Quando se fala em educação
espírita, muitos torcem o nariz e lá vem o conceito
(ou preconceito?) taxativo: sectarismo. Imaginam-se aulas de catecismo,
como num colégio católico ou protestante. Quem faz essa
ideia passa um atestado de ignorância em espiritismo. Porque
nada há mais universal e antissectário do que a doutrina
espírita (verdadeiramente compreendida!). Ou talvez, quem assim
imagina esteja pensando, por exemplo, em termos de Federação
Espírita Brasileira. Não resta dúvida que se
essa ilustre instituição igrejeira (como tantas outras
que brotam por aí a sua imagem e semelhança) se preocupasse
com edu cação espírita, o resultado seria catastrófico.
Mas o espiritismo em si é antidogmático e dialético;
está e estará sempre em consonância com o progresso
científico, porque não é estacionário.
E o movimento espírita é (ou deveria ser, não
cabe aqui discutir esse ponto) essencialmente anti-hierárquico,
não-autoritário, fermentado no diálogo construtivo.
Portanto, toda educação que floresça dos legítimos
princípios espíritas só pode ser uma educação
para a liberdade, baseada no diálogo e no amor. Desse modo,
ponham-se os preconceitos de molho e observemos, passo a passo, o
quanto estamos necessitados de uma educação nova; o
quanto o espiritismo pode contribuir nesse aspecto e como essa educação
e só essa educação será um instrumento
infalível de mudança social.
A PEDAGOGIA DO SER
Qualquer reflexão séria sobre educação
envolve, em primeiro lugar, o problema ontológico. O que é
o Ser? Na maioria das vezes, nem a resposta, nem a própria
pergunta são formuladas. Apenas servem de pano de fundo —
até inconscientemente — do ato de educar. Então,
podemos nos deparar, por exemplo, com uma visão calvinista,
do homem que já nasce marcado irremediavelmente pelo pecado
original. Só poucos eleitos serão salvos. Dessa perspectiva
resultam os terrores de uma educação puritana. Calvino
mandou até decapitar crianças! Por outra, numa visão
materialista, não se pode falar em essência, porque o
Ser é sua herança biológica, seu meio e sua educação.
Não há nenhum a priori. E tudo isso também está
ligado à teoria do conhecimento: tanto para os espiritualistas
dogmáticos, que acreditam na criação da alma
na hora do nascimento, como para os materialistas, que fazem questão
de ignorar o espírito: o homem é uma tábua rasa.
Só vai adquirir conhecimentos. Nada a recordar. Nenhuma potencialidade
dormente. Não se trata aqui de fazer uma análise filosófica
profunda a respeito das teorias do Ser e do conhecimento. Mas apenas
dar uma levíssima pincelada de alguns exemplos — o que
nos porá na trilha da contribuição espírita.
Humberto Mariotti ressalta, em seu livro Parapsicologia e Materialismo
Histórico, que os fenômenos paranormais (ou espíritas,
como quiserem) provados cientificamente, mudam para sempre a Filosofia
do Ser — chamada ontologia. A entidade espiritual, pré
e pós-existente ao período terrestre e depois reexistente
no mundo, através da reencarnação, dá
uma dimensão nova à questão. É claro que
essa nova perspectiva se insere dentro da linha platônico-idealista.
Por isso, na educação espírita voltaremos ao
diálogo e à maiêutica de Sócrates. Mas
o fato inédito é que o espiritismo comprova o que os
idealistas intuíram.
Ora, por tudo isso, a visão espírita do Ser vem reformular
as bases da educação e deve anunciar uma pedagogia revolucionária.
A criança é um ser reencarnado — eis o postulado
básico. Isso pressupõe uma individualidade que independe
do corpo e do meio e deve ser respeitada e trabalhada como tal. E
pressupõe também seu recomeço existencial num
corpo e num meio, onde deve ser educada para existir aqui e agora
e, ao mesmo tempo, com vistas à sua transcendência. Porque
o objetivo de estar aqui e agora não é apenas integrar-se,
mas sim realizar-se espiritualmente — em referência a
sua evolução eterna.
O homem é perfectível — esse e outro princípio
fundamental. Fomos criados para a perfeição. Aí
é que entra o aspecto social do problema. Pois a evolução
não se processa apenas no plano individual, mas também
no coletivo. Aliás, ocorre uma interação. O indivíduo
é agente de mudança do meio, o meio também influencia
o indivíduo. Toda ideologia que busca uma sociedade mais justa
deveria partir — e às vezes parte — da fé
de que o homem seja capaz de viver essa sociedade. Não coagido
pela força, por decretos e leis. Mas voluntariamente. O homem,
compreendido como mero produto do seu meio histórico não
poderá nunca fazê-lo. O homem aleijado do espírito
não sabe renunciar à sua ambição em favor
do próximo. Por isso, todos os sistemas socialistas, até
hoje, baseados numa visão materialista do Ser, foram impostos
e mantidos pela violência. Só o Ser espiritual pode evoluir
no sentido de superar o egoísmo para viver em fraternidade;
transcender o orgulho para construir a igualdade e agir eticamente
para gozar da liberdade.
