Para os novos simpatizantes e pesquisadores
do Espiritismo, o psicólogo e escritor Jaci Régis
realmente não dispensa apresentações. Ativista
histórico, começou no movimento espírita liderando
a mocidade Estudantes da Verdade, cuja primeira empreitada foi mudar
o nome da casa que frequentavam: saiu o Centro Beneficente Evangélico
e nasceu o Centro Espírita Allan Kardec, até hoje
em funcionamento. Jornalista sindicalizado, editou durante muitos
anos o periódico Espiritismo e Unificação,
mudado nos anos 1980 para o provocativo nome “Abertura”.
Criado na onda da redemocratização do País,
o jornal continua ativo e sempre aberto aos novos articulistas.
Nele publicamos alguns artigos marcantes (pelo menos para nós).
Foi o primeiro veículo a publicar o texto "A degeneração
do Espiritismo", cujo título foi corrigido pelo próprio
Jaci. É também dele a autoria da antiga e famosa proposta
de “espiritizar” o movimento espírita brasileiro,
segundo ele excessivamente influenciado pelo evangelismo. Sua trajetória
jamais deixará de ser associada ao chamado Grupo de Santos,
formado por pensadores de vários lugares do Brasil e da América
Latina que enxergam o Espiritismo de uma forma bem diferente daquilo
que é praticado na maioria dos espíritas. É
o espiritismo laico, não religioso, voltado para as questões
sociais e cotidianas e não somente para os problemas espirituais.
Só esses dois adjetivos são suficientes para avaliar
as repercussões e o incômodo que ele causa entre os
espíritas tradicionais.
Mas Jaci não é nada daquilo que pintam sobre ele,
sobretudo o líder radical e intolerante desenhado pelos que
se sentem inseguros e impotentes diante de suas idéias e
da coragem de divergir da maioria. É uma pessoa fraterna,
muito franca, bem-humorada, sensível, enfim, um típico
espírita que convence mais pela forma como age do que propriamente
pelo que pensa. Ele e sua esposa Palmira, com a ajuda dos filhos
e de alguns amigos, dirigem há muitos anos o Lar Veneranda
e mais recentemente o Instituto Cultural Kardecista, dois espaços
muito conhecidos em Santos. O Lar é uma típica obra
social espírita, da qual Jaci sempre diz que é simples
obrigação de cidadão: “Não me
sinto nada caridoso fazendo isso”. Já o ICKS é
trabalho de prazer e combate ideológico, espaço de
cultura, de agitação e realização de
eventos, principalmente o Simpósio Brasileiro do Pensamento
Espírita. Com 77 anos de idade, hoje funcionário aposentado
da Petrobrás, Jaci Régis continua inquieto. E apesar
da repetição desses números cabalísticos
na sua idade, permanece bem longe do misticismo. Nunca achamos que
ele fosse polêmico, porque os polemistas são muitas
vezes vazios e repetitivos. Na verdade ele é um inovador,
um agitador cultural. Daí a força das suas idéias
e exemplos. Sempre criando e reinventando, que é a essência
do seu pensamento atualizador do Espiritismo, ele agora se dedica
a mais nova proposta do ICKS: o Gabinete Psico-Mediúnico.
Muito ocupado e objetivo, conversamos rapidamente por telefone e
ele reforçou o convite para participarmos do Simpósio
em outubro próximo. Também nos concedeu uma interessante
entrevista sobre todas essas coisas a seu respeito e também
sobre a sua última novidade.
____________
OE - A religião continua sendo
um equívoco dentro do movimento espírita?
Sem dúvida. Na medida e
que o Espiritismo se torna uma religião, perde a flexibilidade
evolutiva que lhe caracteriza a estrutura criada por Allan Kardec.
A religião, por definição, apóia-se
em verdades absolutas e por afirmações dogmáticas.
OE- Por que os espíritas
têm tanta dificuldade para romper com os laços religiosos
e cultivar uma religiosidade mais natural?
Devemos ter em mente que as estruturas
religiosas se sedimentaram em nossa mente através das reencarnações.
Romper com elas é tarefa de reflexão, meditação,
raciocínio e decisão. Isso acontece quando a pessoa
consegue superar o medo de ficar desamparada pelo divino e compreende
que o divino se manifesta diariamente na vida de todos.
OE- Você acredita
que Kardec estranharia o atual movimento espírita no Brasil?
Creio que sim, porque a forma como
foi desenvolvido o Espiritismo no Brasil contraria a linha que ele
adotou na criação da doutrina.
OE- Queiram ou não
queiram os antipáticos, o chamado Grupo de Santos formou
escola e já entrou para a história do movimento espírita.
Como você vê tudo isso?
