O último censo revelou algo
muito significativo sobre as tendências religiosas dos brasileiros.
O tema de hoje parte da seguinte informação: enquanto
8% da população brasileira não tem religião
(em 1960 era apenas 0,5%); entre jovens de 16 a 24 anos, essa porcentagem
chega a 25%. E essa não é apenas uma tendência
nossa, mas mundial. Se por um lado, cresce o fundamentalismo religioso
de todos os matizes, a negação da religião
institucionalizada também avança, sobretudo entre
os jovens. Mas tanto no Brasil, como em outros países, a
declaração de não ter uma religião não
significa necessariamente ateísmo. A maioria mantém
ou busca alguma forma de fé ou prática espiritual.
Há possíveis interpretações
para esse fato, mas parece que os jovens procuram uma espiritualidade
mais livre, não direcionada por sacerdócios, não
sujeita a regras rígidas e, sobretudo, mais aberta à
fusão de diferentes modos de crer. Querem abertura, diálogo
e leveza.
É verdade que essa busca
não garante que a pessoa se livre das explorações
e dos abusos parecidos com os que são cometidos por alguns
setores ou por certas lideranças do campo tradicional. Há
uma espiritualidade livre que é cooptada por gurus improvisados,
sem nenhuma consistência, que oferecem autoajuda, cursos sincréticos,
livros de coach espiritual – tudo muito bem embalado numa
comercialização própria do mercado da fé.
Em alguns casos, incluindo abusos sexuais e formação
de seitas.
Por outro lado, a libertação
de uma religião específica pode impedir a possibilidade
de um aspecto, que estudiosos consideram um elemento importante
para a saúde mental do indivíduo: a sensação
de pertencimento a um grupo, a presença de uma rede de apoio
nas adversidades da vida. O grupo pode por um lado se tornar opressor
em certas circunstâncias, mas se não for fanático
e estruturado com excessiva rigidez, pode também salvar alguém
da solidão, do adoecimento psíquico e do suicídio.
A espiritualidade livre pode ser, portanto, solitária, até
individualista; mas é aberta ao diálogo e à
busca das verdades espirituais que estão em toda parte.
Essas reflexões levam a evocar
a figura de Allan Kardec, fundador do espiritismo na França
do século 19, sobre quem estou lançando nesse mês
o livro Kardec para o século 21.
Durante todo o processo de escrita
de suas obras, Kardec se debateu com o conceito de religião.
Não queria de jeito nenhum atribuí-lo ao espiritismo.
E de fato, na filosofia por ele fundada, não há igreja,
sacerdócio organizado, rituais e nem dogmas de fé.
Por outro lado, ele escreveu O Evangelho segundo o espiritismo (que
sintetiza a proposta de Jesus no seu aspecto ético apenas)
e preconizou a oração como algo necessário
e positivo. Ora, a oração é um ato religioso,
embora ele racionalize e explique os benefícios dessa prática.
Num de seus últimos discursos, admite que o espiritismo tem
alguns aspectos que possam ser considerados religiosos.
No Brasil, entretanto, como inúmeros
sociólogos e antropólogos e muitos espíritas
críticos analisam, o espiritismo se tornou sim uma religião,
no sentido tradicional do termo. Isso é interpretado por
muitos como um afastamento da proposta de Kardec.
O fato é que o fundador do
espiritismo dessacralizou a religião, democratizou o acesso
ao mundo espiritual – já que qualquer pessoa pode ser
médium e ter contato com esse mundo – racionalizou
esse contato e aboliu o conceito de sobrenatural. Ao mesmo tempo,
criticou os abusos das religiões, as intolerâncias,
as opressões e as violências por elas praticadas nos
séculos afora. E admitiu que a verdade está em toda
parte e não é exclusividade de uma tradição
espiritual específica, nem mesmo a que ele próprio
fundou.
Como se vê, podemos definir essa forma de fé como Kardec
fez, sendo uma fé raciocinada, como uma espiritualidade
livre, crítica e universalista. E isso dialoga de maneira
muito instigante com essa tendência atual de busca dos jovens
de se desligarem das amarras de uma religiosidade rígida.
O problema que se apresenta para que essa mensagem
libertadora de Kardec chegue às novas gerações,
é que o espiritismo no Brasil (o país mais espírita
do mundo), foi modelado por um religiosismo conservador, sob a liderança
da Federação Espírita Brasileira. Mais recentemente,
como ocorreu em outros campos, o bolsonarismo tomou conta de lideranças
e de centros espíritas e expulsou muitos adeptos progressistas.
Por isso, a necessidade de se recolocar a proposta
de Kardec numa reflexão mais profunda e adequada para nossos
tempos. E é a isso, que o livro que está sendo lançado,
se propõe. Porém, como adverte Alysson Mascaro no
prefácio que escreveu, trata-se “de uma obra de forja
intelectual, não moral, nem pastoral”. Ou seja, nada
de proselitismo e catequese, mas de análise e reflexão
para espíritas e não espíritas, para melhor
entendimento da contribuição de Kardec, com seus limites
históricos e sua atualização possível.
Dora Incontri – Graduada em Jornalismo
pela Faculdade de Comunicação Social Cásper
Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia
da Educação pela USP (Universidade de São
Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação
pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira
de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação.
Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre
Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema
de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo,
pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.