Dora Incontri

>      Como e por que sou anarquista – pequena cartilha política

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Em tempos de discussão política, de diferentes pautas e interesses, que se entrecruzam e se misturam, às vezes de maneira confusa e imprecisa, é bom pontuar algumas ideias e marcar uma posição mais clara.

Digo isto, porque embora tenha ficado a princípio muito satisfeita e entusiasmada com o despertar do povo, saindo às ruas e reivindicando direitos, logo fui ficando menos empolgada, ao verificar que a maioria tem insatisfações genéricas, que as reivindicações vão da esquerda à direita, misturadas, e muitas vezes, mostrando a mesma alienação de sempre. Ou seja, embora tenha notado com alegria que há muita gente mais conscientizada, ainda percebe-se que há muitos outros conservadores de plantão que se dividem em duas classes: a dos que têm interesses próprios no sistema vigente e a dos que simplesmente não têm consciência política (ou seja, são alienados), por falta de formação e de informação! Alguns padecem simultaneamente dos dois problemas.

Como esse não é um espaço para um tratado profundo sobre o assunto, apenas quero deixar algumas definições básicas, úteis para quem não está habituado a certas reflexões.

Em primeiro lugar, quero definir como conservadores (ou de direita) aqueles que não conseguem ou não querem elaborar uma crítica ao sistema econômico globalizado em que vivemos. Podem criticar a corrupção (e criticam de preferência e com mais ênfase a do PT), podem querer genericamente mais saúde e educação, podem estar conscientes de alguns absurdos crônicos do cenário da política brasileira. Mas não vão além. Não percebem que por trás de políticos corruptos no Brasil e mesmo por trás de alguns possíveis bem intencionados, há as corporações e os bancos, que comandam o sistema mundial, diante de quem os governos nada podem. Mesmo um Obama é um marionete do sistema, sem muito o que fazer diante dos lobies econômicos, da força das indústrias de armas, dos banqueiros internacionais… Entre esses conservadores, pode haver os que acreditam nas instituições democráticas e não gostariam de uma ditadura (ditadura explícita, porque já vivemos numa ditadura econômica). Mas há também os radicais, que sentem saudades do militarismo (e agora soubemos da formação de um partido militar no Brasil!!!), que querem o fechamento do Congresso e coisas assim… Esses naturalmente não dão a mínima para aqueles que foram torturados, assassinados e desaparecidos nos tempos da repressão e ainda acham que comunistas comem criancinhas!

Em seguida, vamos apalpar um pouco o outro lado, que também junta muitas posições: a esquerda. Direita e esquerda são distinções que nasceram na Revolução Francesa e têm mostrado diferentes agendas nos últimos dois séculos. Por exemplo, aquela esquerda dos tempos da Guerra Fria, simplesmente não existe mais, porque ela era polarizada pela União Soviética. Hoje, a esquerda pode representar posições bem mais sofisticadas e variadas. Mas em todas as esquerdas, existe a consciência de que vivemos numa sociedade estruturalmente injusta, de que o capitalismo é excludente, perverso, porque centrado no lucro, na exploração, onde o ser humano nada vale, como objeto descartável do mercado. De algumas décadas para cá, a esquerda também se acresceu de uma consciência ecológica, porque além de massacrante em relação ao ser humano, o sistema capitalista é predatório da natureza, esgotando os recursos naturais da Terra (consciência, por exemplo, que uma esquerda marxista da década de 50 não tinha).

Entre as esquerdas marxista ou socialista, distinguem-se as revolucionárias, (em claro desuso atualmente) que pregam ou praticam o uso das armas para derrubar esse sistema e as reformistas, que pela eleição pensam chegar ao poder e transformar as coisas. É o que o PT prometia.

Entre as esquerdas, está o anarquismo, posição que adoto desde jovem.


O que é o anarquismo?

O anarquismo partilha com todas as outras posições de esquerda a ojeriza ao sistema econômico capitalista, em que somos escravos do mercado de consumo, com uma doutrinação maciça da imprensa (que também é feita de corporações interessadas no lucro e não na verdade e no bem coletivo), num mundo globalizado em que a suposta liberdade econômica é sim o domínio de uns poucos sobre povos inteiros.