O “grupo de Santos”
do qual eu fui o principal articulador, teve a coragem, no seu tempo,
de apresentar uma visão dinâmica da doutrina em contraposição
ao esquema montado por pessoas e Espíritos ligados umbilicalmente
ao sentido cristão da vida.
OE- Você sempre foi
muito crítico ao perfil doutrinário da FEB e de outras
entidades federativas. Houve alguma mudança na sua opinião?
A FEB é uma instituição
respeitável e lidera a maior parte do movimento espírita.
A ela estão ligados os representantes dos centros e federações.
Entretanto, desde sua fundação ela seguiu um caminho
próprio, diferente do preconizado por Kardec. Esse caminho
compreendeu um extremo sentido religioso, místico e até
aceitando as teses de Roustaing. Ultimamente se tornou menos inflexível,
mas prossegue na sua intenção de liderar o movimento
espírita mundial, na feição de corrente evangélico-mediúnica.
OE- A CEPA é realmente
uma alternativa crescente no movimento espírita?
A CEPA pode se tornar uma alternativa
positiva ao Espiritismo mundial, na media que se espalha não
apenas na América, mas também na Europa. É
numericamente pequena, mas reúne um grupo de espíritas
que possui gabarito intelectual para disseminar uma forma de entender
o Espiritismo adequado ao progresso e à realidade social.
Para isso, contudo, é necessário definir claramente
seus objetivos e trabalhar por eles.
OE- E sobre as práticas
espíritas, você considera o passe uma autêntica
atividade espírita?
Hoje em dia se diz aplicação
ou transmissão energética, por ser mais adequada ao
processo de transmissão de energia humana e magnética.
Não se trata de uma prática genuinamente espírita,
mas oriunda do magnetismo. Penso que é útil e efetiva
quando aplicada de forma consciente e fraterna, sem considerá-la
uma panacéia.
OE- O que é o Gabinete
Psico-Mediúnico?
Com o Gabinete Psico-Mediúnico
pretendemos oferecer uma opção para as pessoas com
problemas emocionais, nos quais incluímos naturalmente a
obsessão. Queremos criar um ambiente seguro de bases psicológicas,
através de técnicas de relaxamento e respiração,
por exemplo, indução à renovação
do pensamento e complementarmente por orientação mediúnica
e aplicação energética.
OE- Por que você
passou a utilizara expressão “kardecista”, não
bastava apenas “espírita”?
Entre as muitas deturpações
a que o Espiritismo tem sofrido, incluímos a apropriação
de desvio do significado dos termos “espiritismo” e
“espírita”. Correntes esotéricas e de
base dos cultos africanos se auto denominaram espíritas e
as ousadias de dirigentes de centros que se intitulam espíritas
criando “doutrinas próprias”, tornou o ambiente
confuso, de modo que a palavra “espírita” não
significa necessariamente o que Allan Kardec criou. Por isso, acreditamos
que a palavra “kardecista” oferece uma apropriada denominação
ao esforço que temos feito de reescrever o pensamento de
Allan Kardec, adequando-o ao processo evolutivo das idéias
e da humanidade. Daí crermos que “kardecista”
refere-se mais especificamente ao trabalho original de Allan Kardec,
delimitando nosso espaço e definindo nossos propósitos.
Certamente jamais a palavra “espírita” será
substituída por ter sido criada por Kardec, mas “kardecista”
está diretamente ligada ao criador da doutrina.
OE- Ser kardecista hoje
significa ser fiel, sectário e até fanático
em algumas situações e agremiações espíritas.
O que está acontecendo?
Ser kardecista é ter conseguido
livrar-se dos condicionamentos sectários e ter um novo pensar,
dinâmico e reflexivo sobre os problemas humanos, a partir
dos enunciados iniciais de Allan Kardec.
OE- Finalmente, o que está
desatualizado: Kardec ou o Espiritismo? Kardec é necessariamente
sempre sinônimo de Espiritismo?
Kardec é o criador do Espiritismo.
Daí ser a raiz do pensamento espírita agora e sempre.
Mas ele deixou claro um caminho de evolução e aperfeiçoamento
do corpo doutrinário. Sendo como foi um homem atual, moderno
e um pensador sábio, ao constatar que o Espiritismo seria
ultrapassado se fosse uma religião ou tentasse ter as respostas
absolutas para os problemas da pessoa humana com os conhecimentos
de sua época. Por isso, deixou claro que o Espiritismo evoluiria
ou morreria. A “morte” do Espiritismo não se
dará por desaparecer, mas por perder seu significado progressivo
e progressista e quando não puder oferecer ao ser humano
uma reflexão cabível e atual sobre si mesmo e seu
futuro.
* * *