Hoje, no dia do meu aniversário,
uma data que sempre me alegra, pois gosto de ter nascido, resolvi
escrever algumas considerações sobre esse tema tão
controvertido: o aborto. Se estou comemorando meu aniversário
e vivendo uma vida plena de sentido, é porque minha mãe
permitiu que eu nascesse. Me recebeu e me acolheu, com a participação
de meu pai. Então, é bastante pertinente falar sobre
esse tema, nesse dia. Meu dia de entrada nessa vida.
Penso que esse debate sempre caminha por lados opostos, com argumentos
que não tocam o cerne da questão.
Primeiro, a criminalização ou descriminalização
do aborto não tem necessariamente a ver com ser contra ou a
favor do aborto. Pode-se ser a favor da descriminalização
e contra o aborto. No meu ponto de vista anarquista, obviamente acharia
ridículo uma mulher ir para a prisão porque praticou
aborto. Mas eu também considero todo o sistema estabelecido
da justiça, com suas penalidades, prisões, humilhações,
exclusões sociais, algo absolutamente abominável porque
atenta contra a dignidade humana, exerce apenas uma função
punitiva e nunca educativa. Não melhora ninguém. Por
isso, não me comprazo nem mesmo quando políticos, de
que tenho ojeriza, vão para a cadeia. Tenho pena, acho que
não adianta, penso que se trata de vingança da sociedade
e não justiça. Acredito em qualquer circunstância,
mesmo com crimes graves, em justiça restaurativa, reparadora,
que possa na medida do possível aproximar o criminoso e a vítima,
trabalhar-se pelo perdão, pela reparação e pela
recuperação do indivíduo. Coloco aqui um vídeo emocionante
sobre o efeito da misericórdia e do perdão sobre um
criminoso – do qual muitos diriam: “bandido bom é
bandido morto.”
Posto isso, se não concordo com esse sistema penal que está
aí, não o desejo como solução de nenhum
problema.
Mas isso não quer dizer que não considere o aborto um
grande problema e já direi por quê!
Segundo, todos os que defendem a descriminalização do
aborto usam do argumento de que o Estado, sendo laico (e é
laico no Brasil, pero no mucho, infelizmente), não pode legislar
baseado em princípios religiosos… Concordo inteiramente!
Mas a coisa não é tão simples assim.
Vivemos numa civilização, cujos valores foram herdados
do cristianismo. Por exemplo, na Grécia antiga, era normal
atirar crianças defeituosas dos penhascos. Ou seja, havia a
prática legal de uma eugenia à moda nazista. Em Roma,
o pai (pater) tinha direito de vida e morte sobre a mulher e os filhos.
Que filosofia moral amenizou esses costumes? Que religião valorizou
a mulher e a criança (quando essa religião seguiu aquele
que elegeu para seu Mestre)? O cristianismo, quando entendido dentro
das mensagens deixadas por Jesus, veio para defender justamente os
excluídos, os sem voz: a criança, a mulher, os marginalizados
etc. Se por um lado, os cristãos viraram do avesso, e até
hoje viram, os ensinamentos de Jesus, por outro lado, esses valores
humanistas foram a base do avanço da legislação
no Ocidente. Então, quando dizemos que o Estado deve ser laico
significa que ele deve proteger a liberdade religiosa e não
se deixar dominar por interesses de grupos religiosos e nem legislar
com base em dogmas específicos dessa ou daquela religião.
Mas pode e deve se inspirar nos valores humanos universais, que por
acaso são os do cristianismo bem entendido. Entre eles, um
dos mais fortes está o respeito à vida.
Mesmo assim, não é preciso se recorrer a nenhum valor
cristão para se tomar uma posição anti-abortista.
A questão é saber se aquele feto que ali está
é um sujeito de direitos ou não. Se é alguém
ou apenas um projeto de alguém, que pode ser abortado.
Podemos então conversar com a Ciência e não estaremos
invocando crenças particulares. Vou apenas citar um livro,
interessantíssimo, sobre uma pesquisa feita por uma psicanalista
italiana, Alessandra Piontelli, De Feto a Criança
– um estudo observacional e psicanalítico. Nessa
pesquisa, essa médica acompanhou a gravidez de 11 mulheres
e depois seguiu os filhos delas até o quarto ano de vida, entre
eles, alguns gêmeos.
Pois bem, fica evidente, que há vida inteligente e emocional
no feto, porque há memórias e comportamentos nas crianças,
relacionados com a vida pré-natal. E há outras pesquisas
nesse sentido. Eu mesma tenho um trauma pré-natal, porque minha
mãe estava no quinto mês de gravidez, quando o avião
em que estávamos quase caiu. Até hoje, aos 54 anos,
tenho a sensação de queda quando subo ou desço
uma ladeira muito íngreme, evitando pegar ruas com declive
muito acentuado.
Se há memória, trauma e até conhecimento de fatos
que ocorreram durante a estadia no ventre da mãe, de que depois
a criança lembra em forma de emoções, comportamentos
etc, então há ali um sujeito pensante, sensível.
