Marcus Vinícius de Azevedo Braga

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Marcus Vinícius de Azevedo Braga
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Entre a pena e a vingança


Manhã de segunda, no centro do Rio de Janeiro. Pedro vê, desolado, os pré-adolescentes seminus dormindo na marquise... “Cena comum em uma grande metrópole”, diz-lhe a sua vontade de prosseguir, mas ele se vê atormentado por um questionamento: “Cadê essa família? Cadê o Estado?”. E a sua manhã se vê estragada, por um misto de revolta e indignação que a indiferença não conseguiu apagar. Esse sentimento se converte no que chamamos de pena, ao ver também pelos cantos sujos crianças, em um prenúncio de uma catástrofe anunciada.

Ao chegar ao seu escritório, climatizado, Pedro acompanha o noticiário, que relata a ação de um grupo de cidadãos não identificados que, em resposta à ocorrência de delitos nas imediações, como supõe a reportagem, apreendem e agridem um dos jovens que reside na rua e, como exemplo aos demais, encerram a sua prática pseudoeducativa com o jovem infrator amarrado no poste, sem as suas vestes.

Ao ver isso, Pedro, que já fora vítima inúmeras vezes dos punguistas no centro do Rio, engrossa o coro dos companheiros de trabalho, exaltando a ação efetiva dos neojusticeiros do pedaço no combate ao crime onde faltou o Estado, a família e, jactando-se de se sentir vingado pela ação daqueles corajosos cidadãos de bem, termina a sua eloquente fala com a máxima de que “bandido bom é bandido morto”.

A narrativa fictícia é recheada de fragmentos de realidade, enquadrando-se em situações corriqueiras da vida na cidade grande. Acabado o discurso, voltamos aos nossos afazeres e não nos detemos mais profundamente nas questões relacionadas ao crime e demais situações sociais, simplificando e reduzindo, oscilando entre extremos da pena de nosso irmão em humanidade e o desejo de vingança do mal cometido.

Entre a pena e a vingança, nos arvoramos a empunhar a pena de Talião...

A pobreza aparente nos constrange, o que motiva alguns governantes a iniciativas ditas higienistas, como a tentativa de esconder a população de rua diante da visita de dignitários estrangeiros. Causa-nos uma sensação ruim ver que falta ao nosso irmão o mínimo, quando por vezes desperdiçamos no supérfluo.

Aí, assalta o nosso coração o sentimento de pena, oriunda da possibilidade de passarmos também por aquilo. Um sentimento individual e distante que nos exorciza de nossas responsabilidades, passando ao largo das possíveis soluções, nos entristecendo como um filme a que assistimos na tarde chuvosa.

Os filmes e séries terminam em explosões e com mortes teatrais do vilão, algoz de diversas vítimas e que tem, como castigo, uma morte violenta e sofredora para materializar a vingança como caminho de um descerramento justo daquela tragédia. Afinal, ninguém gosta de ver o vilão fugir impune ao final da película!

Sentimo-nos bem com a morte do malfeitor, com seu sofrimento, com uma alegria límbica de liberação da nossa energia destrutiva, na chamada vingança, um sentimento individualista, que pretende devolver ao causador o mal proporcionado, na busca de se quitar a dívida.

Sentimentos individualistas à pena e à vingança, que não contribuem para romper o ciclo destrutivo do ódio. Jesus nos ensinou a romper esse ciclo, no “amor que cobre a multidão de pecados”, um amor que transcenda as formas evasivas de lidar com esses problemas, como a esmola, ou as formas extremas, como a Lei de Talião. Um amor que resgate a nossa fé no homem e na sua possibilidade de atuar sobre as questões sociais.

A lei é de amor e de perdão é um conceito crístico. As reuniões mediúnicas nos ensinam, na fala de nossos irmãos sofredores, que o ciclo do ódio vai se transmutando a cada encarnação e que ele precisa ser rompido. E, para rompê-lo, tem-se no plano individual o perdão, como desafio posto por Jesus, na arte de esquecer e reparar. O perdão é um dos desafios maiores de nossa existência, pois demanda de nós enxergar, naquele que praticou o mal, uma possibilidade de bem.

Precisamos repensar a caridade, substituindo o sentimento de pena por iniciativas mais construtivas, emancipatórias, superando o assistencialismo que aplaca as consciências, em uma linha realmente de promoção social. A miséria aparente, na ponta do iceberg das mazelas humanas, indica a ausência de fraternidade, dentro de um complexo mecanismo social, que insistimos em simplificar.

Certamente, não fazemos aqui uma apologia à impunidade ou à falta de caridade, mas que saibamos fazer isso da melhor forma, avançando para além do paradigma da pena e da vingança, enxergando a questão social, aparente ou não, de onde derivam as problemáticas apresentadas. Faz-se necessário elevar o debate do plano individual do sentimento de pena e do desejo de vingança para uma discussão do coletivo, da abordagem social e de como a nossa prática, como religiosos, pode se abeirar dessas discussões.

A postura maternal, de amor incondicional, na qual julgamos todos coitadinhos, perdoados por não ser com a gente a agressão, é tão danosa quanto a fúria paternal que vocifera por sangue na vingança irracional. Evasivas que aplacam sentimentos pessoais e embalam nossas tertúlias nas redes sociais, como debates similares aos futebolísticos, com bravatas e rostos ruborizados.

A discussão das questões sociais é a melhor forma de agir sobre elas, como cidadãos e como religiosos; é fundamental e habita as raízes desses eventos. Por onde anda a nossa empolgação na seara espírita com os trabalhos ligados ao amor ao próximo? O Espiritismo, que tem como uma de suas bandeiras “fora da caridade não há salvação”, que segue os preceitos morais do Nazareno condenado à morte no madeiro, não pode se furtar a esse debate!

Não adianta defendermos a vida de forma dogmática, no discurso contra a pena de morte, se não mostrarmos que a pena de morte é apenas um instrumento de soluções superficiais e passageiras. A defesa da vida necessita avançar para a discussão das causas e dos contextos e que ações podemos realizar para evitar o crime. Mais do que pregar, precisamos convencer e evitar!

Após a tristeza da pena e a raiva da vingança, Pedro volta para casa na sua condução, para a sua vida cotidiana, esquecendo o ocorrido naquele dia, que se repetirá, como se repete desde o início da História. E a vingança e a pena se mostraram ineficazes para resolver essas questões no plano coletivo, fortalecendo apenas o ciclo do ódio.

Mas isso é lá com os outros, não é, Pedro? Conosco não ocorre, nem como algozes, nem como vítimas...



Fonte: http://www.oconsolador.com.br/ano8/361/marcus_braga.html

 

 


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