"Ora,
Flammarion é um simples cientista, que só no último
quartel de suas experiências admitiu a comunicabilidade
dos mortos.
Não se trata, nunca se tratou de um doutrinador. A Ciência
para ele era tudo. A certeza de que o fenômeno psíquico
era devido à alma dos defuntos custou-lhe uma existência
de trabalhos, de lutas, de verdadeira violência às
suas antigas convicções. (...)
Não se lhe podia pedir muito, nem pedir mais. "
Apesar destes "senões", Flammarion, após
uma vida de estudos psíquicos, não deixa dúvidas
quanto à sua convicção, baseada em fatos, na
sobrevivência e personalidade da alma humana. Convido o leitor
a analisar os livros de onde retiramos as citações
abaixo. O astrônomo francês é enfático
em sua defesa da imortalidade do espírito em "A
Morte e Seu Mistério", do qual transcrevemos
o seguinte parágrafo:
"Esses fatos, devidamente
comprovados, provam que a morte não existe, que é
apenas uma evolução, sobrevivendo o ente humano a
essa hora suprema, a qual não é de modo nenhum a última
hora. Mors janua vitæ: a morte é a porta da vida. O
corpo é somente um vestuário orgânico do espírito;
ele passa, muda, desagrega-se: o espírito permanece. (...)
FLAMMARION, 1922c. p. 323
Em sua publicação
mais próxima da desencarnação (4)
, o livro "As Casas Mal Assombradas",
Flammarion sustenta uma polêmica com autores franceses que
resistem à idéia da imortalidade da alma, marcando,
sem deixar dúvidas, a sua posição.
"Se
o Universo é um dinamismo, se o Cosmos bem justifica seu
nome (ordem), se o mundo desconhecido é mais importante
que o conhecido, se há forças inteligentes e seres
invisíveis, devemos preferir ao negativismo de Naquet,
Berthelot, Le Dantec, Littré, Cabanis, Lalande, Voltaire,
às convicções de Hugo, Pasteur, Ampère,
G"the, Euler, Pascal, Newton, espiritualistas, de vez que
estes atravessam a crosta das aparências e descobrem, na
análise das coisas, o dinamismos invisível, fundamental."
FLAMMARION, 1923. p. 320
O próprio Léon Denis, quando convidado por Jean Meyer
para ser presidente do III Congresso Espírita Internacional
(Paris-1925), recusou, tendo como certo que Flammarion o seria.
Foi necessário que o espírito Jerônimo lhe dissesse,
sem explicar, que ele não estaria lá. Flammarion certamente
estaria, se não fosse colhido pela visita da morte.
Há que se compreender, nos
dias de hoje, as pressões pelas quais Flammarion não
deve ter passado, seja no meio científico, seja no meio espírita.
Ainda nos dias de hoje procuram descaracterizar ou desvalorizar
sua obra espírita. Veja o lamentável comentário
de Pierre Grimal, que se intitula professor da Sorbonne:
"...Dedicou
igualmente vários trabalhos aos delicados problemas atinentes
à vida e ao destino humanos, mas sua obra neste campo carece
muitas vezes do rigor científico indispensável."
GRIMAL, 1969. p. 533
Questões Religiosas e o
Discurso no Túmulo de Kardec
Durante seus estudos clássicos, Flammarion foi introduzido
ao pensamento cristão, sob a ótica do Catolicismo.
Em suas memórias ele indica as reservas que foi fazendo aos
dogmas da Igreja. Servindo-se da razão, ele questiona o pecado
original, o mito de Adão, a idéia de redenção
e a descendência davídica de Jesus ante o episódio
da concepção. Com este espírito crítico,
ele não poderia seguir a carreira eclesiástica, como
desejava sua mãe, sem graves conflitos.
A posição que Flammarion
guardou, com relação às idéias religiosas,
para o resto da vida, foi de reserva. Quanto ao Catolicismo, ele
rejeitava o posicionamento teológico dogmático, mas
reconhecia um valor afetivo e moral, bem como o papel da filantropia
para a sociedade.
