“Adão ainda não
tinha vindo. Porque eu via um homem, dois homens, muitos homens
e no meio deles eu não via Adão e nenhum deles conhecia
Adão. Eram homens primitivos, esses que meu espírito
absorto, contemplava. Era o primeiro dia da Humanidade; porém,
que humanidade, meu Deus!... Era também o primeiro dia do
sentimento, da vontade e da luz; mas de um sentimento que apenas
se diferenciava da sensação, de uma vontade que apenas
desvanecia as sombras do instinto.
Primeiro que tudo o Homem procurou
o que comer; após, procurou uma companheira, juntou-se com
ela e tiveram filhos. Meu espírito não via o Homem
do Paraíso; via muito menos que o homem, coisa pouco mais
que um animal superior. Seus olhos não refletiam a luz da
inteligência; sua fronte desaparecia sob o cabelo áspero
e rijo da cabeça; sua boca, desmesuradamente aberta, prolongava-se
para adiante; suas mão pareciam com os pés e frequentemente
tinham o emprego desses; uma pele pilosa rija cobria suas carnes
duras e secas, que não dissimulavam a fealdade do esqueleto.
Oh! Se tivésseis visto, como eu vi, o Homem do primeiro dia,
com seus braços magros e esquálidos caídos
ao longo do corpo e com suas grandes mãos pendidas até
os joelhos, vosso espírito teria fechado os olhos para não
ver e procuraria o sono para esquecer.
Seu comer era como devorar; bebia
abaixando a cabeça e submergindo os grossos lábios
nas águas; seu andar era pesado e vacilante como se a vontade
não interviesse; seus olhos vagavam sem expressão
pelos, como se a visão não se refletisse em sua alma;
e seu amor e seu ódio, que nasciam, de suas necessidades
satisfeitas ou contrariadas eram passageiros como as impressões
que se estampavam em seu espírito e grosseiros como as necessidades
em que tinham sua origem.
O Homem primitivo falava, porém
não como o Homem: alguns sons guturais, acompanhados de gestos,
os precisos para responder às suas necessidades mais urgentes.
Fugia da sociedade e buscava a solidão; ocultava-se da luz
e procurava indolentemente nas trevas a satisfação
das suas exigências naturais. Era escravo do mais grosseiro
egoísmo; não procurava alimento senão para
si; chamava a companheira em épocas determinadas, quando
eram mais imperiosos os desejos da carne e, satisfeito o apetite,
retraía-se de novo à solidão sem mais cuidar
da prole.
O Homem primitivo nunca ria; nunca seus olhos derramavam lágrimas;
o seu prazer era um grito e sua dor era um gemido. O pensar fatigava-o;
fugia do pensamento como da luz. E nesses homens brutos do primeiro
dia o predomínio orgânico gerou a força muscular;
e a vontade subjugada pela carne gerou o abuso da força;
dos estímulos da carne nasceu o amor; abuso da força
nasceu o ódio, e a luz, agindo sobre o amor e sobre o tempo,
gerou as sociedades primitivas.
A família existe pela carne;
a sociedade existe pela força. Moravam as famílias
à vista de todos, protegiam-se, criavam rebanhos, levantavam
tendas sobre troncos e depois caminhavam sobre a terra. O Homem
mais forte é o senhor da tribo; a tribo mais poderosa é
o lobo das outras. As tribos errantes, como o furacão, marcham
para adiante e, como gafanhotos, assaltam a terra onde pousam seus
enxames.”
João Evangelista – Espanha, 1882
– Roma e o Evangelho, José Amigó y Pellicer
– FEB Editora