O Livro dos Espíritos nos indica o caminho (item 914):
“Estando o egoísmo fundado no interesse pessoal, parece
difícil extirpá-lo do coração do homem.
Chegaremos a isso?”
“— À medida que os homens se esclarecem sobre
as coisas espirituais, dão menos valor às materiais,
em seguida é necessário reformar as instituições
humanas, que o entretêm e excitam. Isso depende da educação.”
Veja-se que os espíritos falam
em “reformar as instituições humanas” e
em “educação”. São dois sentidos
de ação que devem seguir juntos. Um ajudando o outro.
A FAMÍLIA ESPÍRITA
“Os laços de família resumem os liames sociais”,
diz O Livro dos Espíritos (item 774). A educação
começa na família. E essa é também uma
das instituições humanas que precisa ser reformada.
A família espírita se distancia de qualquer gênero
de autoritarismo e opressão. O machismo fica abolido, porque
sabemos que, como espíritos encarnados, independentemente de
sexo, devemos evoluir em dois sentidos: “Espíritas, amai-vos,
eis o primeiro mandamento, e instruí-vos, eis o segundo”.
O Espírito da Verdade não disse: “Mulheres, amai,
e homens, instruí-vos”, como querem certos retrógrados
que o homem seja o cérebro e a mulher o coração.
Homens e mulheres devem ser co-participantes no mundo e no lar.
E na relação entre pais e filhos caem também
por terra todos os conceitos de hierarquia e obediência. Entram
em cena o diálogo e o amor. Porque os membros de uma família
são companheiros de evolução e não donos
uns dos outros. E mais idade física não significa maior
evolução espiritual, apenas maior responsabilidade de
ajudar no desenvolvimento do espírito irmão, que nos
foi dado como filho. Não se concebem assim, num lar espírita,
o abandono e a indiferença. A educação é
uma tarefa de que os pais terão de prestar contas. Educação,
porém que significa cultivo através do diálogo
e não domesticação através da cinta. Além
disso, não se pode imaginar um verdadeiro educador que não
busca, antes de tudo, auto-educar-se.
Mas de que maneira a família pode educar com vistas a uma transformação
social? Pode ela se opor ao meio em que vive? Se a família,
como dizem, é a célula básica da sociedade, então
toda mudança real deve começar por aí. Na medida
em que verdadeiras famílias espíritas se multipliquem,
elas podem se tornar núcleos de irradiação renovadora.
Se rejeitam o consumismo, não compactuam com a exploração
para adquirir bens materiais; se incentivam as verdadeiras vocações
dos filhos e não os inclinam apenas a profissões rentosas;
se praticam entre si o diálogo e a democracia, a fraternidade
e o apoio mútuo; se transmitem a certeza da imortalidade, libertando
a criança do medo da dor e da morte, alargando lhe o horizonte
através da cosmovisão espírita; se procuram criar
dentro de casa um clima de efervescência cultural e troca de
informações e ao mesmo tempo de vivência e exemplificação
moral; e se engajam, unidos, espiritamente, na construção
de um mundo novo — Já estão vivendo a família
do terceiro milênio e germinando o amanhã.
A ESCOLA ESPÍRITA
Mas não basta a educação em família. As
crianças frequentam escolas. E o que fazem as escolas? Formam
simplesmente (desde o primário ate a universidade) a força
de trabalho anônima que vai perpetuar a sociedade atual. Não
estão nem um pouquinho preocupadas em formar homens e mulheres
idealistas e críticos, que possam ser fermento de mudança.
Porque o sistema de ensino, em toda a parte, esta a serviço
da manutenção do status quo. E muito menos interessadas
estão em desenvolver o ser em sua integridade espiritual, com
vistas à sua transcendência, porque se baseiam numa visão
materialista (= laica) ou, quando muito, numa visão dogmática
(= católica ou protestante) do homem.
Ate mesmo os mais refratários a mudanças estão
vendo a cada dia o fracasso de nosso sistema escolar, onde a pobre
criança — que é naturalmente anárquica,
vital, criativa — é obrigada a ficar sentadinha, sem
falar, sem se mexer, ouvindo alguém bombardeá-la com
regras e fórmulas, tiradas do nada. Depois de anos dessa tortura,
o aluno sai da escola, enquadrado no sistema social. A chama da criatividade
apagou-se ou, pelo menos, diminuiu naqueles que resistiram ao massacre.