As idéias positivistas,
especialmente as referentes ao conceito e papel da ciência
no conhecimento, marcaram seu espírito. O empirismo de braços
dados com a razão, a construção das teorias
a partir da observação dos fatos, o questionamento
de qualquer sistema calcado em postulados apriorísticos e
o uso da matemática na análise dos fenômenos
são uma constante na construção do seu pensamento,
seja nas pesquisas astronômicas, seja nas pesquisas psíquicas.
Com estas "marcas", Flammarion
adotou uma postura reservada na análise dos fenômenos
espíritas.
Quando proferiu seu discurso no
túmulo de Kardec, ele reconheceu o trabalho do codificador,
considera-o "o bom-senso encarnado", mas propos-se a desenvolver
o aspecto científico do Espiritismo.
"Conforme
o seu próprio organizador previu, esse estudo, que foi
lento e difícil, tem que entrar agora num período
científico. Os fenômenos físicos, sobre os
quais a princípio não se insistia, hão de
tornar-se objeto da crítica experimental, a que devemos
a glória dos progressos modernos e as maravilhas da eletricidade
e do vapor. (...) Porque, meus Senhores, o Espiritismo não
é uma religião, mas uma ciência, da qual apenas
conhecemos o a, b, c. Passou o tempo dos dogmas."
FLAMMARION, 1869
Uma curiosidade que encontramos na Revue foi que o discurso impresso
nas Obras Póstumas e no volume de 1869 traduzido por Júlio
Abreu Filho é apenas um excerto do discurso original, que
teria sido publicado em forma de uma brochura de 24 páginas.
Na suas memórias Flammarion
afirma ter sido convidado a presidir a Sociedade Parisiense de Estudos
Espíritas, mas tê-lo declinado. Ele se explica da seguinte
forma:
"O comitê
me ofereceu suceder a Allan Kardec como presidente da Sociedade
Espírita. Eu recusei, dizendo que nove décimos dos
seus discípulos continuariam a ver, durante muito tempo
ainda, uma religião mais que uma ciência, e que a
identidade dos "espíritos" estava longe ainda
de ser provada."
FLAMMARION, 1911. p. 498
Esta citação, mas principalmente a que transcrevemos
abaixo, mostram como se discutia o caráter religioso do Espiritismo
à época de Kardec. Neste primeiro momento Flammarion
usa do termo religião para caracterizar "crença",
com um tom crítico devido ao tema isolado da identificação
dos espíritos. Entretanto, havia uma pretensão de
se constituir uma religião a partir de conhecimentos demonstrados
pela ciência. Kardec rejeitava a idéia de culto organizado,
hierarquias, etc. comumente atreladas ao conceito de religião.
Mas, possivelmente, compartilharia com Flammarion a idéia
abaixo:
"A existência
do Espírito na Natureza, nas leis do cosmos, no homem,
nos animais, nas plantas é manifesta. Ela deve bastar para
estabelecer a religião natural. E tal religião será
incomparavelmente mais sólida que todas as formas dogmáticas.
Os princípios da justiça se impõem com a
mesma autoridade, e Confucius, assim como Platão e Marco
Aurélio, antecipam a base desta religião."
FLAMMARION, 1911. p. 99
Embora não seja objetivo deste trabalho discutir-se o conceito
de religião, faremos uma breve incursão nas discussões
do século XIX.
O iluminista Voltaire, em seu "dicionário
filosófico", após demolir, com argumentos e ironias,
os dogmas irracionais e absurdos do credo católico e condenar
as relações entre religião e Estado, ainda
assim não se volta contra esta forma de conhecimento, fazendo
propostas para uma religião:
"Não
seria a mais simples? Não seria a que ensinasse muita moral
e poucos dogmas ? A que se empenhasse em tornar os homens justos
sem os tornar absurdos? A que não ordenasse a crença
em coisas impossíveis, contraditórias, injuriosas
para com a Divindade e perniciosas para o gênero humano
e não se atrevesse a ameaçar com penas eternas quem
quer que tivesse um juízo normal? Não seria a que
não sustentasse a sua crença com carrascos e não
inundasse a terra com sangue por causa de sofismas ininteligíveis?
