
Resumo
O estudo do conhecimento
pela filosofia fica nas áreas de epistemologia e teoria
do conhecimento.
O professor Rivail era membro de diversas academias de pesquisa,
em diferentes áreas de conhecimento, e empregou esse seu
domínio para desenvolver o espiritismo. Neste trabalho
tentamos ter uma visão da obra de Kardec como um todo,
e não sustentar a argumentação que se faz,
de que o espiritismo emprega métodos das ciências
naturais, mas mais métodos das ciências humanas e
sociais em sua fundamentação. Ele às vezes
desenvolve pensamento filosófico e emprega da lógica
e da razão para a elaboração das ideias espíritas,
evitando contradições e dogmas. Na religião
ele analisa especialmente a moral que emerge do cristianismo,
com uma imensa tolerância para outras designações
religiosas. Na última fase de sua vida ele questionou se
deveria desenvolver o espiritismo dali para a frente como religião,
mas a queria sem hierarquia, dogmas e outros elementos exteriores
e irracionais do conhecimento.

Ciência é conhecimento
de forma geral. Há milhares de anos o Homem se interroga o
que pode ser considerado o conhecimento e esta discussão ainda
está em aberto, avançando e ganhando novos contornos
ainda nos dias de hoje.
Allan Kardec percebeu, ao iniciar seus estudos sobre a mediunidade,
que estudar espíritos é diferente de estudar reações
químicas ou fenômenos físicos (1),
como a trajetória de planetas. Mesmo sendo pedagogo, ele acompanhava
as descobertas da chamada ciência natural francesa. Ele também
não conseguia “medir” a maioria dos fenômenos
inteligentes ou intelectuais, sendo difícil estabelecer relações
matemáticas entre as observações que ele fez.
Ele precisava dialogar e compreender o que os médiuns lhe diziam
e atribuíam aos espíritos. Isso é o que hoje,
no contexto técnico, chamamos de compreensão, que é
um dos resultados do que chamamos ciências humanas e sociais.
(Dilthey 2014)
1. Cf. Kardec, “Introdução”.
Revista Espírita, 2-3
Outra coisa que Kardec percebeu rapidamente
foi que os espíritos não entendiam claramente sua condi
ção. Uns até achavam que estavam encarnados,
e outros mostravam mais ou menos conhecimento da vida após
a morte. Isso fez com que ele não conseguisse fazer uma coisa
muito comum na física e na química: a réplica.
Nos experimentos, descreve-se a metodologia empregada e repete-se
exatamente o que fez outro cientista, e geralmente se consegue o mesmo
resultado. Essa repetição exata de procedimentos e a
obtenção de mesmos resultados torna a explicação
que o cientista fez com base nesses resultados mais forte.
Se um estudioso acredita, com Auguste Comte, que esse estudo da natureza
demanda objetividade, réplica, medidas, relações
matemáticas e outras características que exigem regularidade
do objeto estudado (Comte 1988), então o espiritismo não
seria ciência. Mesmo os fenômenos de efeitos físicos
não podem ser replicados, repetindo-se os mesmos procedimentos,
porque os espíritos podem simplesmente não querer ou
não poder repeti-los como o fizeram da primeira vez. Sempre
há um sujeito por detrás dos fenômenos, o que
prejudica sua réplica (2), como
acontece com muitos fenômenos naturais, e que geraram as leis
naturais que os cientistas propuseram.
2. Kardec, “O que é o Espiritismo”,
77-78
Hoje, nas universidades, sabemos que
o estudo da consciência e do pensamento humanos exige outros
métodos. Um conjunto desses métodos é o que consideramos
próprios das ciências humanas. E Allan Kardec chegou
a conclusões semelhantes quando fez suas pesquisas. Como investigar
e desenvolver afirmações confiáveis com base
em falas de médiuns e de espíritos, todos falíveis?
Como testar se o que dizem está certo? Ele, então, usou
métodos que eram próprios da hermenêutica, por
exemplo. Quando um tradutor está em dúvida sobre o significado
de uma palavra, ele procura outros textos do mesmo autor em que ele
usa a palavra em outras situações. Na falta, procura
textos de autores da mesma época e cultura empregando a mesma
palavra. Ele pode errar? Pode, mas tem argumentos para defender sua
tradução, além do óbvio emprego da lógica
especificamente e da razão (o conhecimento filosófico)
(3) em geral na busca do sentido que
o autor pretende imprimir à sua frase. Ele terá certeza
do que afirma? Certeza absoluta não, mas o conhecimento das
ciências naturais também não tem certeza de suas
explicações. Ele está sempre se “consertando”
ante novos estudos, evidências e descobertas. (Ferrari 1982,
10-11)
3. Kardec, “Introdução”,
2-3. “Talvez nos contestem a denominação de Ciência,
que damos ao Espiritismo. Ele não teria, sem dúvida
e em nenhum caso, as características de uma ciência exata
e precisamente nisso está o erro dos que o pretendem julgar
e experimentar como uma análise química ou um problema
de matemática; já é o bastante que seja uma Ciência
filosófica. Toda ciência deve basear-se em fatos; mas
estes, por si sós, não constituem a Ciência; ela
nasce da coordenação e da dedução lógica
dos fatos: é o conjunto das leis que os regem. Chegou o espiritismo
ao estado de ciência? Se se trata de uma Ciência acabada,
sem dúvida será prematuro responder afirmativamente;
mas as observações já são hoje bastante
numerosas para permitirem pelo menos deduzir os princípios
gerais, onde começa a Ciência.”

