Foto: Fachada da Sociedade Espírita
Fraternidade, em Niterói-RJ
Escrevo essas recordações
para tornar público um ponto no tempo do movimento espírita.
Alguns dos participantes ainda estão encarnados, outros já
nos antecederam na grande viagem. A memória é uma
fonte “traidora” e vai se esfumando com o tempo. Algumas
coisas ficam bem marcadas, enquanto outras vão se apagando
lentamente, até que quem recorda não tenha mais certeza
do que realmente aconteceu.
No final dos anos 1970, início
dos anos 1980, havia uma proximidade muito grande entre a Associação
Espírita Célia Xavier-MG e a recém-nascida
Sociedade Espírita Fraternidade, de Niterói-RJ. Raul
Teixeira vinha pelo menos semestralmente a Belo Horizonte, fazer
palestras, seminários e cursos com os espíritas do
Célia Xavier, que geralmente eram abertos ao público.
Ele também fazia viagens, por diversas cidades do interior
mineiro, que acompanhávamos, de carro. Era um bom grupo e
ficou um bom relacionamento dessas viagens.
Em um dos primeiros anos de funcionamento
da Sociedade Espírita Fraternidade, fez-se uma coisa excepcional.
Os jovens da mocidade da SEF vieram a Belo Horizonte acompanhar
as nossas festividades do Natal. Fazíamos uma festa para
a distribuição de cestas de alimentos, com um teatro
e música para os acompanhantes que vinham buscar o farnel.
Já não me recordo bem se estávamos no Lar Espírita
ou se ainda o fazíamos no antigo auditório da sede
da AECX. O importante é que se estabeleceram laços
entre os membros das mocidades. Eu já conhecia o Luiz Carlos
Teixeira da Veiga, de outras palestras em que ele veio a BH com
o Alexandre Rocha, mas me recordo que nesse evento ele namorava
a Gilda. Luiz Carlos se formou posteriormente em Serviço
Social, informação dada pelo Alexandre Rocha.
Os anos se passaram e fui ao Rio
de Janeiro com meu amigo Ivan, que frequentava a mocidade AECX,
se a memória não me trai. Eu geralmente ficava na
casa de minha tia, em Manguinhos, mas fomos convidados a visitar
o Luiz Carlos e a Gilda, que haviam se casado.
Foi um final de semana excepcional.
Eles nos acolheram, levaram à praia no domingo de manhã,
fomos à mocidade da Sociedade Espírita Fraternidade
e para variar, falei bastante, porque quando mais jovem eu era tão
falante quanto a Emília, personagem de Monteiro Lobato. Na
casa deles, reencontrei com o amigo Alexandre Rocha, que iniciava
a criação da editora Arte e Cultura, que hoje é
a Lachâtre. Luiz Carlos me mostrou alguns livros espíritas
e espiritualistas que pretendiam traduzir e publicar, clássicos
em sua maioria. Ele me mostrou um dos livros de De Rochas, possivelmente
“As Vidas Sucessivas”, e me mostrou um livro de Carl
Reichenbach, sobre as forças ódicas, que creio que
não foi traduzido e publicado até hoje.
Convivíamos e conversávamos
muito. Fazíamos planos, projetos para o futuro. Quem diria
que uma visita de final de semana pudesse influenciar o futuro?
O terceiro membro do conselho editorial da Arte e Cultura era o
Hermínio Miranda, que só viria a conhecer rapidamente
alguns anos depois.
A história que gostaria de
contar foi de um convite para assistir a uma palestra do Luiz Carlos
na região dos lagos, em zona rural. Estávamos no Rio
de Janeiro, gostávamos de espiritismo, então aceitamos
com muito gosto o convite.
Se me recordo bem, foi um jovem
pertencente à comunidade quem o convidou. Entramos na Brasília
(marca de automóvel) que eles tinham e ganhamos estrada.
Acho que Gilda dirigiu na ida, fomos pelo asfalto, depois entramos
na estrada de terra, e chegamos a uma fazenda.