Aquela em que um equívoco, um trocadilho e dois ou três
supostos certificados não transformariam um padre tantas
vezes incestuoso, homicida e assassino em soberano e Deus? A que
não submetesse os reis a esse padre? A que unicamente ensinasse
a adoração de um só Deus, a justiça,
a tolerância e a humanidade?"
VOLTAIRE, 1988. p. 193
Este autor foi brevemente discutido por Flammarion em suas memórias,
e parece ter deixado suas marcas.
O positivismo de Comte, ao propor
reformas sociais, como boa parte dos pensadores franceses do século
XIX, considera que a filosofia positivista poderia ser a base de
uma religião, que ele formulou como uma "religião
da humanidade". Por religião, Comte desejava que se
entendesse conforme a citação abaixo:
"...Em
si mesmo, este vocábulo indica o estado de completa unidade
que distingue nossa existência, a um tempo pessoal e social,
quando todas as suas partes, tanto morais como físicas,
convergem habitualmente para um destino comum. Assim, este termo
seria equivalente à palavra síntese, se esta não
estivesse, não por sua própria estrutura, mas segundo
um uso quase universal, limitada afora só ao domínio
do espírito, ao passo que a outra compreende o conjunto
dos atributos humanos. A religião consiste, pois, em regular
cada natureza individual e em congregar todas as individualidades;
o que constitui apenas dois casos distintos de um problema único.
(...) Com efeito, a fim de constituir uma harmonia completa e
duradoura, é preciso ligar o interior pelo amor e o religar
ao exterior pela fé."
COMTE, 1988. p. 85-88
Flammarion, entretanto, não compartilha das principais idéias
da religião positiva, uma vez que crê na existência
de Deus e na imortalidade da alma.
Considero como a maior influência
sofrida pelo astrônomo francês com relação
à noção de religião, as idéias
relativas à religião natural. Nos séculos XVIII
e XIX, este termo não tinha a acepção que se
aplica nos dias de hoje, quando se entende a religião natural
como uma religiosidade inata, própria de todas as pessoas
independente da educação. O conceito de então
enfatizava a possibilidade de se chegar à compreensão
de Deus e da imortalidade "através da reflexão
racional do mundo, considerando-se o pensamento humano e a experiência"
(HINNELS, 1988. P. 228). O termo utilizado
nos dias de hoje para estas idéias é "teologia
natural" (especialmente nos países de língua
inglesa).
Nas discussões sobre a religião,
que empreende no capítulo 7 das memórias, nosso astrônomo-filósofo
faz a crítica às religiões, mas a defesa da
religião. Propõe a articulação do sentimento
religioso à razão (p. 186), a unicidade do "sistema
do mundo moral" ao "sistema do mundo físico"
e a necessidade de as religiões reconhecerem seus erros,
posto que considera não haver "erros inofensivos, e
ainda mais erros respeitáveis e sagrados". Flammarion
considera fundamental e grave o problema da vida futura e da imortalidade
da alma. Entre suas primeiras publicações, encontramos
"Deus na Natureza" (1867), onde fica clara sua idéia
de possibilidade de articulação entre a ciência
e o que ele denomina a "verdadeira religião".
"A ciência
não é materialista, nem pode servir ao erro. Como,
e porque, pois, haveriam de temê-la o espiritualismo e a
verdadeira religião? Duas verdades não se podem
opor a uma terceira. Se Deus existe, sua existência não
poderia ser suspeitada nem combatida pela Ciência. (...)
Esperamos que esta tentativa de
versar a existência de Deus pelo método experimental
aproveite ao progresso de nossa época, por estar de acordo
com as suas tendências características ."
FLAMMARION, 1979. P. 14-15
Obra Espírita e de Pesquisa
Psíquica
Flammarion é um autor bastante
prolífico, e certamente não tivemos acesso a toda
a sua obra, que possivelmente não se encontra totalmente
traduzida. Para fins de análise de sua obra espírita,
a dividiremos em dois grandes grupos de livros: os de pesquisa e
os de ficção.
Entre os livros de ficção,
que algumas pessoas podem tomar como livros mediúnicos, temos
quatro vertidos para o português.
