Manhã de segunda, no centro
do Rio de Janeiro. Pedro vê, desolado, os pré-adolescentes
seminus dormindo na marquise... “Cena comum em uma grande
metrópole”, diz-lhe a sua vontade de prosseguir,
mas ele se vê atormentado por um questionamento: “Cadê
essa família? Cadê o Estado?”. E a sua manhã
se vê estragada, por um misto de revolta e indignação
que a indiferença não conseguiu apagar. Esse sentimento
se converte no que chamamos de pena, ao ver também pelos
cantos sujos crianças, em um prenúncio de uma catástrofe
anunciada.
Ao chegar ao seu escritório, climatizado,
Pedro acompanha o noticiário, que relata a ação
de um grupo de cidadãos não identificados que, em
resposta à ocorrência de delitos nas imediações,
como supõe a reportagem, apreendem e agridem um dos jovens
que reside na rua e, como exemplo aos demais, encerram a sua prática
pseudoeducativa com o jovem infrator amarrado no poste, sem as suas
vestes.
Ao ver isso, Pedro, que já
fora vítima inúmeras vezes dos punguistas no centro
do Rio, engrossa o coro dos companheiros de trabalho, exaltando
a ação efetiva dos neojusticeiros do pedaço
no combate ao crime onde faltou o Estado, a família e, jactando-se
de se sentir vingado pela ação daqueles corajosos
cidadãos de bem, termina a sua eloquente fala com a máxima
de que “bandido bom é bandido morto”.
A narrativa fictícia é
recheada de fragmentos de realidade, enquadrando-se em situações
corriqueiras da vida na cidade grande. Acabado o discurso, voltamos
aos nossos afazeres e não nos detemos mais profundamente
nas questões relacionadas ao crime e demais situações
sociais, simplificando e reduzindo, oscilando entre extremos da
pena de nosso irmão em humanidade e o desejo de vingança
do mal cometido.
Entre a pena e a vingança,
nos arvoramos a empunhar a pena de Talião...
A pobreza aparente nos constrange,
o que motiva alguns governantes a iniciativas ditas higienistas,
como a tentativa de esconder a população de rua diante
da visita de dignitários estrangeiros. Causa-nos uma sensação
ruim ver que falta ao nosso irmão o mínimo, quando
por vezes desperdiçamos no supérfluo.
Aí, assalta o nosso coração
o sentimento de pena, oriunda da possibilidade de passarmos também
por aquilo. Um sentimento individual e distante que nos exorciza
de nossas responsabilidades, passando ao largo das possíveis
soluções, nos entristecendo como um filme a que assistimos
na tarde chuvosa.
Os filmes e séries terminam
em explosões e com mortes teatrais do vilão, algoz
de diversas vítimas e que tem, como castigo, uma morte violenta
e sofredora para materializar a vingança como caminho de
um descerramento justo daquela tragédia. Afinal, ninguém
gosta de ver o vilão fugir impune ao final da película!
Sentimo-nos bem com a morte do malfeitor,
com seu sofrimento, com uma alegria límbica de liberação
da nossa energia destrutiva, na chamada vingança, um sentimento
individualista, que pretende devolver ao causador o mal proporcionado,
na busca de se quitar a dívida.
Sentimentos individualistas à
pena e à vingança, que não contribuem para
romper o ciclo destrutivo do ódio. Jesus nos ensinou a romper
esse ciclo, no “amor que cobre a multidão de pecados”,
um amor que transcenda as formas evasivas de lidar com esses problemas,
como a esmola, ou as formas extremas, como a Lei de Talião.
Um amor que resgate a nossa fé no homem e na sua possibilidade
de atuar sobre as questões sociais.
A lei é de amor e de perdão é
um conceito crístico. As reuniões mediúnicas
nos ensinam, na fala de nossos irmãos sofredores, que o ciclo
do ódio vai se transmutando a cada encarnação
e que ele precisa ser rompido. E, para rompê-lo, tem-se no
plano individual o perdão, como desafio posto por Jesus,
na arte de esquecer e reparar. O perdão é um dos desafios
maiores de nossa existência, pois demanda de nós enxergar,
naquele que praticou o mal, uma possibilidade de bem.
Precisamos repensar a caridade,
substituindo o sentimento de pena por iniciativas mais construtivas,
emancipatórias, superando o assistencialismo que aplaca as
consciências, em uma linha realmente de promoção
social. A miséria aparente, na ponta do iceberg das mazelas
humanas, indica a ausência de fraternidade, dentro de um complexo
mecanismo social, que insistimos em simplificar.
Certamente, não fazemos aqui
uma apologia à impunidade ou à falta de caridade,
mas que saibamos fazer isso da melhor forma, avançando para
além do paradigma da pena e da vingança, enxergando
a questão social, aparente ou não, de onde derivam
as problemáticas apresentadas. Faz-se necessário elevar
o debate do plano individual do sentimento de pena e do desejo de
vingança para uma discussão do coletivo, da abordagem
social e de como a nossa prática, como religiosos, pode se
abeirar dessas discussões.
A postura maternal, de amor incondicional,
na qual julgamos todos coitadinhos, perdoados por não ser
com a gente a agressão, é tão danosa quanto
a fúria paternal que vocifera por sangue na vingança
irracional. Evasivas que aplacam sentimentos pessoais e embalam
nossas tertúlias nas redes sociais, como debates similares
aos futebolísticos, com bravatas e rostos ruborizados.
A discussão das questões
sociais é a melhor forma de agir sobre elas, como cidadãos
e como religiosos; é fundamental e habita as raízes
desses eventos. Por onde anda a nossa empolgação na
seara espírita com os trabalhos ligados ao amor ao próximo?
O Espiritismo, que tem como uma de suas bandeiras “fora
da caridade não há salvação”,
que segue os preceitos morais do Nazareno condenado à morte
no madeiro, não pode se furtar a esse debate!
Não adianta defendermos a vida de forma
dogmática, no discurso contra a pena de morte, se não
mostrarmos que a pena de morte é apenas um instrumento de
soluções superficiais e passageiras. A defesa da vida
necessita avançar para a discussão das causas e dos
contextos e que ações podemos realizar para evitar
o crime. Mais do que pregar, precisamos convencer e evitar!
Após a tristeza da pena e
a raiva da vingança, Pedro volta para casa na sua condução,
para a sua vida cotidiana, esquecendo o ocorrido naquele dia, que
se repetirá, como se repete desde o início da História.
E a vingança e a pena se mostraram ineficazes para resolver
essas questões no plano coletivo, fortalecendo apenas o ciclo
do ódio.
Mas isso é lá com
os outros, não é, Pedro? Conosco não ocorre,
nem como algozes, nem como vítimas...