“Pessoalmente Allan
Kardec era de estatura média. Compleição
forte, com uma cabeça grande, redonda, maciça, feições
bem marcadas, olhos pardos, claros, mais se assemelhando a um
alemão do que a um francês. Enérgico e perseverante,
mas de temperamento calmo, cauteloso e não imaginoso até
a frieza, incrédulo por natureza e por educação,
pensado seguro e lógico, e eminentemente prático
no pensamento e na ação. Era igualmente emancipado
do misticismo e do entusiasmo... Grave, lento no falar, modesto
nas maneiras, embora não lhe faltasse uma certa calma dignidade,
resultante da seriedade e da segurança mental, que eram
traços distintos do seu caráter. Nem provocava nem
evitava a discussão, mas nunca fazia voluntariamente observações
sobre o assunto a que havia devotado toda sua vida; recebia com
afabilidade os inúmeros visitantes de toda parte do mundo
que vinham conversar com ele a respeito dos pontos de vista nos
quais o reconheciam um expoente, respondendo a perguntas e objeções,
explanando as dificuldades, e dando informações
a todos os investigadores sérios, com o quais falava com
liberdade e animação, de rosto ocasionalmente iluminado
por um sorriso genial e agradável, conquanto tal fosse
a sua habitual seriedade e conduta que nunca lhe ouvia uma gargalhada
(...)”
A adoração e mitificação de Allan
Kardec no meio espírita realmente é um fato contra
o qual não temos argumentos. Os adjetivos para exaltar a
figura venerável de Allan Kardec entre alguns espíritas
às chega muitas vezes aos limites do exagero. O último
desses repentes românticos é dizer que as obras de
Kardec são “insuperáveis”, como se as
mesmas fossem peças sagradas de uma revelação
religiosa fundamentalista ou tese científica fora dos padrões
acadêmicos e queultrapassam milagrosamente os limites e reflexos
da época e do contexto em que foram produzidas.
Quem faz esse tipo de afirmação
ignora a história e a filosofia ou então não
leu Kardec com o olhar sereno e auto-crítico que o próprio
mestre francês faria sobre si e a sua obra. Herculano Pires
conhecia como ninguém e era apaixonado pela obra de Kardec
mas, mas nunca ultrapassou as marcas sensatas do elogio ao enaltecer
a “atualidade” das obras básicas.
Ver Kardec dessa forma, “insuperável”,
significa que os espíritas não conhecem os limites
do conhecimento humano, mesmo em outras dimensões, já
que o fato de mudarmos de plano existencial através do desencarne
não nos transforma também milagrosamente em pessoas
diferentes daquilo que éramos quando encarnados. Kardec e
os Espíritos Superiores admitem que a Verdade existe, mas
nunca nos iludiram de que pudéssemos conhecê-la integramente
só pelo fato de nos tornarmos simpatizante do Espiritismo.
Mesmo a metodologia e a organização didática
aplicada na codificação (no sentido de comunicação,
e não nesse sentido vulgar de legislador que tentam dar a
Kardec) jamais foram apresentadas como tratados dogmáticos
permanentes e insubstituíveis.
Não, Kardec jamais desejaria
para nós aquilo que tanto combateu a vida inteira para si
mesmo: a escravidão mental, o medo, a superstição
e a prostração ingênua diante dos desafios e
questões intrigantes que a vida nos impõe. Isso não
diminui em nada a admiração que temos por ele e pela
sua luta em contribuir para fosse implantado um novo paradigma de
conhecimento. Pelo contrário, quando nos lembramos da época
em que ele viveu e das dificuldades que enfrentou para expor suas
idéias, imediatamente o trazemos par o século XXI,
não como referência absoluta em termos filosóficos
e científicos, mas certamente como modelo humano relativo
de postura intelectual e conduta de comunicador.
Façamos um teste para verificar que tipo de impressão
Kardec nos causa como referência, a mesma que temos ao ler
suas obras : se de natureza mítica e superficial ou então
reflexiva e racional. Leiamos com admiração, porém
com muita atenção e crítica, a descrição
dele feita por Anne Blackwell ( registrada por Artur Conan Doyle),
para saber se estamos olhando Kardec de maneira real ou idealizada.
O resultado, como não poderia deixar de ser, continuará
sendo subjetivo e dentro dos limites pessoais da cada leitor.
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