Mas, ao contrário de socialistas e comunistas, os anarquistas não acreditam que o Estado possa ajudar a reverter esse sistema econômico injusto, porque o Estado já nasceu e sempre esteve a serviço dele. Um dos grandes anarquistas (e nesse caso anarquista cristão, partidário da não-violência) cujas ideias esposo e admiro, Lev Nikolaievitch Tolstoi, mostrava que o Estado é assentado na violência, porque ele precisa de exército e polícia para funcionar – ora, essa violência pode ser a toda hora voltada contra o cidadão (vimos isso fartamente nas manifestações havidas recentemente), porque o poder quer sempre se manter do poder, e, para manter-se, usa de violência. Para Tolstoi, a própria existência do Estado é contra a mensagem de Jesus, se a entendermos como uma mensagem de amor e não-violência, na medida em que o Estado é naturalmente bélico e repressor. Mesmo a suposta justiça, promovida pelo Estado, segundo Tolstoi, longe de ser uma proposta educativa, é uma vingança social. (Ele escreveu um livro belíssimo sobre o assunto: Ressurreição.)

O anarquismo propõe que o ser humano é capaz de gerir a si mesmo, em cooperativas, associações livres, em relações igualitárias e fraternas. A parafernália do Estado, com seu cortejo de políticos vivendo às custas da nação, com seus exércitos, com suas polícias repressoras, com os impostos que todos são obrigados a pagar (e isso no Brasil ainda é pior que em alguns outros países), tudo isso são coisas perfeitamente dispensáveis, quando poderíamos viver nos organizando fraternalmente.

Já vejo o muxoxo de desprezo de muitos, dizendo que a ideia pode ser muito bonita; mas utópica, irrealizável.

Pessoalmente, só acho que ela seja realizável através da educação, formando gerações que cresçam com autonomia, confiantes em si mesmas, praticantes desde cedo da cooperação e da fraternidade, ao invés da competição que o sistema atual estimula.

É óbvio que a concepção anarquista se baseia numa visão otimista do ser humano, em que o mal e o crime são muito mais produtos de uma sociedade injusta, mal organizada e de uma educação deformante, do que algo intrínseco ao ser.

Como acredito na perfectibilidade humana e sei que uma educação libertadora e crítica, estimuladora de bons sentimentos e de valores humanos, pode acelerar essa capacidade de autonomia e bondade, sou anarquista agora, por ética pessoal, na medida do possível e do factível, e a médio e longo prazo, acredito que o anarquismo é o antissistema a ser alcançado num futuro não muito distante.

O que chamo de anarquismo por ética pessoal é o seguinte: mesmo vivendo numa sociedade altamente dominada por poderes econômicos e políticos, repressores da liberdade humana, viver de forma contrária a esse sistema. Por exemplo, não assisto à TV, não sou manipulada pela mídia, não estabeleço relações de hierarquia com ninguém. Nunca trabalhei em algo e por algo que contrariasse meus princípios (atitude que Tolstoi e Gandhi chamavam de não-colaboração com o mal), orgulho-me de ter recusado duas vezes um emprego na Veja, e isso mesmo quando estive em necessidade financeira. Procuro na medida do possível resistir na alimentação, no consumo, no cotidiano às imposições do mercado. Na família, no trabalho, nas relações pessoais procuro formas horizontais de troca e respeito, recusando posições de mando, o que não quer dizer recusar liderança. Há grande diferença entre ser chefe e ser líder. O comando se impõe e se faz valer por meios coercitivos, a liderança se conquista por mérito em alguma área ou por algum carisma pessoal e são os outros que lhe dão. O comando se quer a qualquer custo, a liderança se ganha espontaneamente.

E sobretudo, milito o tempo todo para acordar consciências e através da educação, de crianças, jovens, adultos, restituir ao ser humano a crença em si mesmo, em sua capacidade de se autogerir, de criticar, de questionar, derrubando gurus que manietam o livre pensar, denunciando mercadores de ideias e de ideologias, mostrando como as instituições (mesmo as espíritas, cito porque me considero espírita sempre) acabam por se cristalizar em poderes e disputa de poderes, massacrando a espontaneidade do ser humano e a espiritualidade despojada e simples, que é a única que nos eleva.

Gosto do anarquismo, porque ele é multifacetado, livre, não tem cartilhas fechadas, é aberto a experiências pessoais e coletivas, como considero que é nosso processo de maturação espiritual no decorrer das vidas. Acho mesmo que para ser anarquista é preciso, como Tolstoi propunha, ser cristão na essência do termo. Não o cristianismo institucionalizado, dogmático, igrejeiro. Mas o cristianismo de fraternidade real, em que o ser humano se despoje do seu desejo de dominar, explorar e ferir o outro, para entregar-se a vivências de ajuda mútua, cooperação e… o que afinal propunha Jesus: amor ao próximo como a si mesmo. Só isso!

 

 

Fonte:
http://doraincontri.com/2013/09/23/como-e-por-que-sou-anarquista-pequena-cartilha-politica/

 


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