O martelo das feiticeiras (Malleus
Maleficarum Maleficat & earum haeresim, ut framea potentissima
conterens), obra alemã de 1487, com autoria atribuída
a Heinrich Kraemer
e a James Sprenger,
é um verdadeiro manual de combate a heresias, um guia para
o processo de inquisição que manchou o cristianismo
na Europa e nas Américas na segunda metade do segundo milênio,
na tristeza das fogueiras onde se queimavam as intolerâncias
e das salas de tortura que envergonharam a humanidade.
Parece distante no tempo esse cenário,
mas eventos recentes trazem sua marca, como o ocorrido em fevereiro
de 2017, na Nicarágua, no qual a Sra. Vilma Trujillo, de
25 anos, foi amarrada e queimada viva numa fogueira em uma tentativa
de exorcismo promovida por um grupo cristão, e ainda, o linchamento
em maio de 2014 da dona de casa Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos,
em Guarujá-SP, a partir de um boato de redes sociais de que
ela sequestrava crianças para utilizá-las em rituais
de magia negra.
Ser cristão no mundo atual é ser perseguido em alguns
locais, mas também é perseguir com atos de violência
em tantos outros, com um espírito que afronta as ideias centrais
de Jesus. O martelo ainda ecoa…
Essa intolerância etnocêntrica, pautada em um medo que
se alimenta da ignorância, vitima todas as crenças
não hegemônicas, em ocorrências que vão
desde injúrias até a depredação de templos,
expondo nosso lado mais hostil em relação aos outros
e suas características [1].
Mas, além dessa discussão, da intolerância oriunda
de outras religiões, o presente artigo traz à baila
uma nova abordagem, da questão da intolerância endógena,
do espiritismo com tudo que for mediúnico e que difira dele.
Questões oriundas de relações mal resolvidas
com a mediunidade.
Sim, o martelo ecoa também em nossas mentes, mas com um timbre
diferente. O nosso país, surgido para o mundo ocidental poucos
anos após a primeira edição de o “Martelo”,
amargou na sua gênese não somente a sombra da inquisição,
como teve as crenças indígenas e africanas proscritas,
gerando a necessidade de um sincretismo que possibilitasse o exercício
livre da prática religiosa desses grupos em seus aprisionamentos.
Essa inquisição que rotulou de bruxaria as religiões
com traços mediúnicos oriundas dos escravos e dos
nossos habitantes originais, se fez presente mesmo após a
chamada abolição da escravatura e a Proclamação
da República [2],
dado que o Código Penal de 1890, que até 1942 ainda
estava vigente, trazia no seu Art. 157 a previsão de crime
“por se praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios,
usar de talismans (SIC) e cartomancias, para despertar sentimentos
de ódio ou amor, inculcar cura de molestais (SIC) curáveis
ou incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade
pública.”
Esse marcante temor da questão mediúnica, que trazemos
insculpido em nossas personalidades, por esse longo processo histórico
sucintamente aqui descrito, associando o não hegemônico
ao negativo, contaminou a prática mediúnica no âmbito
do próprio movimento espírita, revestindo essa de
uma formalidade relevante, convertida em uma prática encapsulada,
assustada e burocratizada, e por vezes, até negada como exercício
de nossa espiritualidade.
Assim, ultrapassando os limites do respeito e da prudência,
essa formalidade torna a mediunidade na casa espírita um
assunto para poucos, reservado, com um ar de sigilo, de mistério.
Por vezes, visto como desnecessária, em uma postura curiosa
em relação ao pedagogo francês que estudou esse
fenômeno em salões de diversão.
A defesa do presente artigo é de que essa postura não
é apenas uma questão de respeito pelos espíritos
desencarnados, tratados por vezes como divindades [3],
ou mesmo de apuro quanto aos escolhos da mediunidade, mas sim uma
herança desse passado de proscrição da questão
mediúnica, como motivo de vergonha e de medo.
Da mesma forma, muitas vezes no espiritismo torcemos o nariz para
outras manifestações ditas espiritualistas, que têm
práticas similares ao que fazemos no espiritismo, com a agregação
de outras culturas, vistas muitas vezes pelos espíritas como
inferiores, mistificadas, animismos, ainda que os espíritos
insistam nas suas falas que não importa o local, pois onde
houver trabalho no bem, lá eles estarão.
É mais um triste exemplo da lógica do Educador Paulo
Freire, quando diz que se a educação não é
libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor, o que
fazemos repetindo o som do “Martelo” em nossas ações,
quando tentamos moldar as relações mediúnicas
aos nossos formatos, cheios desse medo antepassado, e de preconceitos
de toda ordem.
Todo esse cenário se resume, por fim, em desprezo pela importantíssima
dimensão espiritual na prática espírita, um
fato que se reflete na carência literária, de estudos,
e de palestras que adentrem mais amiúde nessa questão,
gerando fatos curiosos, da pessoa que frequenta a casa espírita
e quando tem questões de foro mediúnico, termina por
buscar, meio que clandestinamente, essas casas espiritualistas.
Esse medo, esse aprisionamento, é diverso do espírito
da doutrina de conhecer e pesquisar, de conviver e respeitar, buscando
avançar sobre a ideia da “letra sagrada” para
o campo do crescimento do conhecimento, nas trincheiras das discussões
sobre energias, Chakras, materializações, apometria,
transcomunicação instrumental e regressão de
memória, o que só enriquece a chamada mediunidade
com Jesus, que é essa na prática do bem, nas chamadas
reuniões de desobssessão. Não existe esse muro.
Sob a batuta de taxar coisas de antidoutrinárias, fechamos
portas ao conhecimento, aos avanços, à discussão,
encastelados em nossas posições, como se a prática
espírita fosse uma coisa hermética e fossilizada no
tempo. Kardec se posicionaria assim diante dessas questões
nos dias de hoje?
Não se está advogando aqui a irresponsabilidade e
a frivolidade com o tema, fiel ao espírito de Kardec no O
livro dos Médiuns, e sim de enxergar que essa trajetória
de perseguição de nosso traço menos hegemônico
nos marcou em uma visão encapsulada da prática mediúnica,
varrida por vezes para baixo do tapete de nosso cotidiano espírita
e que isso se reflete em medos, perseguições e negações.
Perceber isso – que o martelo ainda ecoa – e que a chama
ainda arde, é um caminho para que rompamos esses modelos
de caçar demônios travestidos de obsessores, e de renegar
práticas e conhecimentos que fujam do estreito aceitável,
elitizando e empobrecendo a prática mediúnica, ainda
que ela insista em surgir na natureza de diversas formas, que contrariam
dia a dia os nossos moldes.