Foi uma experiência muito
diferente. Os participantes da reunião chegavam de todos
os lados, pelas trilhas abertas no meio dos pastos e mata. Um senhor,
dirigente da reunião, nos acolheu com gentileza e alacridade.
Ele se admirou do caderno universitário que eu carregava
comigo, para anotar uma síntese das palestras. A frase foi
algo assim:
- Puxa! Ele trouxe até um
caderno para anotar!
Eu me senti um pouco deslocado,
fora dos padrões locais, mas nunca me importei muito com
isso.
Começou a reunião,
e com ela uma prece, e depois da prece uma leitura de uma lista
de pessoas para serem atendidas pelos espíritos. Era uma
espécie de irradiação, que pelo que entendi,
fazia parte do trabalho público do grupo. Havia algumas dezenas
de participantes.
A leitura foi se estendendo, seu
conteúdo faz parte da memória que se “esfumaçou”,
mas o nome completo e o motivo da pessoa estar na lista era falado
em voz alta. Passaram-se cinco, dez, vinte, trinta minutos, e a
leitura continuava. Era uma prova de resistência espiritual,
talvez um dos exercícios de disciplina espiritual de Inácio
de Loyola. Todos acompanhando a leitura no mesmo tom. Acho que após
quase uma hora de reunião, passaram a palavra ao expositor
“que veio de longe”. O público (eu pelo menos)
já estava bastante cansado com a leitura. O que Luiz Carlos
iria fazer?
Ele foi sensato e fez bonito. Fez
uma saudação, uma introdução rápida
e contou a história “Há um século”,
de Irmão X, psicografia de Chico Xavier. Luiz Carlos falava
bem, envolvia seus ouvintes e dava um toque de emoção
discreto ao que falava. Encerrou sua fala com vinte ou trinta minutos,
e devolveu o público refeito da maratona de irradiações
para o dirigente da reunião.
Despedimo-nos, acho que foi servido
um lanche, em clima de fraternidade. Luiz Carlos tomou o volante
e foi dirigindo, até que passou uma marcha e o câmbio
travou. Estávamos no meio da estrada de terra, e não
sabíamos o que fazer.
Em uns quinze minutos, alguém
havia avisado aos moradores da fazenda e surgiu uma Kombi. A van
veio com uma corda mediana, que uniu a Brasília à
Kombi. Os passageiros passamos para a Kombi e um motorista foi na
Brasília, dirigindo. Enquanto estava plano, o arranjo funcionava.
Quando entrávamos em uma subida mais inclinada, a corda se
rompia. Então surgiu o plano B. Quando começava a
subida, os homens desciam da Kombi e empurrávamos a Brasília
para que a corda continuasse íntegra.
E foi assim até chegarmos
a uma cidade próxima, se não me engano, Araruama.
A Brasília ficou em uma oficina mecânica e terminamos
de chegar em Niterói.
Rimos bastante, e a amizade foi
se consolidando. Fiquei admirado com a disposição
dos espíritas da fazenda para prestar socorro da forma possível.
Tive uma experiência que nos mostra como o isolamento dos
grupos espíritas faz com que sua prática fique muito
singular, diferente mesmo do que é realizado nos outros centros
espíritas. Daí a importância do intercâmbio,
que muitas sociedades espíritas evitam, trabalhando isoladas
e até se acreditando superiores, sem qualquer parâmetro
de comparação.
Alguns anos depois o Luiz Carlos
desencarnou. Nunca trocamos cartas, como o fazia com outros espíritas
de então. Não fiquei sabendo. Em uma das vindas de
Raul Teixeira, pedi notícias a um dos jovens que trabalhava
na venda de livros sobre ele e sobre a Gilda.
- Ele desencarnou! Me informou,
lacônico e sem sensibilidade.
Creio que foi um tumor. E ele devorou
a saúde de um jovem trabalhador espírita, de muito
potencial. Saí de perto para ficar sozinho e recordar dele.
Uma lágrima escorreu. Tomara que esteja bem no mundo espiritual,
pelo bem que fez a muita gente durante sua curta estada na Terra.