Espiritualidade e Sociedade



Dalmo Duque dos Santos

>   Sopa, sabão e amizade

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Dalmo Duque dos Santos
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25 de novembro de 2012

 




A palestra do Dr. Brian Mishara (foto), da Universidade do Quebec, durante o II Simpósio Internacional CVV / Befriendres de Prevenção do Suicídio, recentemente em São Paulo, chamou a nossa atenção em dois aspectos, que talvez tenha passado em branco aos presentes, mas que em nós causou um certo incômodo e curiosidade.

Falando da história da prevenção do suicídio, o psicólogo e educador canadense citou como pioneiros o Exército de Salvação: 1917; a Universidade Viena: 1937; e a Igreja Anglicana na qual atuava o Reverendo Chad Varah: 1947. Ele lembrou que Chad era um catedrático em psicologia e sempre foi voltado para as questões polêmicas do comportamento humano - como sexualidade e suicídio - e que isso incomodava muito os chefes da sua igreja. Tanto incomodava essa sua visão científica que Chad foi transferido para uma paróquia que não tinha párocos, sendo apenas um prédio abandonado e destinado a ser um museu.

Fomos, então, pesquisar a história do Exército da Salvação e percebemos o quanto os Samaritanos e o próprio CVV tiveram uma formação religiosa e salvacionista, simbólicamente falando. O inspirador de Chad Varah (1911-2007) certamente foi o fundador do Exército da Salvação, o pastor wesleyliano Willian Booth (1829-1912), mais tarde chamado de General Booth, cuja atuação a favor dos bêbados, ladrões e prostitutas tornou-o persona non grata na sociedade vitoriana da Inglaterra e proibido de pregar em muitas Igrejas. Ele só falava do "lixo" humano, dos fracassados, dos doentes mentais, enfim a "escória" da humanidade. Isso era inadmissível numa sociedade que só cultua vencedores. Chad Varah também tinha essa mania, vista por muitos como desagradável e inconveniente, de falar de pervertidos sexuais, abusadores de crianças, viciados de todas espécies e finalmente de suicidas, ou seja, os piores dos piores da sociedade pós-industrial.

Como surgiu essa associação?

No intervalo das atividades do Conselho Nacional, um dos nossos companheiros, na porta de uma das salas de reuniões, reclamava o retorno dos participantes para reiniciar as discussões. Havia urgência, pois os coordenadores regionais e dos postos tinham que refletir e tomar decisões importantes sobre o nosso futuro, sobretudo o resgate do assunto suicídio no CVV (nem quente nem frio nos últimos dez anos) e também nossa presença mais direta ao lado dos tristes, solitários e angustiados. Ele comentava: “Tá faltando o sino; antigamente tínhamos um sino”, usado para lembrar os esquecidos e alertar os retardatários. Nas escolas o sino sempre foi o símbolo que define e divide os momentos mais importantes do ensino e da educação: a reunião, a concentração e a dispersão. Naquele instante daríamos qualquer coisa para ver um sino nas mãos desse companheiro, pois ele não chamaria apenas os dispersos e distraídos dos compromissos de horário, mas também todos que estão esquecendo as nossas origens e tornando morno o entusiasmo pela nossa missão social.

O inspirador do CVV tinha também essa forte verve salvacionista e ficou conhecido entre os seus admiradores e seguidores como “Comandante”. Militar profissional, ativista e criador da Fraternidade dos Discípulos de Jesus, o coronel Edgard Armond (1894-1982) via a questão existencial humana como uma batalha íntima permanente. Ele ficou conhecendo os serviços de prevenção do suicídio através de notícias publicadas na imprensa paulistana falando de uma atividade religiosa feita em Turim e depois do Samaritans em Londres. Apesar das claras diferenças religiosas e filosóficas, esse combate contra os inimigos externos e internos da felicidade humana sempre foi ponto comum entre o Exército da Salvação, os Samaritanos e o CVV*.

