A palestra do Dr. Brian Mishara
(foto), da Universidade do Quebec,
durante o II Simpósio Internacional CVV / Befriendres de
Prevenção do Suicídio, recentemente em São
Paulo, chamou a nossa atenção em dois aspectos, que
talvez tenha passado em branco aos presentes, mas que em nós
causou um certo incômodo e curiosidade.
Falando da história da prevenção do suicídio,
o psicólogo e educador canadense citou como pioneiros o Exército
de Salvação: 1917; a Universidade
Viena: 1937; e a Igreja Anglicana na qual atuava o Reverendo
Chad Varah: 1947. Ele lembrou que Chad era um catedrático
em psicologia e sempre foi voltado para as questões polêmicas
do comportamento humano - como sexualidade e suicídio - e
que isso incomodava muito os chefes da sua igreja. Tanto incomodava
essa sua visão científica que Chad foi transferido
para uma paróquia que não tinha párocos, sendo
apenas um prédio abandonado e destinado a ser um museu.
Fomos, então, pesquisar a história do Exército
da Salvação e percebemos o quanto os Samaritanos
e o próprio CVV tiveram uma formação
religiosa e salvacionista, simbólicamente falando. O inspirador
de Chad Varah (1911-2007) certamente foi o fundador
do Exército da Salvação, o pastor wesleyliano
Willian Booth (1829-1912), mais tarde chamado de General
Booth, cuja atuação a favor dos bêbados, ladrões
e prostitutas tornou-o persona non grata na sociedade vitoriana
da Inglaterra e proibido de pregar em muitas Igrejas. Ele só
falava do "lixo" humano, dos fracassados, dos doentes
mentais, enfim a "escória" da humanidade. Isso
era inadmissível numa sociedade que só cultua vencedores.
Chad Varah também tinha essa mania, vista por muitos como
desagradável e inconveniente, de falar de pervertidos sexuais,
abusadores de crianças, viciados de todas espécies
e finalmente de suicidas, ou seja, os piores dos piores da sociedade
pós-industrial.
Como surgiu essa associação?
No intervalo das atividades do Conselho Nacional, um dos nossos
companheiros, na porta de uma das salas de reuniões, reclamava
o retorno dos participantes para reiniciar as discussões.
Havia urgência, pois os coordenadores regionais e dos postos
tinham que refletir e tomar decisões importantes sobre o
nosso futuro, sobretudo o resgate do assunto suicídio no
CVV (nem quente nem frio nos últimos dez anos) e também
nossa presença mais direta ao lado dos tristes, solitários
e angustiados. Ele comentava: “Tá faltando o sino;
antigamente tínhamos um sino”, usado para lembrar os
esquecidos e alertar os retardatários. Nas escolas o sino
sempre foi o símbolo que define e divide os momentos mais
importantes do ensino e da educação: a reunião,
a concentração e a dispersão. Naquele instante
daríamos qualquer coisa para ver um sino nas mãos
desse companheiro, pois ele não chamaria apenas os dispersos
e distraídos dos compromissos de horário, mas também
todos que estão esquecendo as nossas origens e tornando morno
o entusiasmo pela nossa missão social.
O inspirador do CVV tinha também essa forte verve salvacionista
e ficou conhecido entre os seus admiradores e seguidores como “Comandante”.
Militar profissional, ativista e criador da Fraternidade dos Discípulos
de Jesus, o coronel Edgard Armond (1894-1982) via
a questão existencial humana como uma batalha íntima
permanente. Ele ficou conhecendo os serviços de prevenção
do suicídio através de notícias publicadas
na imprensa paulistana falando de uma atividade religiosa feita
em Turim e depois do Samaritans em Londres. Apesar das claras diferenças
religiosas e filosóficas, esse combate contra os inimigos
externos e internos da felicidade humana sempre foi ponto comum
entre o Exército da Salvação, os Samaritanos
e o CVV*.