"Urânia",
escrito em forma de diálogos intercalados por informações
e idéias do movimento espírita e da astronomia, que
vaga entre os dados da pesquisa e a imaginação. Não
obtivemos a data original da sua publicação.
"O fim do mundo"
já traz uma nota da editora brasileira indicando como data
de publicação da primeira edição o ano
de 1893. Trata-se de uma ficção ambientada no vigésimo
quinto século sobre o fim do sistema solar.
"Narrações
do infinito" é o título em português
da obra denominada "Lumen" na sua língua original.
Foi escrito em 1866 e publicado na "Revue du XIXe Siècle".
O autor o considera como seu sexto livro, e o define como um "romance
astronômico" escrito em forma de diálogo entre
um vivo e um morto. Kardec elogia este livro em dois artigos publicados
na "Revue Spirite" e refere-se a ele da seguinte forma:
"Este trabalho, ao
qual reconhecemos, sem restrições, uma importância
capital, nos parece ser um daqueles que os Espíritos nos
anunciaram como devendo marcar o presente ano."
KARDEC, 1867. p. 100
"Estela"
é narrativa que tem por centro o amor de Rafael e Estela.
Traz em seu bojo as informações da Astronomia, o debate
com o materialismo e os temas espiritualistas.
Entre os livros de pesquisa temos
os títulos abaixo, três dos quais não encontramos
traduzidos para a nossa língua.
"Os espíritos
e o Espiritismo" é um artigo extenso (23 páginas),
publicado na "Revue Française" de fevereiro de
1863, onde Flammarion se coloca numa posição terceira,
e redige uma trajetória histórica dos eventos do movimento
espírita, das manifestações na América
até a sua conversão em doutrina filosófica.
"As forças
naturais desconhecidas" publicado em 1865, do qual
desconhecemos tradução para a nossa língua,
parece ser o mais polêmico de seus livros. Nele o autor parece
aprofundar-se nas explicações anímicas para
os fenômenos psíquicos, deixando em suspenso as hipóteses
espíritas. Este livro vai sendo reescrito à medida
que as edições sucedem-se. Em "As casas
mal assombradas", Flammarion considera como edição
definitiva a de 1906 (p. 290). Neste último livro, Flammarion
se defende das críticas escritas por Alfred Erny que se indigna
com o fato de Camille Flammarion referir-se às comunicações
com os moribundos, mas não sustentar a comunicação
com os mortos.
Kardec resenha a sua primeira edição
na "Revue" de março de 1866. Neste artigo, vê-se
que Flammarion o publicou com o pseudônimo de Hermes e, segundo
o codificador, que partiu em defesa dos irmãos Davenport,
debatendo com as opiniões expressas na imprensa da época.
Seu livro, que pelo visto nasceu sob o signo da polêmica,
gerou reações entre os jornalistas criticados. A opinião
do codificador é cristalina: "Podemos não partilhar
do sentimento do autor sobre todos os pontos, mas não deixamos
de dizer que o seu livro é uma refutação difícil
de refutar". (KARDEC, 1866. p. 97)
Suspeitamos que Kardec desconhecia a identidade real do autor do
livro quando redigiu sua resenha.
Nas suas memórias, Flammarion
afirma que não partiu em defesa dos Davenport, que lhe eram
desconhecidos e indiferentes, mas sim, do princípio da discussão,
ou seja, da existência de forças naturais desconhecidas.
"Deus na natureza"
que nas memórias tem por subtítulo "O materialismo
e o espiritualismo diante da ciência. Escrito em 1867, tem
por móvel debater com a "nova filosofia alemã",
de Virchow, Büchner e Molescott. Flammarion discute argumentos
levantados junto à Astronomia, Biologia, Química,
Fisiologia e Psicologia para fundamentar as idéias materialistas.
"Os últimos
dias de um filósofo", é a tradução
que Flammarion realizou de um livro do químico Sir. Humphry
Davy, escrito antes de 1830 e que trata da reencarnação,
entre outros temas. Foi anunciada a sua publicação
na "Revue" de Junho de 1869. O articulista afirma que
Kardec vinha solicitando insistentemente ao jovem astrônomo
para concluir seu trabalho. Nas memórias, Flammarion afirma
ter encontrado uma grande afinidade de convicções
entre Davy e ele próprio, e que esta tradução
foi publicada pela livraria Didier em 1868.