Lendo depois a biografia do Willian Booth (cujo sobrenome significa gabinete ou cabine telefônica, alías objeto e símbolo que marcariam a imagem de Chad Varah e dos Samaritanos), ficamos ainda mais intrigados com essas coincidências e ligações entre todas essas pessoas e seus trabalhos.


John Booth, Edagard Armond e Chad Varah

 

Booth adotou o brasão militar como símbolo de luta contra o mal e tinha como lema os três “s” da atuação do seu Exército: “Sopa, Sabão e Salvação”; Armond adotou como símbolo o trevo de três folhas (tríade céltica e druída do Altíssimo) e tinha como lema formar samaritanos em três fases (Aprendiz, Servidor e Discípulo) e expandir perpetuamente a raiz dessa obra: “uma escola espiritual em cada esquina”, referindo à urgência e ao poder da educação iniciática, assim como sua imediata aplicação social. O CVV foi um fruto dessa escola. Recentemente um usuário do CVV-Web definiu dessa forma a ajuda que recebeu por meio da internet: “Me sinto como se tivesse tomado um banho por dentro”, circunstância que nos tempos atuais lembra que os serviços de ajuda emocional funcionam também como uma limpeza psicológica, ainda que não "passem um sabão" ou lição de moral naqueles que os procuram. Sobre essa nova forma de apoio psicológico e não assistencialista, Chad declarou durante um CN no Brasil: "Não somos resolverdores de problemas".

O combate contra os inimigos também são muito parecidos.

Os oponentes do Exército da Salvação se organizaram rapidamente para lutar contra essa grande ideia e suas poderosas práticas humanitárias:

“À medida que o Exército de Salvação crescia no fim do século XIX, também crescia a oposição ao movimento na Inglaterra. Os oponentes da instituição se reuniam no "Exército Esqueleto" (Skeleton Army), para perturbar os encontros do Exército de Salvação e suas atividades sociais. Muitos oponentes, que chegavam a agredir fisicamente os membros "salvacionistas", eram donos de tabernas e bares que estavam perdendo suas clientelas, ao passo que novas pessoas largavam o vício e se uniam ao Exército de Salvação”.

Nas atividades dos Samaritanos e do CVV os inimigos também existem de muitas formas e expressões, por todos nós há muito conhecidas, explícitas e implícitas, sempre com a intenção de propagar o desânimo, desarmar a boa vontade dos voluntários ou então impedir, pelo conservadorismo e intransigência, a evolução e a transformação positiva do trabalho.

Para o inspirador dos Samaritanos, o futuro da humanidade e das pessoas que trabalham para ajudar o próximo também sempre foi motivo de preocupação, mesmo falando em metáforas bíblicas do protestantismo:

“Considero que os principais perigos que deveremos confrontar no próximo século são: religião sem o Espírito Santo, cristianismo sem Cristo, perdão sem arrependimento, salvação sem regeneração, política sem Deus e céu sem inferno.”

Já o inspirador do CVV, na mesma linguagem mística e simbólica do seu pensamento espiritualista, via assim os obstáculos para o voluntariado no século XXI:

“Quem desejar a verdadeira felicidade, há de improvisar a felicidade dos outros; quem procure a consolação, para encontrá-la, deverá reconfortar os mais desditosos da humana experiência. Dar para receber. Ajudar para ser amparado. Esclarecer para conquistar a sabedoria e devotar-se ao bem do próximo para alcançar a divindade do amor”.

Esses dois pensamentos constituem a base dos princípios e práticas dos voluntários dos Samaritanos e do CVV, duas grandes instituições que lutam não só contra a morte física, mas também contra pior de todas elas, que é a morte da perspectiva e da esperança.

 

 

* Segundo Yvone Pereira, os fundadores do CVV e dos hospitais psiquiatricos espíritas são provientes da colônia Cidade da Esperança, citada no livro Memórias de um suicida, do escritor português Camilo Castelo Branco.

 





Fonte:
http://observadorespirita.blogspot.com.br/2012/11/sopa-sabao-e-amizade.html

 


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