Isso acontece em áreas de
conhecimento modernas, como o direito, a psicologia, a antropologia,
a ciência política e a ciência da religião.
Acontece também na filosofia. Seus estudiosos estão
sempre em busca do sentido do que é dito para formar uma compreensão.
As ciências naturais explicam, as ciências humanas e sociais
compreendem (4). O que Allan Kardec fez
foi desenvolver um método de estudo que lhe permitisse fazer
afirmações mais amplas. Ele desenvolveu uma “escala
espírita” para tentar identificar com que espírito
estaria conversando. Estudou em O Céu e o Inferno,
por exemplo, diferentes comunicações dadas por diferentes
médiuns, se possível, de espíritos em condições
semelhantes. As conclusões às quais ele chegou sobre
o suicídio, advêm de dezenas de comunicações
de suicidas por médiuns diferentes. Assim ele tem afirmações
mais “robustas”, como se diz hoje em metodologia da ciência.
Ele tornou públicas suas conclusões e deduções,
permitindo o contradito oriundo do estudo de outras comunicações,
através da Revista Espírita e de seus livros, podendo,
ao final, rever o resultado de suas compreensões. Dessa forma
ele chega a um conhecimento mais fundamentado que os encontrados em
trabalhos de médiuns que publicavam tudo o que lhes era dito
pelos espíritos, como Emmanuel Swedenborg. Essa ideia de partir
do diálogo de diversos depoimentos dos espíritos para
chegar a afirmações gerais, chamamos de pensamento indutivo,
no meio das ciências humanas. Mas é um indutivismo não
baseado na observação, mas na compreensão do
sentido do que é dito.
4. Dilthey, “Psicología y teoria
del conocimiento”, posição 4550. “La naturaleza
la “explicamos”, la vida anímica la “compreendemos”.

Um pensador que fez um método
muito parecido com esse de Kardec foi Edmund Husserl (5).
Do diálogo com as pessoas, em busca do sentido do que falam,
ele vai buscando um significado comum, que seria a base de uma ciência
que desconfia que a consciência reproduza fielmente o que acontece
na natureza, ou que põe em suspensão o que já
se falou sobre um determinado tema. Uma ciência dos fenômenos
conscientes, que privilegia a intersubjetividade, a compreensão
de duas consciências que interagem, sobre a natureza ou os sujeitos.
Essa fenomenologia de Husserl influenciou um número imenso
de pesquisadores das ciências humanas e sociais.
5. Sampaio, “Espiritismo e métodos
de pesquisa em ciências hermenêuticas e fenomenológicas”,
23-47.