O senso crítico inexiste; o idealismo sempre lhe foi mostrado
como sinônimo de utopia e fraqueza mental. Apenas sai levando
na memória algumas fórmulas, alguns dados para despejar
no vestibular e depois esquecer para sempre. E aí vem a tragédia
universitária.
É mais do que urgente abolir todo esse sistema e criar algo
novo. Uma escola que dê prazer. Por que a educação
tem de ser associada a castigo, nota, recompensa, competição,
dever?...Uma escola onde se aprendesse brincando, imaginando, experimentando.
Em contato com a natureza, mexendo com o barro, com a madeira, com
flores; pesquisando, debatendo, sem expor nem impor! Orientar o desenvolvimento
da criança, mas não tirar sua iniciativa de querer aprender.
Deixar vir à tona sua sensibilidade para a Arte, para o belo.
Despertar sua afetividade religiosa, sua ligação com
Deus. Junte-se a tudo isso uma cosmovisão espírita.
Uma aula de genética à luz da reencarnação.
Entender o sentido evolutivo da história. Não fragmentar
o conhecimento em compartimentos estanques, mas estabelecer a ligação
que existe entre todas as coisas. Inserir as leis físicas dentro
da ordem universal. Mostrar a cadeia que une o átomo ao arcanjo.
Não importa o número de fórmulas e equações,
datas e nomes, que o aluno saia guardando na memória. Os livros
estão aí para serem consultados, os computadores estão
aí... O que interessa é que a escola produza homens
e mulheres criativos, dinâmicos, com uma sólida perspectiva
filosófica, uma visão espiritualista do Ser e do Universo,
um agudo senso critico em relação a sociedade e um espírito
científico de pesquisa. Trata se de desenvolver o raciocínio
e não de sobrecarregar a memória; despertar o amor e
a fraternidade e não de impor regras moralistas. Esse é
o esboço de uma escola espírita.
Diga-se de passagem que já há muita gente (não-espírita)
preocupada em transformar o ensino. Porém, quase sempre, falta
o embasamento espiritual — que, na pedagogia espírita,
parte de uma Filosofia do Ser (como ser reencarnado e perfectível)
e chega a um conteúdo educacional mais amplo. Ou seja, vê-se
a criança espiritamente e educa-se a criança espiritamente.
Nada de catecismo. A doutrina espírita se opõe por sua
própria natureza ao dogmatismo. Ela demonstra, não impõe!
Mas não se pode negar que apenas o homem, que se sabe imortal,
poderá trabalhar eficientemente em sua própria evolução
e na evolução social. Por que negar essa certeza às
novas gerações? Dessa certeza de imortalidade é
que nasce a Doutrina Social Espírita. Com ela, segundo Mariotti,
“podemos falar de um homem-que-reencontra-a-história,
isto é, de um homem que construirá um mundo melhor para
reencontrar-se a si mesmo” — pela lei da reencarnação!
Dora Incontri é jornalista, escritora,
autora de Chama de Paz (produção independente,1982),
Imortais da Poesia (Edições Correio Fraterno do ABC,
1983) e Educação da Nova Era (produção
independente, 1984).
Fonte: Anais do
II Encontro Nacional Sobre o Aspecto Social da Doutrina Espírita
- São Paulo, 28/02 a 03/03 de 1987
PENSE – Pensamento Social Espírita.
www.viasantos.com/pense
Março de 2010.
BREVE HISTÓRICO
A origem desse movimento, que pretende
discutir o Aspecto Social da Doutrina Espírita, esta fundamentalmente
calcada numa releitura que o movimento espírita iniciou das
obras de Allan Kardec; possível graças ao processo de
abertura democrática recentemente instaurado no País.
Embora o conjunto da obra kardequiana tenha sido estudado desde a
introdução do espiritismo no Brasil, poucos espíritas
assimilaram profundamente o teor progressista e humanista da doutrina.
Hoje, após mais de um século da edição
de O Livro dos Espíritos, esta obra começa a ser estudada
com maior ênfase, sobretudo em sua terceira parte, que trata
das Leis Morais.
Kardec tocou nas questões sociais mais delicadas de sua época,
encarou-as de frente e, algumas vezes, posicionou-se contra regimes
políticos ora vigentes. Essa postura é digna de nota,
pois mostra que o único compromisso que norteou sua obra foi
com a verdade.
Hoje, no movimento espírita, temos espaços para discussões
políticas. Essa e outras conquistas são graças
a alguns pensadores que vieram antes de nós e prepararam o
terreno com suas obras. Para esses, que muitos percalços encontraram
junto a uma parcela conservadora do movimento, deixamos aqui a nossa
homenagem e reconhecimento.
Algumas tentativas de discutir explicitamente a visão social
do espiritismo já foram tentadas no Brasil. Entretanto, parece
que somente no final da década de 70 é que esse debate
tomou corpo, quando alguns eventos esparsos abordaram essa temática.
