A maturidade nos traz reflexões importantes,
quando estamos abertos ao aprendizado. Depois de revisitar muitos
autores que considerava impecáveis e mesmo mestres da minha
adolescência e juventude, vendo que no meio de grandes e belas
verdades e contribuições, disseram às vezes coisas
embaraçosas para o século XXI, hoje me pergunto: será
que daqui 50 ou 100 anos, quando lerem meus livros, haverá
coisas ali que me constrangerão de ter escrito, olhando lá
do mundo espiritual, diante do progresso das ideias e do avanço
civilizatório? Às vezes nem me pergunto se
haverá, mas quais serão essas posições
ultrapassadas, que poderão me fazer corar no futuro…Faço
essa pequena introdução para tocar numa questão
delicada e polêmica, incômoda e constrangedora para qualquer
espírita de consciência aberta e lúcida: o possível
racismo de Kardec.
Racismo é, na minha opinião, indefensável, porque
fere um dos princípios mais universais – o da fraternidade
humana – mas podemos tecer algumas reflexões se
de fato e em que medida (se é que
podemos medir o racismo) Kardec foi racista, que contexto era aquele
em que ele vivia e se o espiritismo, como filosofia, defende alguma
ideia de discriminação por raça, gênero
ou cor.
Um parêntese importante é que a palavra “racista”
foi usada pela primeira vez por um panfletário francês,
Gaston Mary, em 1894, portanto, 25 anos depois da morte de Kardec,
e só passou a ser utilizada com maior frequência a partir
da década de 1930 – o que mostra bem que a tomada de
consciência do que é ser racista, por parte de um europeu,
é algo muito recente na história. Aliás, esse
racismo ideológico, etnocentrista, nasce na época moderna
a partir do imperialismo europeu – uma ideologia para justificar
a escravidão, a dominação e a exploração
dos povos colonizados.
Quanto a Kardec, em primeiro lugar, temos de analisar em que textos
ele manifesta uma posição em relação aos
negros, que hoje para nós é indefensável e chocante:
trata-se de dois escritos, um artigo publicado na Revista Espírita
em 1862 e outro, que aparece em Obras Póstumas (portanto
não foi publicado por Kardec e talvez ele não o publicasse).
O primeiro se chama “Frenologia Espírita e a perfectibilidade
da Raça Negra” e o outro, “Teoria da Beleza”.
Qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade hoje em dia
ficará aturdido e indignado ao ler frases como: “um negro
é belo para outro negro, como um gato é belo para outro
gato”. Ou: “Os negros, pois, como organização
física, serão sempre os mesmos; como Espíritos,
são sem dúvida uma raça inferior, quer dizer,
primitiva…” – Cito aqui dois dos priores trechos.
Esses dois artigos foram escritos em circunstâncias específicas:
primeiro, eram artigos que falavam de teorias da época, como
a frenologia de Gall (mas Kardec cita igualmente um médico,
Pierre Flourens, que até hoje é considerado como o iniciador
da anestesia e que estudou o cérebro e suas funções
na época) e uma teoria de estética, de um ilustre desconhecido,
Charles Richard…São ensaios de debate com o que naquele
contexto eram consideradas como teorias supostamente científicas,
ou pelo menos hipóteses (que aliás, o próprio
Kardec trata como hipóteses).
Hoje se sabe, quando se estuda a Revista Espírita,
que ali era um lugar em que Kardec lançava hipóteses,
dialogava com as ideias da época, seja para rebatê-las,
seja para aproveitar algo que lhe parecia plausível…
Mas não estavam ali, na revista, os princípios consolidados
do Espiritismo. Esses estão no Livro dos Espíritos,
no Livro dos Médiuns e em outras obras básicas.
E, mesmo assim, Kardec fez questão de avisar que se algum desses
princípios fosse desmentido pelo progresso científico,
o espiritismo deveria acatar novas ideias e novas hipóteses
demonstradas. E no Livro dos Espíritos, o que está consolidado
é:
“Todos os homens são irmãos
em Deus, pois que eles são animados por um espírito
e tendem ao mesmo fim.” (Questão
54)
Ou ainda sobre a escravidão (e lembremos que
no tempo de Kardec ainda havia escravidão nos Estados Unidos
e no Brasil):
“Toda sujeição absoluta de um
homem a outro homem é contrária à lei de Deus.