Então nos perguntamos: o espiritismo
é uma ciência? É preciso ler, pelo menos a obra
de Allan Kardec, e se perguntar em que se baseia cada explicação
geral e cada compreensão de uma comunicação individual
para entender se ele usou elementos dos métodos de ciências
naturais, de ciências humanas e sociais ou de ciências
formais (lógica e matemática), para não ser injusto
com ele. No que tange aos conteúdos, ele estudou também
informações das religiões, consideradas reveladas
por divindades, enviados das divindades ou autoridades que se dizem
em contato com Deus. Ele elegeu o núcleo da ética cristã
como base da moral (6) e critério
para determinar os bons costumes, que hoje alguns autores propõem
talvez ser comum às religiões em geral, apesar de suas
diferenças.
6. Kardec, “O Evangelho segundo o Espiritismo”,
17-9.
Quando dizemos que o espiritismo foi
construído por Kardec e pelos espíritas posteriores
a ele com base no estudo de comunicações espirituais
e análise de fenômenos mediúnicos, que vemos que
nele há elementos de ciências naturais, ciências
humanas e sociais, filosofia e religião, essa última
mais como elemento da cultura a ser compreendido que um conjunto de
rituais, dogmas e hierarquias. No último texto escrito sobre
o espiritismo como religião (7),
Kardec se posiciona de forma clara. Ele divide a religião em
dois aspectos: um aspecto institucional e o que ele denomina como
sentido filosófico. Dados esses dois aspectos ele critica o
primeiro e se aproxima do segundo, e explica que evita o termo para
que as pessoas em geral não julguem o espiritismo como as grandes
religiões então conhecidas. Afinal, uma religião
que respeita os conhecimentos desenvolvidos pelas ciências e
corrige sua cosmovisão que entende que a razão humana
não é sua serva, mas é um instrumento em busca
da verdade e que pode se contrapor ao conhecimento religioso até
então estabelecido, pode ser vista como uma religião
como as outras? Ele pensa que não, então, como jornalista,
prefere evitar o termo pela sua ambiguidade.
7. Cf. Kardec, “Sessão
anual comemorativa dos mortos…”, 351-360.
O que Kardec vê como religião
no espiritismo? No seu texto “final” ele escreve cinco
páginas para falar da “comunhão dos pensamentos
nas assembleias religiosas”. Essa comunhão seria mental
e moral, uma espécie de laço que une seus membros. E
Kardec entende o sentido etimológico original da religião
como laço. Ele deve estar se referindo à palavra grega
Sýndesmos (8) que pode
ser traduzida ao português como religião, cuja raiz,
desmos, significa laço ou união e o prefixo
sýn, segundo o dicionário Houaiss, seria oriunda
de sún, que significaria “ao mesmo tempo, simultaneamente”.
A palavra sindesmo, em um dicionário de português escrito
em Portugal, passou à medicina com o sentido de ligamento (possivelmente
os ligamentos articulares), que teriam uma função semelhante
ao
sentido geral: unir.
8. Em caracteres gregos:
Esse é o sentido filosófico
que Kardec atribui à religião: a união, os “elos
de fraternidade”, a “comunhão de pensamentos”,
fundada sobre “as leis da natureza” (Kardec [s.d.], 357).
Outra coisa que claramente qualifica o espiritismo como religião
é a metafísica espírita, uma metafísica
que tem Deus como “causa primária” e chega até
essa posição pela via do raciocínio. Uma das
frases
que Kardec e seus contemporâneos valorizaram muito é
“todo efeito inteligente tem que decorrer de uma causa inteligente.”
(Kardec 1973, 53) Essa metafísica espírita, já
qualificaria o espiritismo como religião, porque Deus é
um conceito que transcende a natureza.
Outra questão é a concepção dos Espíritos
desencarnados. Eles não são percebidos pelos cinco sentidos
(e pelos novos sentidos apontados pelas ciências) então
podem ser vistos como seres preter-humanos (9)
ou seja, além de humanos, por serem seres humanos que mantêm
sua personalidade e características identitárias sem
ter um corpo físico. Este conceito central no espiritismo pode
fazer com que os cientistas o entendam como religião, e que
os estudiosos brasileiros o situem dentro do termo “religiões
mediúnicas”. Se um Espírito pode mover uma mesa,
mesmo com a “participação não fraudulenta
de um médium”, essa força operada pelo Espírito
é uma força natural ainda desconhecida, como diria Flammarion
(Flammarion 1979), e pertenceria ao campo das ciências naturais,
mas a identificação de uma inteligência ligada
a essa força, pertenceria ao campo das ciências humanas
e sociais. Mas como um ser invisível e preter-humano é
quem opera essa força, estaríamos falando de algo transcendente
à estreita concepção de ciências naturais,
e, portanto, enquanto não for reconhecido pela comunidade científica
em geral, está no campo filosófico e religioso (é
visto como ser transcendente pelos não-espíritas).
9. Cf. Wallace, “Diálogo com os
céticos”, 23.
A questão do caráter
religioso do espiritismo ainda continua polêmica. Penso que
ela era conflituosa na mente de Allan Kardec, uma vez que ele foi
educado na França pós-revolucionária e a religião
católica se havia integrado à monarquia e à sua
justificação como forma de governo. Ele também
estudou na Suíça e teve professores ligados a designações
protestantes. Na juventude, Kardec considerava absurdos os conflitos
entre católicos e protestantes, uma vez que as diferenças
entre eles podiam ser superadas (10),
e ele via pessoas de bem nas duas religiões. Além do
discurso no qual Kardec discute se o espiritismo era uma religião,
há outros textos que nos permitem entender de forma diferente
as hesitações de Allan Kardec.
10. Cf. “Biografia…”. Revista
Espírita, 128-9.