Lendo depois a biografia do Willian Booth (cujo sobrenome significa
gabinete ou cabine telefônica, alías objeto e símbolo
que marcariam a imagem de Chad Varah e dos Samaritanos), ficamos
ainda mais intrigados com essas coincidências e ligações
entre todas essas pessoas e seus trabalhos.

John Booth, Edagard Armond e Chad Varah
Booth adotou o brasão militar
como símbolo de luta contra o mal e tinha como lema os três
“s” da atuação do seu Exército:
“Sopa, Sabão e Salvação”; Armond
adotou como símbolo o trevo de três folhas (tríade
céltica e druída do Altíssimo) e tinha como
lema formar samaritanos em três fases (Aprendiz, Servidor
e Discípulo) e expandir perpetuamente a raiz dessa obra:
“uma escola espiritual em cada esquina”, referindo à
urgência e ao poder da educação iniciática,
assim como sua imediata aplicação social. O CVV foi
um fruto dessa escola. Recentemente um usuário do CVV-Web
definiu dessa forma a ajuda que recebeu por meio da internet: “Me
sinto como se tivesse tomado um banho por dentro”, circunstância
que nos tempos atuais lembra que os serviços de ajuda emocional
funcionam também como uma limpeza psicológica, ainda
que não "passem um sabão" ou lição
de moral naqueles que os procuram. Sobre essa nova forma de apoio
psicológico e não assistencialista, Chad declarou
durante um CN no Brasil: "Não somos resolverdores de
problemas".
O combate contra os inimigos também são muito parecidos.
Os oponentes do Exército da Salvação se organizaram
rapidamente para lutar contra essa grande ideia e suas poderosas
práticas humanitárias:
“À medida que o Exército
de Salvação crescia no fim do século XIX,
também crescia a oposição ao movimento na
Inglaterra. Os oponentes da instituição se reuniam
no "Exército Esqueleto" (Skeleton
Army), para perturbar os encontros do Exército de
Salvação e suas atividades sociais. Muitos oponentes,
que chegavam a agredir fisicamente os membros "salvacionistas",
eram donos de tabernas e bares que estavam perdendo suas clientelas,
ao passo que novas pessoas largavam o vício e se uniam
ao Exército de Salvação”.
Nas atividades dos Samaritanos
e do CVV os inimigos também existem de muitas formas e expressões,
por todos nós há muito conhecidas, explícitas
e implícitas, sempre com a intenção de propagar
o desânimo, desarmar a boa vontade dos voluntários
ou então impedir, pelo conservadorismo e intransigência,
a evolução e a transformação positiva
do trabalho.
Para o inspirador dos Samaritanos, o futuro da humanidade e das
pessoas que trabalham para ajudar o próximo também
sempre foi motivo de preocupação, mesmo falando em
metáforas bíblicas do protestantismo:
“Considero que os principais
perigos que deveremos confrontar no próximo século
são: religião sem o Espírito Santo, cristianismo
sem Cristo, perdão sem arrependimento, salvação
sem regeneração, política sem Deus e céu
sem inferno.”
Já o inspirador do CVV,
na mesma linguagem mística e simbólica do seu pensamento
espiritualista, via assim os obstáculos para o voluntariado
no século XXI:
“Quem desejar a verdadeira
felicidade, há de improvisar a felicidade dos outros; quem
procure a consolação, para encontrá-la, deverá
reconfortar os mais desditosos da humana experiência. Dar
para receber. Ajudar para ser amparado. Esclarecer para conquistar
a sabedoria e devotar-se ao bem do próximo para alcançar
a divindade do amor”.
Esses dois pensamentos constituem
a base dos princípios e práticas dos voluntários
dos Samaritanos e do CVV, duas grandes instituições
que lutam não só contra a morte física, mas
também contra pior de todas elas, que é a morte da
perspectiva e da esperança.
* Segundo Yvone Pereira, os
fundadores do CVV e dos hospitais psiquiatricos espíritas
são provientes da colônia Cidade da Esperança,
citada no livro Memórias de um suicida, do escritor português
Camilo Castelo Branco.
