As diferenças de ideias e
práticas entre Espiritismo e religiões afro-indígenas
são históricas e não apenas conceituais. Mesmo
que haja um diálogo de conhecimentos e convívio social,
as diferenças persistem nas atividades particulares de cada
uma das agremiações, não como intransigência
conflituosa e sim como reflexo da diversidade cultural e de objetivos
dos seus adeptos.
Há uma disputa ou competição entre essas duas
correntes?
Existe, sim, não por parte dos espíritas, mas geralmente
de alguns segmentos que não são espíritas,
porém se utilizam de práticas espíritas como
conhecimento e também como legitimação e aceitação
social. Há atualmente grupos não espíritas
que se valem dos conhecimentos espíritas para melhorar suas
práticas mediúnicas e doutrinárias, porém
não se sentem ameaçados ou diminuídos, nem
demonstram qualquer sentimento de antipatia e hostilidade competitiva
para com o movimento e a identidade espíritas. O que percebemos
também é que existe uma tentativa forçada de
equalização de conceitos e práticas, bem como
ressentimentos da parte dos praticantes de cultos afro-indígenas,
atribuídos à não aceitação por
parte dos espíritas de suas práticas e manifestações
no ambiente espírita.
Ainda persiste, em diversos segmentos afro-indígenas, um
certo sentimento de animosidade e rancor para com a Doutrina Espírita.
Isso não vem somente das concepções doutrinárias
em si, mas das pessoas, encarnadas e desencarnadas, que compõem
tais agremiações. A fundação da umbanda,
bem como uso do candomblé como oposição ideológica
ao Espiritismo não foi uma simples contraposição
teórica ou doutrinária. Surgiu de conflitos sobre
as diferenças de práticas, segundo relatam os próprios
historiadores desses segmentos, mas também estimulada como
confronto por algumas inteligências do Além ainda marcadas
pelas recentes mágoas da escravidão imposta pelos
europeus sobre os africanos e indígenas; funda-se talvez
também na antiquíssima ideologia das raças,
uma rivalidade entre a raça negra, dominante nas primeiras
eras da Humanidade, pela força da paixão e pela imposição
do medo, contra a raça branca, que se impôs pelo espírito
de autonomia e racionalidade diante dos seus adversários
naturais. Essas linhas e tendências também seguem o
perfil e as características das faixas vibratórias
ou círculos espirituais onde habitam e atuam essas entidades.
Aí, sim, identificamos diferenças de superioridade
ou inferioridade segundo os princípios da hierarquia ou categoria
dos espíritos definida por Allan Kardec. Sem esse conhecimento
é praticamente impossível tocar no assunto das nossas
diferenças e semelhanças.
Quanto aos conflitos e rivalidade, devemos lembrar que nem a mistura
de raças e costumes, nem as iniciativas pacificadoras de
confraternização conseguiram diluir os efeitos desse
choque primitivo, muito por causa da sucessão de atos vingativos
e reações violentas entre esses espíritos mais
antigos e seus descendentes, pelas tramas espirituais que se construíram
entre eles.
Historicamente a grande e longa Era que hoje governa o mundo, depois
da revolução agrícola, ainda é o da
indústria, da ciência experimental e aplicativa, do
território mercadológico, que pertence à etnia
branca e as demais etnias que se adaptaram ao seu modo de vida capitalista.
Etnias que se degeneraram ou marginalizaram-se nesse contexto, incluindo
alguns povos semitas da região da Mesopotâmia e da
Índia, não conseguiram se firmar diante da civilização
tecnológica. O compromisso dos ingleses em extinguir a escravidão
pelo liberalismo não foi suficiente para evitar novos confrontos
e abusos de poder.
Em muitos núcleos, brancos e negros confraternizaram e trocaram
experiências, sobretudo de conhecimentos espirituais; noutros
predominou a troca de farpas e arrogâncias. Poucos sabem que
até mesmo a figura simbólica e diabólica de
Satanás, ora como entidade negra brotada das florestas e
desertos, ora como entidade branca caída dos céus,
foi um milenar jogo de provocações entre essas duas
tendências etnológicas. Ambas tentando, pelo maniqueísmo,
mostrar quem era do Bem ou do Mal, etnicamente puras ou impuras.
Tanto a etnia negra como a etnia branca eram puras nas suas origens,
assim como amarelos e vermelhos. O que desfez essa pureza cultural
foram os embates bélicos e os sucessivos erros de escolha
de caminhos e destinos feitos pelos líderes dessas coletividades,
dominados pelo personalismo ou pela vingança.
Quando o Espiritismo surgiu na Europa no século XIX, como
força intelectual científica, a expor, revelar e explicar
os fenômenos tidos como sobrenaturais, em busca de uma síntese
comum, imediatamente surgiu a reação das forças
opositoras, juntamente com as igrejas, tanto dos ocultistas brancos
das tradições místicas exclusivistas da Europa,
como também dos negros, por meio dos seus descentes nas colônias
da América. Para eles o Espiritismo surge como neutralizador
de dogmas e meias verdades, diminuindo significativamente o poder
social dos magos e sacerdotes.
No Brasil o confronto não foi diferente e partiu do ressentimento
dos núcleos espirituais primitivos com esse espírito
passional e vingativo, alegando discriminação e preconceitos
contra seus filhos. Assim nasceu a umbanda, miscigenada e mesclada;
e assim ainda se afirma o candomblé em sua originalidade
africana; ambas ainda muito envolvidas pelo sincretismo com as práticas
ritualísticas católicas. Isso em nada as desabona,
pois muitos candidatos a espíritas ainda se sentem fascinados
pelas seduções místicas dos cultos dogmáticos
tentando dar ao espiritismo algumas marcas das suas antigas crenças,
inclusive pela via mediúnica.
E ainda é assim, para nós espíritas, espiritismo,
umbanda e candomblé são coisas bem distintas entre
si, embora isso ainda cause intranquilidade e confusão entre
seus usuários e praticantes que não conhecem nem reconhecem
autenticamente suas respectivas doutrinas e culturas. O embate entre
a passionalidade e racionalidade não significa superioridade
ou inferioridade entre elas, mas somente a imposição
das marcas mais profundas de personalidade de cada uma. Nossas escolhas
devem respeitar a existência, a diferença e a convivência
desses princípios.
O povo brasileiro, ainda desinformado e pouco afeito ao estudo e
à disciplina, sofre com essa diversidade quando quer escolher
um caminho espiritual e servir seus semelhantes. Mas também,
na sua ingenuidade e malícia, se aproveita disso para exercer
sua mais espontânea falta de responsabilidade e compromisso,
querendo apenas ser servido, em qualquer espaço sagrado onde
lhe é permitido entrar e obter sua satisfação
mística, bem como o conforto da esperança.
Fazer o quê, senão acolher e tentar educar.
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