Emblemática
no evangelho de Jesus a passagem do apedrejamento da mulher adúltera,
situação na qual o Cristo diz que “quem não
tiver pecados, que atire a primeira pedra” (João, Capítulo
8). Tal afirmativa, que calou os populares que se arvoravam de algozes
pela dilapidação, ainda ecoa, pela sua lógica,
aplacando os nossos ódios e os nossos instintos mais violentos,
diante das situações presenciadas no cotidiano.
Jesus, que em outras situações
defendeu a justiça, no “dai a César o que é
de César” e no “a cada um segundo as suas obras”,
não menos famosos que o enunciado sobre a primeira pedra, diante
daquela mulher condenada pela legislação vigente, traria
agora uma mensagem de leniência e de impunidade, em uma apologia
ao crime?
Uma resposta afirmativa seria uma
visão superficial e contraditória da situação
em tela. Ao nosso ver, Jesus condena sim o julgamento precipitado,
apaixonado e desmedido, que não sopesa o contexto e a subjetividade
de cada situação, chamando a reflexão pelo “quem
não tiver pecados”, inibindo uma pseudo justiça
feita com as próprias mãos, mas que desconsidera princípios
basilares de proporcionalidade, contraditório, razoabilidade
e outros afetos ao direito penal, que muito evoluiu desde a época
do Cristo e que compõe o arcabouço jurídico de
qualquer Estado moderno.
Mais gravosa que a pena de morte, a dita justiça
com as próprias mãos, estampada nos linchamentos, presentes
em nossa sociedade e acentuados mais recentemente, é uma explosão
de ódio, derivada de uma gama de injustiças menores
percebidas e que se materializa em uma injustiça ainda maior,
na condenação a uma morte cruel e desumana, que independente
de ser um inocente ou um motivo comezinho, traduz-se na barbárie
que aplaca vinganças e produz mais dor onde esta já
campeava.
A chamada a reflexão de Jesus nos convida a
assumir o lugar da vítima e a refletir em qual é a melhor
maneira de atuarmos frente a esta situação, o que necessitaríamos
se fôssemos nós mesmos ali no banco dos réus da
rua, dado que as pelas falhas cometidas, no espectro das reencarnações,
ser réu é apenas uma questão temporal.
Ataques de ódio com a promoção
de linchamentos e a apologia a práticas dessa natureza, ao
meu ver, afrontam diametralmente a conduta espírita na defesa
da vida, argumentação ilustrada por autores fundamentais
da doutrina, como na pergunta 761 de “O livro dos espíritos”,
que assevera: “Há outros meios de ele se preservar do
perigo, que não matando. Demais, é preciso abrir e não
fechar ao criminoso a porta do arrependimento. ”
Ou ainda na pena de Joana de Angelis no seu “Após
a Tempestade”, quando diz: “A tarefa que compete às
leis é a de eliminar o crime, as causas que o fomentam, não
o equivocado criminoso. A morte do delinquente não devolve
a vida da vítima. Ao invés da preocupação
de matar, encontrar recursos para estimular a vida. Educar, reeducar,
são impositivos inadiáveis; matar, não. Tenhamos
tento! Não há, no Evangelho, um só versículo
que apoie a pena de morte. ”
A pena de Humberto de Campos, na psicografia de Chico
Xavier, no seu “Boa nova”, não se furta dessa antiga
questão, quando se refere a mulher adúltera: “
– Ninguém pode contestar que ela tenha pecado; quem estará
irrepreensível na face da Terra? Há sacerdotes da lei,
magistrados e filósofos, que prostituíram suas almas
por mais baixo preço; contudo, ainda não lhes vi os
acusadores. A hipocrisia costuma campear impune, enquanto se atiram
pedras ao sofrimento. João, o mundo está cheio de túmulos
caiados. ”
Como se vê, a problemática do crime,
da violência urbana e da intolerância com isso tudo é
antiga e complexa, demandando soluções de igual natureza,
dado que a soma de linchamentos ocorridos até hoje não
parece ter surtido efeito na redução de índices
de violência nas comunidades que dele fizeram uso.
A visão do dito justiçamento é
uma percepção segmentada do problema, descompensada
e que tomada pelo calor dos acontecimentos, ignora as medidas sociais
necessárias, para além de saúde e educação,
mas também nas políticas de segurança de qualidade
que coíbam e apurem os crimes, remetendo o réu ao Juízo,
que tem grande importância nesse processo, no contexto do chamado
Estado democrático de Direito.
O ódio é uma força de características
irracionais, de forma parcial. Ou seja, ela se volta para uma causa,
ainda que a sua percepção seja nebulosa, e a ela associa
a necessidade de descarregar a sua energia represada, muitas vezes
fomentada pela indignação, pela dor, pelas injustiças
cotidianas e ainda, por outras vozes, no ambiente das chamadas redes
sociais.
O cidadão comum, nesses ambientes de exaltação,
como uma greve, um jogo de futebol, se vê tomado desses ímpetos
marcantes e por vezes, se vê envolvido em processos de justiçamento,
esquecendo aquela voz que lembra a ele a sua condição
de espírito imortal.
Casos emblemáticos como a Escola Base (SP)
e o linchamento da jovem confundida com uma fotografia na internet
ocorrida em 2014 no Guarujá (SP) se agregam a outros, ocultos
em outras tipologias penais, atingindo culpados e inocentes, como
formas bárbaras de promover uma vingança contra a nossa
própria imperfeição como seres humanas batizada
de justiçamento.
Como espíritas e cristãos, lutemos pela
justiça, defendamos a vida, com uma visão ampla e racional
dessa questão, não se deixando seduzir pelo canto das
soluções fáceis em arranjos complexos, na defesa
de atos que servem apenas para aplacar ódios momentâneos,
gerando, em termos práticos, mais violência e sofrimento,
para vítimas e algozes.
A exemplificação do bem, a postura cristã,
não é privilégio dos mártires das letras
evangélicas. A cada dia, cada um pode e deve, no seu campo
de luta, exemplificar o que o Cristo espera de nós, em um desafio
pessoal, como fez em maio de 2014 no Rio de Janeiro a jovem estudante
de arquitetura Mikhaila Copello, que se pôs à frente
de linchadores na defesa de um assaltante que já fora imobilizado,
se valendo, como em uma parábola moderna, de palavras, do seu
corpo e da sua coragem no testemunho de sua forma de ver a vida, impedindo
que aqueles espíritos algozes complicassem a sua encarnação,
convidando-os a reflexão da “primeira pedra”.
Ainda há esperança! Nós, espíritos
encarnados, podemos fazer melhor do que isso! A caminhada do bem é
dolorosa, e apesar do crime, que a todos causa indignação,
temos o dever de fazer ecoar as palavras do Cristo, que nos trouxeram
a reflexão quando empunhávamos pedras, passados mais
de 2000 anos, nos indicando na ocasião em que local da turba
Jesus se posicionou, antes e depois do momento da dilapidação.