No início de sua obra, ele
afirma muito claramente que o espiritismo seria ciência de observação
e
filosofia. Ele escreve na capa de O Livro dos Espíritos,
acima do título que se tratava de uma filosofia espiritualista.
Em O que é o espiritismo, ele revê sua definição
de espiritismo por quatro edições, até termos
a quinta edição que não foi mais alterada. Até
então Kardec escreve que os membros do espiritismo poderiam
ter, cada um, sua filiação religiosa preferida (11),
ou seja, o espiritismo recém construído desejava ser
visto como uma ciência do mundo espiritual e das relações
do mundo espiritual com o mundo físico, que serviria como base
factual e teórica para as mais diversas religiões. Essa
visão, até um pouco ingênua, não avaliou
o poder do conservadorismo religioso e dos dogmas nas religiões
vigentes. Então, em 1861, ocorre o auto de fé de Barcelona,
e em 1863 Kardec declara que passado o período de luta, o espiritismo
entraria em um período religioso (12).
No ano seguinte ele publica O Evangelho segundo o Espiritismo,
um livro voltado ao desenvolvimento de uma moral espírita baseada
em uma moral cristã.
11. Cf. Kardec, “Viagem espírita
em 1862”, 144-7.
12. Cf. Kardec, “Período de luta”. Revista Espírita,
377-9.

Em 1865, Kardec publica O céu
e o inferno, onde faz um estudo comparatório entre as
religiões greco-romanas, o catolicismo de sua época
e o espiritismo, além de agrupar um número substantivo
de comunicações espirituais obtidas, a partir das quais
mostra a diversidade dos espíritos e a consequência de
seus atos no mundo espiritual que nos permite refletir como devemos
viver, considerando os relatos dos espíritos a partir da mediunidade.
Passa-se o tempo, e Kardec finalmente publicou A Gênese,
os milagres e as predições segundo o espiritismo.
Nesse livro, ele avança da decisão que tomou em O
Evangelho segundo o espiritismo, tratando dos milagres, das predições
e articulando a gênese bíblica com as descobertas das
ciências até à publicação do livro.
Ele entra em temas polêmicos que antes tentou evitar, sem abrir
mão das informações científicas e da filosofia,
mas discutindo pontos claramente religiosos, além da moral
cristã.
Essa é uma síntese de como Kardec foi adentrando mais
e mais no terreno da religião, com explicações
filosófico-científicas. Esses três últimos
livros cabem bem no que ele denominou como período religioso
do espiritismo.
Mais recentemente, foram obtidas e estão sendo trazidas a público
três coleções de manuscritos de Allan Kardec.
A Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais, Brasil, disponibilizou
espaço físico e virtual para a publicação
desses manuscritos. Em uma prece de Kardec, pertencente à coleção
Forrestier, em dezembro 1866, pleno período religioso, encontra-se:
“Senhor Deus Todo-Poderoso,
Quanto mais medito sobre o objetivo final do espiritista (sic)(13),
que é sua constituição em religião, mais
eu sinto minhas ideias se aclararem e o plano se delinear, sem dúvida
graças à assistência de vossos mensageiros; porém,
mais também eu sinto quanto esse trabalho exige calma e <meditações>
sérias.
Se me julgais digno, Senhor, de uma tal tarefa, fazei, peço-vos,
que eu possa ter a tranquilidade necessária. Se as circunstâncias
me obrigarem a me expatriar, peço que os bons Espíritos
preparem os caminhos para que eu possa, em meu retiro, dedicar-me
sem problemas a esses trabalhos. Dai-me sobretudo saúde, assim
como a Amélie.
Quanto ao local do retiro, tenho em vista Locarno, que me parece reunir
as melhores condições; sobre isso, porém, seguirei
os conselhos dos Bons Espíritos. Parece-me útil, antes
de partir, ter feito o volume da Gênese. Peço
aos Bons Espíritos que me assistam e me dêem o tempo
e as forças que me são indispensáveis.”(14)
13. Parece que nesse documento Kardec
trocou o m de spiritisme pela letra t.
14. Kardec, “Prece de Allan Kardec”, 179.

Poderíamos falar dos contextos
dos diversos países onde o espiritismo criou raízes,
e, certamente, eles influenciaram (e ainda influenciam) as decisões
tomadas pelos espíritas, quanto ao seu caráter. Essa
evolução ao longo dos anos, impede uma conclusão
com base exclusiva nas primeiras publicações e na definição
de espiritismo em “O que é o espiritismo”.
Lembremos que na vida de Rivail, a religião (católica,
principalmente) era considerada na França como a base da moral
e ensinada a todos os cidadãos que passassem pelas escolas.
Somente à época de Léon Denis se viu a implantação
do ensino laico e o abandono do ensino moral nas escolas, coisa que
o discípulo de Kardec, comentou em tom de lamento (15).
O tema do caráter do espiritismo é complexo e exige
de seus estudiosos e simpatizantes uma leitura capaz de identificar
quando o mestre francês emprega recursos próprios das
ciências naturais, das ciências humanas e sociais, da
filosofia e da religião, na sustentação de seus
argumentos e na explicação do ensino dos espíritos.
15. Cf. Denis, “Socialismo
e espiritismo”, 42-6.