Vi recentemente uma palestra em
um centro espírita intitulada "Fé: a certeza
instintiva da existência de Deus", em uma semana de comemoração
do nascimento de Allan Kardec.
Em Kardec, a expressão “certeza
instintiva” seria vista como um paradoxo, uma contradição
em si, porque ele advoga a certeza como fruto da razão e
o instinto como uma “inteligência sem raciocínio”.
Uma certeza instintiva, seria, em tese, uma certeza que não
se obtém através do raciocínio, mas que se
nasce com ela, uma espécie de crença inata, e que,
por isso, não é fruto da razão.
É por isso que não
se encontra em nenhum dos escritos publicados de Kardec a expressão
“certeza instintiva”, mas se encontra duas vezes “crença
instintiva” e se encontra "sentimento instintivo".
O instinto é uma palavra
usada em filosofia e em psicologia para explicar o comportamento
animal, principalmente o comportamento que não foi fruto
de aprendizagem. As fêmeas dos mamíferos, quando têm
seus filhotes, devoram suas placentas, os lambem até limpá-los
e os amamentam. Pelo menos as de ratos, cães e gatos fazem
uma espécie de ninhos, que têm papel de proteger os
filhotes de predadores e de facilitar seu aquecimento. Esses comportamentos
não foram aprendidos, e um mamífero não “sabe”
porque age assim, mas todos eles agem da mesma forma, conforme as
condições oferecidas pelo ambiente em que se encontram.
Isso é instinto, uma “compulsão” à
ação sem qualquer raciocínio, que um ser humano
pode até explicar e mostrar sua finalidade, sua utilidade,
seu papel na sobrevivência, mas que os animais fazem automaticamente,
sem certamente pensar: “estou grávida, o que devo fazer?”
A razão é um termo
ou expressão que se confunde com a história da filosofia.
Ela é empregada, de uma forma clássica, para explicitar
um conjunto de operações mentais lógicas e
consistentes, realizadas pelos seres humanos, que substituíram
com vantagem uma forma mágica de conhecimento, mítica,
na qual se contavam histórias para explicar, por exemplo,
como o homem aprendeu a utilizar o fogo (na cultura grega Prometeu
roubou esse segredo dos deuses). A razão exige argumentos,
provas, raciocínios segundo regras, na busca da verdade.
É uma operação essencialmente consciente, que
afeta o domínio afetivo do qual participa a fé, a
crença. O ser humano não é essencialmente racional,
então ele pode se mover por crenças racionais ou irracionais.
De volta a Kardec, ele advoga uma
fé raciocinada, ou seja, do domínio da razão,
capaz de diálogo com quem quer que apresente contra-argumentos
dentro das regras da lógica (ou das diversas lógicas
aceitas pelo grande guarda-chuva que chamamos de filosofia). O ser
humano deve crer com a anuência de sua razão e não
porque outros homens também creem. De uma certa forma, Kardec
é um filósofo, nesse ponto, semelhante a Kant, que
convida a humanidade a acordar do seu “sono dogmático”,
ou seja, das ideias compartilhadas por sua família, comunidade
religiosa, comunidade política, por seus amigos, mas que
não são sustentadas pela razão do próprio
sujeito.
A fé, portanto, é
passível de crítica, e a crítica não
é mal vista, mas entendida como a identificação
de um obstáculo para a explicação racional.
Quando a crítica é acolhida como ato de agressão,
de mera desconformidade, estamos no domínio da fé
em dogmas, que Kardec denomina como fé cega, em seu O evangelho
segundo o espiritismo.
Todavia, me dirão, Kardec
advoga que há uma crença em Deus partilhada pelas
diversas culturas do mundo, até mesmo de povos que apenas
recentemente haviam entrado em contato com a cultura ocidental e
a cultura oriental. Seria um sentimento instintivo de Deus, como
bem colocado na pergunta 6 de “O livro dos espíritos”.
Os espíritos usam esse conceito como base de um dos argumentos
que sustenta a existência de Deus. Seria algo assim: se todos
os povos, incluídos os primitivos (os que mesmo em nossa
época mantém suas crenças e costumes bem próximos
dos de dezenas de séculos atrás) têm um sentimento
instintivo de Deus e o manifestam em sua cultura, e se o ateísmo
e o agnosticismo são fruto da aprendizagem, da formulação
humana de uma incerteza da existência de Deus, é mais
provável que Deus exista. Esse não é um argumento
final, nem um argumento único em Allan Kardec, mas se soma
à explicação de sua defesa da existência
de um Deus transcendente.
Perceba o leitor que sentimento
instintivo, crença instintiva e ideias inatas, todas essas
expressões usadas por Allan Kardec, não são
o mesmo que certeza instintiva. Se é instintivo, é
irracional, e o que é do domínio do irracional não
gera certeza, a não ser em uma perspectiva que Kardec critica
e denuncia como fazendo parte da “fé cega”, e
Kant denuncia como um estado de “sono dogmático”,
atitudes que o espiritismo reconhece existirem, mas evita ao máximo
que estejam na fundamentação de suas afirmações.
Entendo que os expositores às
vezes façam afirmações de boa vontade, sem
intenção de conflito nem de rigor filosófico,
mas é necessário evitarmos a confusão de palavras
ao máximo, sob a pena de sermos mal entendidos e de levar
as pessoas que estão aprendendo o espiritismo a uma visão
contrária à de Kardec.