Hipolyte-Léon-Denizard Rivail
certamente era alguém muito envolvido com a educação.
Mas será que Allan Kardec Kardec era também um educador?
Para responder essa questão
começamos fazendo uma segunda pergunta: Hipolyte-Léon-Denizard
Rivail educador e Allan Kardec ativista espírita eram a mesma
pessoa?
Continuamos com a firme opinião
de que as pessoas físicas eram as mesmas, porém intelectual
e espiritualmente tais pessoas se tornaram no decorrer dos anos
duas personalidades muito distintas.
Todos nós sabemos que, ao
se envolver nas atividades de pesquisas e divulgação
do Espiritismo, H.L.D. Rivail escolheu o pseudônimo Allan
Kardec exatamente para que o público não confundisse
as duas pessoas: Rivail, anteriormente dedicado aos assuntos educacionais,
dos quais afastou-se por motivos financeiros; e Allan Kardec, o
ativista de uma nova ciência. Na época do seu ingresso
no movimento espírita Rivail não era mais empresário
da educação e trabalhava prestando serviços
de revisor, contabilidade e eventualmente como professor particular.
Antes de escolher o pseudônimo Kardec, Rivail não tinha
a menor noção do que era o espiritismo fenomênico,
muito menos das suas implicações filosóficas.
Por que então ele teria algo a dizer sobre educação
espírita? Durante os 14 anos que permaneceu como líder
do movimento , redator da Revista Espírita e presidente da
Sociedade Espírita de Paris, não houve da parte dele,
nem de sua esposa Amélie, que também havia sido educadora,
nenhuma referência específica ao assunto educação
e ensino espíritas, a não ser algumas citações
indiretas e esporádicas de temas paralelos
e não propriamente educacionais.
Então, como encontrar o Allan
Kardec educador?
Decorridos mais de cem anos da publicação das obras
básicas do Espiritismo, Herculano Pires fez a transposição
da filosofia espírita para uma estrutura teórica que
ele imaginou ser espírita e idealizou como tal, substituindo
e adaptando os pressupostos dos educadores humanistas históricos
pelos conceitos espíritas. Mesmo assim, apesar da brilhante
construção de hipóteses e reflexões,
a idéia não repercutiu como prática social,
exatamente porque sua proposta não possuía uma dimensão
realizadora. Fundar uma escola na cabeça é fácil
e faz parte da utopia pessoal de todos os educadores. Fazemos isso
em todo o início de ano letivo. Depois geralmente nos perdemos
nas veredas e surpresas do cotidiano escolar. Uma experiência
educacional espírita cotidiana seria o grande desafio do
nosso filósofo paulista e seus inúmeros discípulos
pensadores e ausentes das salas de aula. Estes, como o mestre, flutuam
nas altas esferas dos textos, debates, congressos, cursos, apostilas,
projetos, mas não conseguem vencer essa barreira gravitacional
da mente e fincar os pés no chão, abrir sulcos na
terra e colocar as sementes no vazio das carências humanas
que aguardam ansiosamente pelas lições do Espiritismo
no dia-a-dia. Isso é feito nos centros espíritas mais
simples, de maneira informal e eficiente, mas não funciona
no espaço escolar, em aulas formatadas e formalizadas.
Como resolver esse impasse?
Também continuamos com a firme opinião
que estamos pensando de forma incorreta e batendo em porta errada.
Primeiramente é preciso definir o que estamos procurando
e depois decidir onde vamos procurar.
Recentemente um amigo nosso reescreveu
um antigo ensaio sobre os celtas e sua relação com
o Espiritismo. Como educador, entre muitos outros aspectos, percebemos
que tal relação pode ser encontrada no druidismo,
uma escola iniciática que revelava aos alunos as mesmas coisas
que os Espíritos nos revelaram através das obras de
Allan Kardec. A primeira pergunta que fizemos ao ler o ensaio foi
sobre a questão educativa dessa escola dos celtas. Como um
celta comum se tornava druida? Que tipo de transformação
acontecia nessa experiência educativa? Como essas transformações
eram provocadas nos alunos?
Essa experiência educativa
dos celtas pode ser conhecida e explicada? Podemos aprender algo
útil com elas?
Se continuarmos a cometer o mesmo
equívoco histórico ao tentar associar Rivail e Allan
Kardec como personalidades únicas ao assunto educação
e ensino, continuaremos procurando em vão. Se persistirmos
nesses elos de ligação histórica da abordagem
cronológica seqüencial e simplista - Comenius, Pestalozzi,
Rousseau, Rivail, Allan Kardec e Espiritismo - continuaremos sem
rumo e sem currículo. E agora tem uma ramificação
temática também historicamente pouco esclarecida:
a experiência de Eurípedes Barsanulfo em Sacramento,
no Colégio Allan Kardec. Eurípedes foi mais ousado
do que Kardec e construiu um currículo inovador e que, perdeu-se
no tempo após o seu desencarne. Os relatos e estudos sobre
sua experiência atestam a inovação , mas não
oferecem uma síntese clara sobre o que era realmente essa
prática educativa do colégio, como identificamos nitidamente
nas experiências de outros educadores históricos. Ele
era espírita, vivia o Espiritismo 24 horas por dia e certamente
respirava uma educação que ele pretendia ser espírita.