Ainda falando de pesquisas científicas, lembro aqui os 2500
casos de memórias espontâneas de crianças sobre
suas vidas passadas, estudadas por Ian Stevenson e sua equipe, na
Universidade de Virginia. Casos com fortes evidências, de lembranças
precisas, com marcas de nascença, que foram cuidadosamente
analisados nessas investigações. Se a memória
precede a fecundação, então desde o inicio há
vida inteligente e perceptiva ali. Portanto, quando se pratica um
aborto, já se está eliminando uma vida consciente e
sensível. Aliás, basta ver o feto se defendendo dos
alicates que o tiram aos pedaços durante o aborto.
Tudo isso posto, sim, o aborto é crime.
Mas o que vamos fazer com isso?
Dentro da perspectiva que citei acima, crimes não devem ser
punidos, mas perdoados e prevenidos. Nesse caso, não perdoados
por outros, mas por quem o cometeu (pois o mais difícil é
perdoar-se a si mesmo) e prevenidos pela sociedade, sobretudo pela
educação e por condições sociais que deem
o apoio devido à mulher, para que ela não seja conduzida
a um ato infeliz, por falta de apoio, esclarecimentos e recursos,
embora, legalizado ou não o aborto, sempre ela terá
a liberdade de praticá-lo.
Para prevenirmos o aborto, haveríamos de ter várias
atitudes:
- Uma eficaz educação sexual, com orientação
para o uso de contraceptivos;
- Campanhas educativas e esclarecedoras sobre a
vida intrauterina e as consequências psicológicas traumáticas
para as mulheres que praticam aborto;
- Educação e conscientização
dos homens, para que assumam suas responsabilidades e saibam que
têm exatos 50% de dever de receber e acolher o filho que fizeram;
- Valorização social da maternidade,
com licença maternidade mais extensa, com licença
paternidade, com respeito às mulheres que decidem ter filhos
e não as considerando um estorvo no mercado de trabalho;
- Centros de apoio para as mulheres que têm
gravidez indesejada, com ajuda psicológica, orientação
médica e jurídica e apoio espiritual (inter-religioso),
para que a mulher possa ter conhecimento de todas as variáveis
que envolvem o aborto.
E para quem já fez aborto? Não cabe a ninguém
julgar, porque há inúmeras circunstâncias adversas
que podem levar a mulher a praticá-lo ou simplesmente o desconhecimento
do quanto o feto ali presente é já um sujeito de direitos
e uma alma reencarnante (e isso não é apenas uma crença,
mas algo de que já temos muitas evidências, mas que precisa
ser alguma hora incorporado ao paradigma científico). Cabe-nos
pois esclarecer e divulgar e não julgar e condenar.
Meu querido Pestalozzi, o gênio desconhecido no Brasil, cujas
obras aqui nunca chegaram, escreveu uma obra-prima ainda no final
do século XVIII, considerada a primeira pesquisa de sociologia
da juventude do mundo: Legislação e Infanticídio.
Naqueles tempos, havia em Zurique, na Suíça rigidamente
protestante, uma onda de mulheres que matavam seus filhos ao nascer
e depois eram condenadas à morte. Pestalozzi vai fazer um estudo
dos processos e das histórias dessas mulheres. E chega à
conclusão de que elas não eram culpadas. Chegavam do
campo na cidade, pobres e sem educação e eram logo seduzidas
(naquela época, sim, havia essa “sedução”,
pois não havia a mínima educação sexual),
por homens, que uma vez tido um breve relacionamento com elas, as
abandonavam a si mesmas, muitas delas já grávidas. Ora,
a sociedade católica sempre teve vias de escape para o “pecado”:
a prostituição ou o convento, a roda da Santa Casa de
misericórdia para as crianças nascidas em situação
ilegítima… Na sociedade protestante, nada disso existia.
Essas mulheres não tinham escapatória. Era a miséria,
o escárnio público, não havia nenhum lugar para
elas ou para seus filhos “bastardos”. Por isso, no desespero,
matavam seus próprios filhos, ao nascerem. Pestalozzi escancara
o problema e culpa a sociedade opressora, moralista e, sobretudo,
os homens, por sua fuga à responsabilidade.
Hoje, essa situação específica que Pestalozzi
descreve não existe mais na civilização ocidental,
pelo avanço das mentalidades, pela mudança de padrões
culturais e comportamentais.
Assim também deverá ser com o aborto.
Cabe-nos fazer uma sociedade em que a vida competitiva do mercado
e os empregos massacrantes das corporações não
sejam mais importantes do que a maternidade e a paternidade. Cabe-nos
promover um mundo sem tantas diferenças sociais, em que todas
as mulheres tenham acesso à educação. Cabe-nos
construir um mundo em que o ventre materno seja um reduto sagrado
de vida e a sociedade inteira se mobilize para preservar essas vidas
que se reiniciam.
E eu só posso escrever tudo isso, porque nasci. Porque minha
mãe me acolheu em seu ventre e me deu à luz. Toda vida
é uma promessa de transformação e evolução
para o planeta. Deixemos as crianças virem abençoar
nossas vidas! E quando não as quisermos, há recursos
para evitá-las, sem que as arranquemos do ventre, quando já
tiverem sido concebidas.