"O desconhecido
e os problemas psíquicos" prefaciado em 1900
e redigido para apresentar uma casuística extensa sobre fenômenos
que ele agrupa na designação de "o desconhecido".
Nele são apresentados casos de manifestações
de moribundos, aparições, telepatia e um estudo extenso
sobre os sonhos, envolvendo sua classificação e fenômenos
associados ao sonho, como a visão à distância,
as premonições, as manifestações de
moribundos e a telepatia. Seus dois capítulos iniciais, "os
incrédulos" e "os crédulos" colocam
desnudadas as posições de céticos e religiosos
dogmáticos ante os problemas do espírito.
"A morte e seu
mistério" o tema central deste trabalho é
a sobrevivência da alma após a morte. Aos moldes de
"O desconhecido...", traz uma casuística extensa
para fundamentar as argumentações do autor. Nele se
discute o materialismo, as faculdades supra-normais, como os pressentimentos,
as adivinhações, as premonições, os
fatos do magnetismo e do hipnotismo, a telepatia, a visão
à distância, o "dejá vu", os fenômenos
que acompanham os moribundos durante a morte e finalmente as comunicações
constatadas após a morte. Este trabalho se acha publicado
em português pela FEB, que o dividiu em três volumes.
"As casas mal
assombradas" é, possivelmente sua última
obra. Publicada em 1923, nela se examinam as manifestações
objetivas dos espíritos em localidades diferentes na europa.
Escrita em forma de estudos de caso (mais extensos que em "O
Desconhecido..." e "A morte ..."), propõe-se
ao final do livro uma classificação dos fenômenos
descritos e afirma claramente a imortalidade da alma em suas conclusões.
Em Síntese
Dos colaboradores de Kardec, Camille Flammarion foi o que mais valorizou
a construção do conhecimento espírita a partir
da metodologia empírica e positivista. Como conseqüência
desta sua postura ele passou anos de sua vida buscando fatos, sobre
os quais construiu a convicção na imortalidade da
alma, na comunicabilidade dos espíritos e na existência
de faculdades extra-sensoriais nos homens, o que frutificou-se na
Metapsíquica de Richet e posteriormente na Parapsicologia
de Rhine.
Esta sua visão de ciência
e as suspeitas que passou a ter para com os aspectos filosóficos
e religiosos do Espiritismo não o tornaram, contudo, um iconoclasta,
aos moldes de alguns críticos contemporâneos do aspecto
religioso do Espiritismo. Suspeitando do método de Kardec,
Flammarion lançou-se ao estudo continuado da fenomenologia
espírita, oferecendo-nos, quando desencarnou, uma obra que
tornou mais sólidas as bases científicas da doutrina
espírita. Quem sabe estes últimos não possam
ter suas idéias arejadas pelo pioneirismo do astrônomo
francês e redirecionar suas ações em uma cruzada
de construção e consolidação.
Crítico dos sistemas religiosos
e das verdades misteriosas bastante difundidos em sua época,
Flammarion se rendia ao espírito religioso e à construção
de uma religião natural, sem dogmas, sem mistérios
e sem sobrenatural, como o pensava Allan Kardec.
A obra espírita de Flammarion
sustentou e alimentou diversas gerações de espíritas
em nosso país, foi uma fonte importante nas discussões
que o movimento espírita brasileiro teve de sustentar com
diversos segmentos científicos e políticos de nossa
sociedade para manter o direito constitucional de existir. Consideramos
fundamental que a geração nova, que vem adquirindo
as bases do conhecimento espírita nas muitas mocidades e
juventudes de nosso país, não olvidasse a obra deste
cientista espírita. Se assim o dizemos aos jovens, o que
não diríamos aos muitos grupos e reuniões de
estudo sistematizado do Espiritismo.
Saudamos com estas poucas linhas
a memória e a obra do mais polêmico dos espíritas
franceses contemporâneos de Kardec.