A escravidão é um abuso da força, e desaparece
com o progresso, como desaparecerão pouco a pouco todos os
abusos.
A lei humana que consagra a escravidão é
contra a natureza, pois ela trata o homem como um bruto e o degrada
moral e fisicamente.” (Questão
829)
Ou seja, os claros princípios
que estão no espiritismo são a igualdade entre todos
os seres humanos (há outras passagens a respeito) e o combate
a todo abuso e violência contra a dignidade humana.
Por isso, quando o Espiritismo chega
ao Brasil, ainda na vigência da escravidão, os espíritas
serão abolicionistas e trabalharão pela igualdade étnica.
Bezerra de Menezes era abolicionista, Anália Franco adotou
as crianças negras que eram expulsas das fazendas, quando da
Lei do Ventre Livre e depois em suas escolas, integrou mulheres e
crianças negras, como professoras e alunas respectivamente.
O mesmo fez Eurípedes Barsanulfo, seu contemporâneo.
Isso numa época, final do século XIX e início
do século XX, em que havia um projeto de “branqueamento”
do Brasil, com a vinda de imigrantes italianos, alemães e outros.
Fica claro assim que a ideia de que
existam raças superiores e inferiores não é uma
ideia que faça parte da filosofia espírita, pois Kardec
não a incluiu nas obras fundamentais do espiritismo e, ao contrário,
o que se tem em toda parte é uma ideia essencialmente igualitária.
A teoria da reencarnação fornece argumentos para essa
igualdade. Se podemos renascer negros ou brancos, orientais ou africanos,
homens ou mulheres – o espírito, sendo sempre o mesmo
– somos essencialmente iguais.
Mas, o que justifica Kardec então ter
levantado tais ideias discriminatórias e se aventurado a conversar
com essas teorias etnocentristas e racistas de sua época?
É preciso se colocar na pele
de um europeu branco do século XIX, mais que isso, de um francês
que, ao que se sabe, nunca saiu da França (a não ser
para estudar na Suíça na infância). Esse homem
jamais viu um negro a não ser naquelas exposições
de zoológico humano (que aliás foram feitas na Europa
até meados do século XX!!). Lá, os negros ou
outras etnias, eram expostos enjaulados, como animais – não
eram ouvidos, olhados, apreendidos com qualquer possibilidade de expressão
de inteligência. Kardec jamais viu ou jamais soube de um poeta
brasileiro como Cruz e Souza, de um cientista americano como George
Carver (ex-escravo), de um trompetista genial como Wynton Marsalis,
de um compositor extraordinário como Duke Ellington ou como
Gilberto Gil, ou de líderes como Martin Luther King e Mandela…
e assim vai… Até meados do século XIX, negros
não tinham voz, não recebiam educação
e não desenvolviam seus talentos. Portanto, quem nunca tivesse
convivido com um negro, poderia muito bem pensar que eles seriam incapazes
de alguma coisa.
Mesmo assim, Kardec, dentro de seu
etnocentrismo, escreveu um artigo para dizer que eles poderiam evoluir
– o que já era muito para o seu ponto de vista.
A lição que nos fica
é que por melhores as intenções e melhores as
ideias que um ser humano possa conceber, ele será sempre um
filho de seu tempo, com suas limitações históricas
e culturais. E se a pessoa em questão, como é o caso
de Kardec, pregou a fraternidade entre todos, o amor ao próximo
e a igualdade, não podemos destruir todas as suas contribuições
por conta desse terrível equívoco. Mas devemos sim combater
qualquer forma de racismo e discriminação. Principalmente
entre aqueles que fazem disso uma bandeira, como os nazistas ou membros
da Ku Klux Klan, e se prevalecem de tais teorias para semear o ódio,
o assassinato em massa e a violência contra a dignidade humana.
Fonte: https://blogabpe.org/2018/01/27/kardec-era-racista/