Com a devida
permissão do leitor para me utilizar de uma experiência
pessoal, lembro-me dos tempos da juventude, passados quase 25 anos,
quando me tornei espírita e frequentava o GECON-Grupo Espírita
do Colégio Naval, núcleo religioso que funcionava na
escola militar à qual eu pertencia, na aprazível cidade
de Angra dos Reis-RJ, nos idos de 1990, e que até hoje atende
aqueles jovens em regime de internato.
Nesse grupo, formado de adolescentes
estudiosos e disciplinados, a nossa breve reunião ocorria de
17h às 17h50, alterando-se entre terças com o estudo
de “O Livro dos Espíritos” e nas quintas com o
Estudo de “O Evangelho segundo o Espiritismo”. Aprendi
muito naqueles crepúsculos de discussão se abeirando
nas obras básicas. Aprendi e aprendemos todos, amadurecendo
nesse processo de interação mútua, de hora marcada,
que às vezes se espraiava por discussões na hora do
almoço.
Dessa experiência inicial, que
compartilhei em outros grupos de outras casas espíritas de
maneira similar, colhi duas percepções que trago comigo
e que penso serem úteis se trazidas à reflexão,
em especial no contexto atual do movimento espírita e a sua
relação com o estudo doutrinário e temáticas
correlatas.
Primeiro, tem-se a importância
de se prestigiar o estudo das obras da codificação kardequiana,
as chamadas obras básicas. Isso se deve à necessidade
de entender uma doutrina pelas suas bases, pelo seu fundamento, entendendo
as origens, da mesma forma que, em qualquer área do conhecimento
humano, estudamos seus autores clássicos e a sua história.
Além disso, as questões
postas por Kardec, sua metodologia, os problemas por ele enfrentados
encontram-se atuais. Às vezes assistimos a programas de televisão
com estudos de reencarnação, sobre a vida após
a morte e aquele batalhão de céticos e, quando vemos,
está tudo ali nas obras básicas, as ponderações,
as argumentações no bom senso que tornaram o mestre
lionês tão peculiar.
Não se trata de ortodoxia ou
bitolação, mas falamos de um contexto de grande profusão
de editoras e obras espíritas, de supervalorização
de textos psicografados e ainda, de buscas pelas novidades literárias,
por vezes com interesses mercadológicos, em uma selva louca
e desvairada (parafraseando Vinicius de Moraes) na qual necessitamos
de faróis seguros a nos guiarem e, em termos de metodologia
e coerência, estou para ver coisa melhor que o Professor Rivail.
Isso não invalida as obras
monumentais que temos à disposição, como os estudos
e reflexões de autores encarnados do naipe de Hermínio
Miranda, Herculano Pires e Richard Simonetti, somente para ilustrar,
além daqueles clássicos da psicografia, nas obras pela
pena de Divaldo Franco e Chico Xavier, entre outras. Obras essas que
trouxeram reflexões e acrescentaram, sim, à construção
da doutrina espírita um tijolinho, dado o seu caráter
dinâmico, valorizado, inclusive por Allan Kardec.
Entretanto, penso que a casa espírita
deve, nas suas preleções e grupos de estudos, valorizar
as obras básicas, não por uma sacralização,
mas pelo seu valor basilar, pela sua completude, coerência e
metodologia, como forma de autonomia dos espíritas, que os
habilitem a trafegar pelos inevitáveis mares no campo do conhecimento
transcendente e que andam por aí.
A segunda colheita dessa experiência
juvenil é que a abordagem do estudo espírita deve, na
minha humilde opinião, valorizar o contato com as obras. Devemos
utilizar a “Pedagogia do manuseio”, na qual os estudantes
devem se abeirar do texto da obra, buscando a discussão em
grupo, inclusive como o próprio Kardec fazia com mensagens
trazidas de Espíritos. O coletivo traz sinergia, na máxima
de um mais um é sempre mais que dois.
Observo alguns cursos superiores que
abandonam os livros e passam a atuar com apostilas; alguns, meras
cópias de lâminas exibidas nas aulas por professores
polivalentes. Essa visão resumitiva, de tópicos, conteudista,
é empobrecedora, favorece pouco a reflexão, em uma visão
“pasteurizada” da prática educativa. No movimento
espírita não ficamos livres dessa cultura apostilada,
que por vezes favorece a “formatação” e
esquece a reflexão.
É verdade, o pessoal gosta,
em geral, de coisas mais facilitadas e a linguagem das obras básicas,
por vezes, é complexa, por ser um texto antigo. Nesse sentido,
têm surgido esforços de traduções mais
contemporâneas, com notinhas explicativas, mas há de
se considerar que uma boa discussão em grupo fortalece o aprendizado
pela pesquisa e pelas dúvidas, tornando límpido o complexo.
Penso que devemos caminhar para um
movimento que enxugue as palestras na grade da casa espírita
e que se fortaleçam os estudos em grupo, que, de forma autônoma,
favorecem a síntese e a discussão, gerando um conhecimento
robusto e firme. A palestra chama as pessoas, mas o grupo as retém.
A palestra é um mecanismo passivo enquanto grupo é interativo,
de construção do saber, potencializado, se realizado
à luz de uma obra relevante. No grupo de estudos é que
forjamos o conhecimento espírita sólido.
O grupo de estudo exige esforço
das pessoas, convoca à leitura, a falar, se expressar e se
posicionar. Formam-se amigos, é democrático como espaço
de participação e de revezamento da condução.
Apresenta-se como modelo de estudo de excelência, antenado com
as modernas tendências pedagógicas.
Por fim, insta considerar que valorizar
Kardec não é só citá-lo em palestras ou
artigos, por vezes com a inserção de trechos de seus
livros sem contextualização. Trata-se de estudar a sua
obra, entendê-la e transpô-la para nossos problemas atuais,
enriquecida, obviamente, pelo que de bom surgir; se é espírita
pelas ideias, pelos fundamentos, e não por um selo nominal.
A quantidade de obras é imensa,
mas tudo começou lá na França, passados mais
de 150 anos, e aqueles pressupostos, límpidos e razoáveis,
ainda aplacam nossos anseios pelos problemas do ser, do destino e
da dor. Não defendo a fossilização, saudando
as produções vindouras, algumas basilares, mas devemos
ter em mente a importância da obra de Kardec em nosso movimento.
Da mesma forma, reputo que esses estudos
devem se fundamentar no manuseio de obras, enxergando naquelas linhas
potencial de expansão de ideias que podem ser agregadas pela
pesquisa em outras obras e pela opinião dos próprios
integrantes do grupo. A doutrina não sobreviveu e se fortaleceu
esses anos por ter criado uma bula proibitiva de conhecimentos, pela
busca da padronização de ideias, e sim pela valorização
do bom senso de discussão, fortalecendo seus adeptos, diante
da razão em todas as épocas da humanidade.
À feição de antiga
música do movimento espírita carioca, importa lembrarmos
que “com Kardec eu aprendi que a vida não termina aqui”...
E, daí, surgiu tudo isso de belo e consolador que vivenciamos
hoje, que impulsiona vidas, ideais, trabalhos e modificações.