Nos idos de 1990, no estudo
da noite de sábado do Mês do Jovem Espírita
em Valença-MEJEVAL, encontro de jovens realizado naquela
cidade do Rio de Janeiro, presenciei interessantíssima exposição
de dois jovens colegas, que falavam da importação
de práticas católicas para a Doutrina Espírita,
comparando, de forma criativa, a relação das pessoas
com a água fluidificada e a água benta; bem como o
passe e a comunhão, entre outros paralelos ritualísticos.
Essa discussão me instigou nesses últimos 25 anos,
e percebi que outras pessoas também se sentem perturbados
por essas questões, de falta de construção
de uma identidade da prática espírita, assolado por
vezes na importação de modelos dos cultos afro-brasileiros,
do catolicismo e mais recentemente, de igrejas evangélicas,
em uma avalanche de situações que apesar de boas,
são questionáveis em relação aos pressupostos
que abraçamos no seio do espiritismo. Movimento é
feito de práticas, de ações em conjunto e para
além de rituais, temos atividades características,
que necessitam de uma identidade coerente.
A questão
é polêmica, mas nem por isso menos importante…Veio
à tona novamente, ao tomar conhecimento de uma juventude
espírita que saiu as ruas distribuindo exemplares de “O
Evangelho segundo o espiritismo” para os transeuntes, no sinal,
nas praças, nas ruas, em uma prática bem similar à
que observamos em nossos irmãos evangélicos, que alistam
seus jovens em caravanas pelas ruas, distribuindo jornaizinhos,
na busca de angariar adeptos a sua fé, no que poderia se
aproximar de um proselitismo, ou seja, um intento ativista de converter
uma ou várias pessoas, ou determinados grupos, a uma determinada
causa.
Importarmos assim um modelo, ao meu ver, ausente de uma reflexão
do que essa prática se traduz para o jovem e para comunidade.
É uma questão preocupante… Ouviremos, certamente
:”- Ah, que mal existe em distribuir pela rua o Evangelho?
É uma coisa boa!” Verdade, sem dúvida é
uma prática do bem, mas no mundo das práticas, fazemos
escolhas ao direcionar o nosso potencial e passamos mensagens para
os que fazem e para os que são objetos de nossas ações.
O próprio Kardec, no Evangelho Segundo o Espiritismo, promulga
a supremacia do “Fora da caridade não há salvação”,
explicando que o crescimento espiritual não se dá
pelo encontro com uma verdade e sim com o amor. Qual o propósito
de distribuirmos a nossa obra básica vinculada aos ensinos
de Jesus e ao aspecto religioso do espiritismo pelas ruas? Desejamos
divulgar o espiritismo, como doutrina, para buscar a conversão
daquelas pessoas, ou entregamos apenas uma obra que sabemos ser
boa em sua mensagem? O que desejamos e como isso é percebido?
Reflexões nos levam a essas questões…
Kardec em “O que é o espiritismo” nos diz: “(…)
Não pretendo forçar convicção alguma.
Quando encontro pessoas que sinceramente desejam instruir-se e dão
me a honra de pedir-me esclarecimentos, folgo e cumpro um dever
respondendo-lhes nos limites dos meus conhecimentos; quanto aos
antagonistas, porém, que, como vós, têm convicções
arraigadas, não tento um passo para delas arredá-los,
atento a que é grande o número dos que se mostram
bem dispostos, para que possamos perder o nosso tempo com aqueles
que o não estão”, indicando que o espiritismo
em relação a divulgação pousa como uma
luz serena, para aqueles que o buscam e não como um farol
a invadir a casa das consciências, pelas lutas de argumentos.