Aos poucos fortaleceu-se a ideia de que discutir questões sociais
e políticas não nos afasta da verdadeira doutrina espírita,
ao contrário, levá-nos ao encontro dela.
A omissão do movimento de unificação brasileiro
é que levou um grupo de jovens espíritas universitários
de Florianópolis-SC, que mantinham estreitas ligações
com espíritas do Estado de São Paulo, a organizar, após
um trabalho intenso e maduro, o 1º Encontro Nacional Sobre a
Doutrina Social Espírita, realizado em fevereiro de 1985, na
cidade de Santos-SP
Destaca-se que a preparação desse 1º encontro contou
com sugestões de diversos pontos do Brasil. A comissão
organizadora providenciou a divulgação prévia
de textos, preparados por espíritas com razoável atuação
no movimento. Esses textos subsidiaram o debate sobre quatro temas
principais: “Valores Doutrinários”, “Comunicação”,
“Atuação Política e Organização
de Grupos Sociais” e “Educação”. Houve
participação significativa e verificou-se que a quase
totalidade das pessoas, de diversas faixas etárias, eram militantes
do movimento de unificação de seus Estados. Essa realidade
garantia a continuidade da discussão. Em suas conclusões,
realça-se a moção votada, por unanimidade, pela
convocação da Assembléia Nacional Constituinte.
Nos meses seguintes ao 1º encontro, registrou-se amplo debate
pela imprensa espírita, com posicionamentos diversificados
sobre a questão social. Na plenária do 1º Encontro
decidiu-se pela realização do 2º encontro em 1987,
na cidade de São Paulo. No intervalo de tempo passado, temos
convicção que cresceram as discussões sobre o
tema, inclusive com algum interesse do movimento de unificação.
A alteração da designação para Encontro
Nacional Sobre o Aspecto Social da Doutrina Espírita - Ensasde,
procurou atender algumas críticas quanto à denominação
“Doutrina Social Espírita” e foi resultado de ampla
consulta feita, principalmente, aos participantes do 1º encontro.
A continuidade desse movimento e algo ainda indefinido, pois só
o tempo definirá a necessidade de novos Ensasdes. Em algum
momento, não muito distante, o movimento de unificação
deverá assumir essa tarefa, talvez não na forma de encontros
grandiosos, mas sim como trabalho rotineiro. Portanto, até
que isto aconteça, o Ensasde não será um “movimento
paralelo”, mas sim, um trabalho necessário.
São Paulo, outubro de 1986.
Comissão Organizadora do 2º Ensasde
APRESENTAÇÃO
Este é o primeiro produto do 2º Ensasde, concluído
antes do evento, com objetivos múltiplos: divulgação,
promoção de debates e arrecadação de recursos
financeiros para auxiliar na organização do encontro.
Apesar de nossa necessidade material, o objetivo maior que nos levou
a aglutinar as contribuições desses autores em um volume,
é registrar seus pontos de vista sobre alguns dos principais
temas que hoje estabelecem o vínculo do espiritismo com as
questões sociais. Essa relação é tão
ampla que, evidentemente, não se esgota nos pontos aqui abordados;
mesmo assim, pretensiosamente, denominamos o trabalho de Espiritismo
e Sociedade, pois é preciso ficar claro a que veio.
A restrição de espaço estabelecida aos autores
procura compatibilizar a oportunidade de abordar diversos assuntos
com a necessidade de suscitar estudos e discussões, elementos
sem os quais acreditamos que o movimento não evolua em sua
visão da sociedade.
Com o estudo se aprofunda, com a discussão se troca conhecimentos,
mas sobretudo com a prática é que se evolui. Assim,
esperamos que a reflexão deste material produza alterações
de comportamentos individuais e coletivos, principalmente no meio
espírita.
As opiniões colocadas nos textos são de responsabilidade
exclusiva dos autores. A crítica, se colocada em bom nível,
propiciará excelente oportunidade de debate e, consequentemente,
maior estudo doutrinário. Merece nota também o fato
de tratar-se de um trabalho de encarnados. Não se desconhece
(e nem poderia) as influências do mundo espiritual no material,
mas cabe dar ênfase que a transformação da sociedade
é tarefa dos que aqui reencarnam.
Finalmente, esclarece-se que os autores foram escolhidos a critério
da Comissão Organizadora do 2º Ensasde,
que buscou convidar elementos com folha de serviços no movimento
e vivência nos temas sobre os quais escreveriam. Infelizmente,
não foi possível a publicação de todos
os trabalhos dos companheiros convidados, pelos seguintes motivos:
impossibilidade de escrever, recusa ou envio fora do prazo de fechamento
da edição.
São Paulo, outubro de 1986.
Comissão Organizadora do II Ensasde