É recorrente em meus escritos
a análise do contraste entre os ensinos e exemplos de Jesus
de Nazaré e as ações e posições
de muitos dos que se dizem seus seguidores através da história,
sobretudo nos últimos tempos de aliança entre fundamentalismo
e extrema direita. Das Cruzadas ao longo período da Inquisição,
chegando até o julgamento para o silenciamento de Leonardo
Boff, na cadeira em que Giordano Bruno havia sido condenado à
morte na fogueira. Este ato inquisitorial contra Boff foi praticado
por Joseph Ratzinger, na época Prefeito da Congregação
para Doutrina da Fé (leia-se, remanescente do tribunal da Inquisição).
Lembremos que Ratzinger, depois escolhido como Papa Bento XVI, havia
participado da juventude nazista.
Mas o problema é mais profundo.
Em 2020, a Conferência dos Bispos Católicos da Alemanha
admitiu num documento, que a Igreja católica teve cumplicidade
com o nazismo naquele país. Também a Igreja Luterana
alemã foi conivente com o nazismo, chegando no ano 2000 a confessar
(e a indenizar as vítimas) que havia usado trabalho escravo
de judeus. E não se pode esquecer o longo histórico
de cristãos perseguindo, expulsando e matando judeus em toda
a Europa, de Portugal à Rússia, desde a Idade Média
até a tragédia do holocausto, que relembramos por esses
dias. E no caso dos luteranos, há fortes passagens antissemitas
nos próprios escritos de Lutero.
Poderia preencher páginas e páginas do quanto de violência,
perseguição e morte houve no desenrolar da história
de cristãos contra judeus, ciganos, homossexuais, mulheres
(que eram consideradas bruxas) etc. etc. Usou-se, não com pouca
frequência, uma mensagem de amor, compaixão, acolhimento
e paz para opressão e destruição.
O que causa angústia é
que tudo isso não é coisa do passado, superada pelo
avanço civilizatório e pelo pensamento crítico
e emancipatório, que vem sendo construído desde o Iluminismo,
atravessando os movimentos socialista e anarquista e pelas lutas pelos
Direitos Humanos. Estamos de novo mergulhados numa distopia de que
temos já visto as cenas mais intensas nesses primeiros dias
do governo do inominável dos EUA: gente algemada, crianças
sendo expulsas das escolas, manifestações livres de
suprematistas brancos e o desmonte de qualquer mínima política
pública humanitária, de respeito à diversidade
e de justiça social (política que sempre foi mínima
nos EUA). E há toda uma narrativa da Teologia de domínio
que já estava há décadas preparando o terreno
para essa ascensão da extrema direita e agora apoia plenamente
a barbárie.
É certo que há resistência,
como a corajosa fala da bispa Mariann Edgar Budde, que depois de se
dirigir cara a cara ao recém-empossado presidente ainda se
negou a pedir desculpas. Como houve cem anos atrás inúmeras
resistências entre religiosos. Basta lembrar de Dietrich Bonhoeffer,
pastor e teólogo luterano que se opôs ao nazismo e morreu
em 1945 num campo de concentração. E para citar um herói
do campo católico, o frei franciscano Maximiliano Kolbe, também
assassinado num campo de horrores.
Em todos os tempos, houve cristãos que
entenderam e seguiram a mensagem de Jesus, que é insofismavelmente
de amor, fraternidade, compaixão e justiça.
E hoje, temos o peculiar fenômeno
de ateus, que se opõem ao avanço da extrema direita,
amparada pelo fundamentalismo cristão, e que fazem questão
de lembrar o tempo todo que as palavras de Jesus não se encaixam
numa visão de mundo antipobres, anti-imigrantes, anti-LGBTQIAPN+,
anti-humanidade… Só por esses dias, vi dois ateus confessos,
por acaso dois Leandros, proclamando tais obviedades: o Karnal e o
Demori.
A questão é que o fundamentalismo
cristão (principalmente o evangélico) é um projeto
muito bem articulado, que partiu dos EUA e se impregnou na cultura
brasileira, cooptando o povo, que não tem educação
política, mas carrega muitas necessidades de integração
social, de acolhimento psíquico, de convivência comunitária…
E, por tradição no Brasil, o nome de Jesus é
muito atrativo. E é em nome dele, mas um Jesus-fake, envolto
muito mais numa bíblia do Velho Testamento, do que no frescor
amoroso dos Evangelhos, que se conquista as massas, para manipulá-las
em favor dos “valores cristãos”. Esses supostos
valores cristãos nada mais são do que uma agenda de
repressão sexual, de patriarcado violento, de neoliberalismo
submisso ao mercado e predatório do ser humano e da natureza,
de discursos anticientíficos e altamente obscurantistas. E
tudo isso acompanhado de projetos de instalação de governos
totalitários, como os golpistas queriam estabelecer no Brasil
e como o trumpismo está se inaugurando como tal nos EUA.
É preciso desmascarar um cristianismo que é anti-Cristo
e fazer valer os verdadeiros valores cristãos, que jamais poderiam
compactuar com qualquer forma de exploração, opressão
e violência contra a humanidade. Acordemos!
Dora Incontri – Graduada
em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social
Cásper Líbero. Mestre e doutora em História
e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de
São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação
pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira
de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação.
Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia.
Mais de trinta livros publicados com o tema de educação,
espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius,
Ática, Scipione, entre outros.