De chapeuzinho vermelho aos três
porquinhos, o lobo sempre representou o perigo, a agressividade, a
animalidade. Como uma antítese de seu primo domesticado, o
cão, figura este animal nas florestas sombrias das lendas,
atacando aos incautos que nestas se aventuram.
O lobo vem a se fundir com o ser humano
no mito do lobisomem, analisado com maestria por Luís da Câmara
Cascudo no seu clássico “Geografia dos mitos brasileiros”
(Editora Global, 2002), que trata da lenda de Licaon, rei de Arcádia,
que ao tentar matar seu hóspede, Zeus, recebe como castigo
do senhor do Olimpo a sua transformação em um lobo.
As tipologias do homem lobo chegam até
a Roma, com as suas festas cultuando o Deus lobo, as lupercais, e
daí para a Europa, chegando ao Brasil e a América do
Norte pelas vias da colonização, povoando causos e filmes
de diversas matizes, no homem que diante da lua cheia se transforma
em um híbrido de homem e lobo, carregando uma maldição,
um castigo divino, vinculado no Brasil, em especial, a atuações
morais, como as relações impuras e o sétimo filho
homem de uma mesma família.
André Luis, na obra “Libertação”,
psicografia de Chico Xavier, apresenta a licantropia como processo
de mutação do períspirito com fins de penalização
em um tribunal das trevas, provocado pela ação hipnótica
de um algoz, fazendo daquele desencarnado um ser similar a um lobo,
pelo menos no seu aspecto espiritual exterior.
Revelando, em um sentido punitivo, a verdadeira natureza
daquele espírito, o potencial hipnótico faz com esses
espíritos se apresentem animalizados, em casos comuns também
nas mesas mediúnicas, como tratado por Hermínio Miranda
no seu “Diálogo com as sombras” (Editora FEB).
O lobo figura, assim, como um arquétipo de
nossa animalidade, da violência interior do ser humano, que
se manifesta como fardo, revelando quem realmente somos, a feição
do lobisomem das lendas que nos assustavam nos tempos juvenis, alternando-se
entre a humanidade e o seu lado selvagem.
A sentença latina “Homo Homini Lupus”,
que significa que “o homem é o lobo do próprio
homem”, foi popularizada pelo filósofo inglês Thomas
Hobbes, revelando a descrença do pai do Leviatã no homem
e na sua natureza, descrença esta corroborada por Sigmund Freud,
revelando o conflito da agressividade latente do ser humano e o seu
desejo de paz, como dilema fundamental da existência humana.
No contexto espírita esse conflito é
entendido como o atavismo que arrastamos de nosso passado reencarnatório,
o homem velho, confrontado com o sentimento renovatório do
homem novo, que busca a luz. Alternamos, ainda hoje, na crença
no ser humano e a sua potencialidade, contrastado na decepção
com o homem egoísta e interesseiro de situações
reais.
Em tempos de radicalismo, de desejos de ódio
e vingança públicos, esse lobo suplanta o ser humano,
o racional, o sentimental, em espetáculos de violência
e animalidade, nos quais alimentamos esse animal, de forma controlada,
mas que por vezes nos escapa as mãos.
Assim, nos encontramos, jornadeiros da evolução,
homens sonhadores, castigados pelo fardo de sua natureza lupina, nos
surpreendendo a cada noticiário, com mostras de superação
e fraternidade, e abismados com crimes hediondos, que nos fazem descrer,
pela sua violência, na nossa natureza como espíritos
eternos, criados por Deus.
E nessa luta caminhamos, pelo fio da navalha, combatendo
a cada dia, a cada ação, o nosso lobo interior. Esse
lado primitivo que nos cobra um preço se não o mantemos
domado, utilizando a mesma expressão de Kardec, quando este
se refere as más inclinações.
Devemos, assim, temer os lobos da floresta negra de
nosso ser? Jesus nos disse que nos enviava como ovelhas em meio a
lobos rapaces, mas que somente lobos caem em armadilhas de lobos.
A nossa fraqueza em dominar nossas tendências nos torna presa
fácil das armadilhas expiatórias, dolorosas, mas que
nos conduzem a melhoria, pela dor e não pelo amor. Temer, apenas
o mal que temos em nós mesmos, como assevera o espírito
de André Luiz.
As lendas romanas falavam que o homem que se transformava
em lobo, se passados dez anos sem cometer atos violentos, retornava
a sua natureza humana, livre da maldição, ilustrando
que é possível, na luta diária e persistente,
vencer a animalidade inata com o desejo de angelitude. Dia a dia,
pedra a pedra, construímos o homem novo!
Mas, para isso, precisamos do auxílio, da palavra
amiga, da instituição religiosa e por vezes, do profissional
especializado. Sem apoio, torna-se complexo romper o espírito
violento como válvula de escape aos nossos conflitos, como
forma rápida e simples de resolução de problemas,
como combustível de nossa ação mais diretiva,
necessária nas medidas exatas.
Não se trata de apologia a implosão
interior, do silêncio que se converte na neurose e na somatização
por meio da doença, mas sim da valorização da
resolução de problemas pelo diálogo, com firmeza,
substituindo as explosões de fúria que emergem de nosso
lobo interior. A repressão, não. A educação,
sim!
Não neguemos o lobo…Saibamos lidar com
ele, como símbolo de força e de determinação,
com carinho e a paciência que se domestica uma fera, mas com
a consciência de sua natureza, como sabem bem os domadores de
animais selvagens.
Não existe no mundo real o lobisomem encarnado.
Existe sim o homem, lobo do próprio homem, artífice
de seus males, construtor de seus avanços, e as armadilhas
jogam sobre ele mecanismos que o auxiliam a domesticar esse lobo,
que carrega pesaroso em seu coração, atormentando-o
ao romper a capa de homem com um uivo sibilante.
O Livro dos Espíritos diz que distamos dos
animais o equivalente ao que distamos de Deus (Pergunta 597). Seres
híbridos, saídos das fraldas da consciência, lutamos
para construir em nós a paz que desejamos para o mundo, nesse
chamado planeta de provas e expiações, que pleiteia
a regeneração.
A doutrina espírita, com a sua função
libertadora de consciências, investida das palavras do meigo
nazareno, nos dá pistas de como vencer, no esforço cotidiano
do convívio com o próximo, a nossa animalidade latente,
para que o exterior reflita o que somos, ou pelo menos o que desejamos
ser, espíritos imortais, irmanados pelo amor.
Marcus Vinicius de Azevedo Braga
Residindo atualmente na cidade do Rio de Janeiro,
espírita desde 1990, atua no movimento espírita
na evangelização infantil, sendo também expositor.
É colaborador assíduo do jornal Correio Espírita
(RJ) e da revista eletrônica O Consolador (Paraná).
É autor do livro Alegria de Servir (2001), publicado pela
Federação Espírita Brasileira (FEB) e do
Livro "Você sabe quem viu Jesus nascer" (2013),
editado pela Editora Virtual O Consolador.