Aí, esbarramos na questão do tênue limite entre
a divulgação e o proselitismo, no qual sempre invocam
a frase do livro “Estude e Viva”, ditado pelos Espíritos:
Emmanuel e André Luiz; psicografado por Chico Xavier e Waldo
Vieira: “(…). Para isso, estudemos Allan Kardec,
ao clarão da mensagem de Jesus Cristo, e, seja no exemplo
ou na atitude, na ação ou na palavra, recordemos que
o Espiritismo nos solicita uma espécie permanente de caridade
– a caridade da sua própria divulgação“.
Sempre esquecemos de ressaltar o trecho que fala “seja
no exemplo ou na atitude, na ação ou na palavra”,
dando-nos a dica de como deve ser essa divulgação,
a feição de vitrines vivas. Sim, é preciso
divulgar o espiritismo, e isso tem sido feito principalmente pelos
nossos livros e por nossas casas espíritas, sempre localizadas
em local visível, contando com o exemplo e a palavra amiga
de cada frequentador para que as pessoas a conheçam e dela
se aproximem. A questão aqui não é divulgar
ou não o espiritismo e sim a agregação de práticas
que podem vir a se chocar com os nossos pressupostos, o nosso ethos
como movimento.
Nesses mais de 150 anos de movimento espírita,
em que pesem os nossos baixos índices formais no Censo, as
nossas crenças em seus pilares básicos são
difundidas em escala nacional e mundial (vide os filmes de sucesso),
nossos livros são vendidos em larga escala e não precisamos,
salvo melhor juízo, desses artifícios, pois o pressuposto
é que o nosso foco é o homem de bem e não aumentar
o nosso número de adeptos, o que não se vê em
religiões cuja matriz é a salvação pela
fé.
Somos uma doutrina que surgiu dentro
de um tríplice aspecto (Ciência e filosofia com consequências
religiosas, na proposta kardequiana), questionando muitas dessas
práticas religiosas vigentes, no âmbito da Igreja católica,
e construímos a nossa identidade nas casas espíritas
a luz das ideias do codificador e dos que o precederam, com o foco
na prática do bem, na vivência mediúnica e no
estudo reflexivo e incessante da doutrina que abraçamos,
na promoção do homem de bem, na nossa renovação
como espírito, avançando nessa encarnação,
vivendo no mundo sem ser do mundo.
Infelizmente, a distribuição
de obras não é a única prática que importamos
recentemente…Valorização do luxo e da suntuosidade
nas instalações, eventos grandiosos, obras literárias
de cunho motivacional, uma busca de se apresentar como a verdade,
o endeusamento de palestrantes e de médiuns, hipervalorização
de práticas de cura, valorização dos textos
dos livros como obras sagradas, preferência quase exclusiva
de autores desencarnados, um desprezo pelo debate e pelo dissenso,
isso somado a um modelo de arte industrializado, excludente de outras
manifestações culturais laicas.
Esses modelos, oriundos de outras
denominações, tem seu valor, e como dizia Paulo, examinai
tudo e retende o que for bom. Mas, é preciso a reflexão,
a luz de nossos pressupostos espíritas, no legado kardequiano,
para analisar de que forma essas práticas contribuem com
o nosso progresso espiritual. Não é uma questão
de polemizar, mas de analisar e raciocinar, indigesta herança
de uma fé que se propõe raciocinada, baseada na convicção
construída.
Criticamos com veemência práticas
oriundas dos cultos afro-brasileiros, mas absorvemos, tranquilos,
práticas do catolicismo e das igrejas pentecostais, sem pensar
nestas a luz da visão do espiritismo da sua própria
vivência. O ecumenismo, como movimento de integração
e respeito entre as crenças, é admirável, mas
precisamos saber por que escolhemos o caminho do espiritismo e seus
valores.
Longe de criticar a iniciativa dos
jovens na distribuição dos evangelhos, defendo apenas
que tenhamos o debate na importação dessas práticas,
com analise e reflexão, a luz dos princípios da doutrina
e da sua proposta revolucionária de prática religiosa,
que rompe com paradigmas. Lembremos que quem não sabe para
onde vai, qualquer caminho serve…