Certa feita, em uma reunião de início
de ano de um trabalho assistencial que contava com quase trinta anos,
determinado dirigente, que labuta desde o início naquela seara,
comentou em tom avaliativo que o trabalho de evangelização
infantil rendera frutos naquele longo período, pois entre outros
sinais, verificava-se que os meninos que frequentavam aquela casa espírita,
incrustada em uma comunidade carente, repleto de tensões e pressões,
não tinham bandeando para o caminho da criminalidade.
Difícil avaliarmos os frutos
dos trabalhos espíritas nas plagas assistenciais, com pessoas
que se abeiram ali muitas vezes à busca apenas da cesta básica
que será pega em outra denominação no dia seguinte...
Difícil, pois temos carência de material didático
voltado a pessoas de baixa escolaridade e de produção
literária que nos ampare a lidar com famílias em condições
de vulnerabilidade, às vezes refletidas em desagregações
familiares com o alcoolismo e outros problemas comuns a comunidades
carentes, em especial na cidade do Rio de Janeiro, e suas mazelas já
conhecidas.
Ainda que muito frequente na prática,
os trabalhos assistenciais não gozam de uma discussão
robusta e de produção que os permitam avançar sobre
os paradigmas vigentes, com raras e valorosas colaborações
que surgem por aí... Essa falta de discussão, por vezes,
nos leva ao desânimo e à valorização do “bem
quantitativo”, refletido na soma de benefícios distribuídos,
de forma descontextualizada, social e espiritualmente.
A evangelização infantil,
comum em trabalhos de natureza assistencial, necessita de uma discussão
profunda sobre currículo, pressupostos, abordagens e visões
pedagógicas que percebam ali, em sala de aula, Espíritos,
em verdade imersos em um ambiente de carência material, mas Espíritos
sequiosos de conhecimento que os console, liberte e ampare.
Nesse contexto, temos, sim, objetivos
programáticos de melhoria a um longuíssimo prazo daquele
grupo humano, ainda que nos vejamos, ocasionalmente, frustrados pelas
forças presentes na capacidade de perpetuação de
hábitos tristes, como a gravidez precoce, constantes a cada geração,
em um ciclo de difícil rompimento. Mas a feliz fala desse amigo
dirigente nos aponta para interessantes indicadores de nossos trabalhos
espíritas no campo da infância, na percepção
da importância de plantarmos as sementes do homem de bem, em qualquer
espaço, seja ele carente ou não no campo material. E o
homem de bem se fará percebido no futuro!
Jesus na parábola do semeador
fala que um homem saiu a semear, a espalhar sementes por diversos terrenos,
que, diante das diversidades, buscavam crescer. Todas falharam, mas
a que “caiu em boa terra, deu boa colheita, a cem, sessenta
e trinta por um”, indicando-nos uma profunda reflexão
que pode nos servir ao direcionamento das finalidades de nossos trabalhos
assistenciais. Uma reflexão do nosso papel de semeadores e do
crescimento no ato de semear.
Amparamos aquelas famílias materialmente pela bolsa, pelo material
escolar, pelas roupas... Buscamos instrumentalizá-las a caminhar
sozinhas pelas oficinas, que possam com dignidade permitir a elas ganhar
algum dinheirinho... Apoiamos as suas iniciativas no campo escolar,
pretendendo que a nova geração transcenda a miséria
material da anterior. As abordagens assistenciais clássicas aqui
estampadas cuidam do emergencial, da impossibilidade de se falar de
Jesus para quem tem fome, mas necessitam de um complemento, de um pão
mais sublime, que emancipe espiritualmente aquelas pessoas, na reflexão
de sua condição de Espíritos encarnados, na chamada
resignação produtiva, que converte dor em amor.
Insta desenvolver, com igual força,
as nossas atividades doutrinárias nos trabalhos assistenciais,
a evangelização, a palestra, o estudo, que para além
de um caráter proselitista e catequizador, visem, por meio dessa
interação, diria “filosófica", trabalhar
valores morais, pela ótica da imortalidade da alma e da reencarnação,
levando aos chamados, erroneamente a meu ver de assistidos, uma reflexão
que os permitam adotar disposições renovadas, diante das
provas da carência material e dos desafios morais da vida encarnada.
A atividade de discussão, de
interação intelectual-moral na área assistencial,
tem um caráter emancipador, que liberta aqueles Espíritos
de armadilhas morais, indicando o caminho do estudo, do trabalho e do
esforço na superação de suas dificuldades e apontando
que a dor é uma mola para despertar o nosso amor. E nessa construção,
nós, ditos trabalhadores, amadurecemos, pois a falação
bonita e vazia não encontra eco diante dessas dores, nos fazendo
amadurecer na vivência do Cristo.
A parte boa do trabalho atinge a todos
os atores, como oportunidade bendita de amadurecimento e reflexão,
representando muito mais do que ir lá ensinar o evangelho para
as pessoas pobres. O pão material que dá o peixe, a oficina
que dá a vara e ensina a pescar são polos fundamentais
da equação da assistência... Entretanto, a discussão
doutrinária, o fortalecimento filosófico, lastreado pelos
pilares da doutrina espírita, traz a reflexão que faz
a pessoa entender o peixe, a vara, o rio e os seus braços, convertendo
todos em pescadores de almas, como disse Jesus. Não queremos
fazer daquelas pessoas espíritas no sentido de que elas leiam
avidamente as obras básicas e tenham um conhecimento formal.
Necessitamos de uma abordagem pedagógica que mostre esse conhecimento
espírita na prática, no mundo concreto, sentido, como
forma de espalhar as sementes em cada coração, tornando-os
sim, eles e nós, pessoas melhores, fim maior.
Essa abordagem robustece a bolsa e a
oficina, contribuindo para um caráter consolador, diante da dor,
é verdade, mas também de superação, fazendo
que a pessoa venha à busca do alimento e saia com a sua alma
revigorada, com novos horizontes. Para isso, precisamos nos adaptar...
Nossas palestras, nossos estudos, nossos currículos, para que
vejam nesse contexto a melhor forma de passar o Espiritismo e todo seu
valor transformador de atitudes, em sua expressão mais simples,
nesses trabalhos, em especial na infância.
A reencarnação liberta,
pois mostra a nossa situação como transitória e
que pode mudar pelo esforço cotidiano, na busca de construir
o homem de bem naquele espírito imortal que hoje enverga uma
roupagem de carência. O livre-arbítrio, a prática
de bem são valores espíritas que possibilitam construir
uma vida melhor, em um sentido amplo. Tesouros morais que podem e devem
colaborar na superação de situações de carência
material, fortalecendo aqueles Espíritos na sua prova, buscando
a senda do bem.
Fica a reflexão para os que trabalham
na seara espírita na evangelização de crianças
que padecem de miséria material e que por esta são influenciadas,
sim, no aspecto moral, podendo essa dor servir de trampolim que as impulsione
ou de buraco que as afunde. Para além do peixe que mata a fome,
demandamos ouvir o convite de Jesus no chamado milagre dos peixes, para
falar de pães e peixes que se multiplicam e aplacam a fome do
espírito.
Fonte:
http://www.oconsolador.com.br/ano8/390/marcus_braga.html
texto originalmente publicado em 23 de Novembro de 2014
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