Mas onde está a síntese em si? Levou junto com ele
para o mundo dos espíritos, nas altas esferas onde habita,
segundo relatos de Chico Xavier. Ficaram os exemplos educativos
nos alunos, mas não o “sistema espírita”.
Ainda bem, porque tal "sistema" nunca existiu e se existisse
já estaria seriamente adulterado pelo formalismo. Sacramento
foi, ao nosso ver, a pura vivência do amor e da educação
cristã que ele adquiriu na Sociedade São Vicente de
Paulo, altamente expansiva e diferenciada naquele contexto pela
sua mediunidade maravilhosa, espontânea e natural. Suas aulas
certamente eram ilustradas pela sua visão espírita
de mundo, mas isso qualquer educador espírita faz naturalmente
sem necessariamente sistematizar tal experiência num currículo
formal. Só não fazemos como Eurípedes fez porque
somos mais limitados e tímidos. Como já dissemos,
em "Espíritos
nas Escolas", os alunos descobrem que somos espíritas
pelas nossas ações e não pelos nossos discursos
e propostas didáticas.
E as teses acadêmicas da pedagogia espírita?
Não possuem valor? Não indicam rumos?
Pensamos que elas ainda não
atingiram o nível satisfatório para resolver todas
essas questões. São tentativas válidas como
teoria e reflexão, mas seguem os passos de Herculano e não
compreendem os fenômenos cotidianos da educação.
Não sabemos como essas teses sobre educação
espírita foram analisadas ou validadas academicamente. Mas
isso não tem nenhuma importância porque esse não
é o principal problema, já que a academia (ora, a
academia) tem lá também os seus limites e vícios.
O valor delas não está nas notas obtidas ou na aprovação
institucional. O grande valor estaria no impacto social das mesmas.
A maioria das teses são elaboradas sem que as bancas tenham
o mínimo de condição de questioná-las
integralmente, pois as dissertações são feitas
rigorosamente dentro dos cânones lingüísticos
e metodológicos exigidos. Isso é suficiente para desviar
a atenção de outras problematizações
que elas ocultam. Durante a nossa dissertação de mestrado
falamos da história do Espiritismo e do ofício do
historiador espírita para uma banca de doutores em Comunicação
e Sociologia, porém leigos na doutrina e nas temáticas
específicas da historiografia. Nossa orientadora nos protegeu
com tanta fidelidade e cuidado, superando naquele instante inclusive
o nosso Espírito protetor. Não houve nenhuma contestação
significativa porque o assunto não era a história
em si, mas os problemas sociais e lingüísticos da escrita
historiográfica voltada para a temática espírita.
Muito respeitosos e atentos ao cerne do tema, os avaliadores simplesmente
conduziram os debates e questionamentos dentro daquilo que foi proposto
na dissertação. Em nenhum momento aventou-se a crença
espírita ou a credibilidade dos fenômenos. Aliás,
teve sim, a professora Yolanda Lullier, da Escola de Comunicação
e Artes da USP, talvez percebendo o nosso nervosismo e preocupação,
nos lembrou que já havia tido provas irrecusáveis
da imortalidade do pai desencarnado e que era descendente de colonos
franceses do Say. Tal revelação foi pública
e espontânea e causou surpresa até mesmo em nossa orientadora,
que desconhecia os fatos.
Mas, voltando ao assunto, onde está o erro e onde está
a solução?
O erro da abordagem feita pelos
pedagogos espíritas é que ela já fez a transposição
teórica do Espiritismo para a filosofia da educação,
mas ainda não encontrou os elementos para a implantação
cotidiana dessas reflexões. Isso porque, por um equívoco
histórico, ainda comete o erro filosófico de ignorar
a transformação intelecto-moral de Rivail em quase
quinze anos como militante espírita. Rivail se tornou Kardec
através de um processo moral-educativo. Esse é o fio
da meada. Como isso aconteceu? Como essa experiência pode
ser transposta para uma prática educativa cotidiana? Nesse
período é que as teses devem se concentrar. Edgard
Armond matou essa charada há mais de meio século e
aplicou socialmente a idéia. Fez ao seu modo iniciático,
tal como os druidas. Na FEESP essa idéia foi sendo desviada
das suas bases educativas e caiu num sistema escolar tradicional,
pobre e ineficiente em relação ao modo iniciático
original. Não estamos falando da ideologia e da visão
espírita de mundo que ele tinha. Isso é outra história
e nesse aspecto Eurípedes Barsanulfo não era diferente
dele. Mas ambos eram pessoas práticas e realizadoras. Ambos
insistiam na idéia da transformação moral como
método e meta escolar. Se não entendemos como ocorre
essa mudança moral – que não é somente
uma experiência teórica - consequentemente não
conseguimos demonstrar objetivamente o que pretendemos como prática
escolar espírita. Estamos falando da escola como proposta
e prática educativa. Na mesma FEESP e em alguns outros lugares
surgiram outras experiência educacionais, mas que não
tiveram repercussão social, fora dos muros e paredes da instituição.
Isso no leva a uma última
questão: será que os espíritas realmente estão
interessados em educação ou numa educação
específicamente espírita?